Há
um prenúncio de calor na frescura da manhã que amarela soalhenta. Lá fora, o contentamento
solto dos pássaros anda a esvoaçar na brisa bebé e infiltra pela janela semiaberta. Sem gente, a minha árvore desinibe e entretém-se
a sugerir, ramos estendidos em insidioso
convite de verdes, aqui e ali um eriçado de tronos barrocos que amarelam e, a
seu tempo, tombam e morrem a golpes de vassoura, devêm lixo. Mas hoje são garridice
vegetal, chamariz de células, laço de fita em pele arbórea. Que chama a
algaraviada dos pássaros. Esta árvore, piano de sala que não tenho, é deus de
zelo, sinaliza e guarda a casa em amplexo mavioso. Alberga melros, rolas,
pardais e um sem fim de ignotas espécies.
Mansamente, centímetro a centímetro, tem-se aproximado e quase se debruça na
minha janela onde a cloaca dos pássaros deixa restos que somem em higiénica sacudidela. Perfilada, o corpo denuncia-lhe
o esmero no lado campestre e a saudade de estar entre iguais. A minha árvore é
um pequeno deus que não quer ser deus. Mas continua a crescer e elevar-se acima
das outras, alegria sinfónica dos
habitantes alados. E minha. Se penso nela, logo a alma se enternece e me traz, vá-se
lá saber porquê, o mar estival que sei de cor. O mar feito praia lisa e que toda se oferece em movimentos suaves e
lisonjeiros. Que beija os artelhos a convidar o resto do corpo, que vai subindo
em frescura, mais acima, mais acima, mais um pouco. Até à plenitude liberta e
inteira da osmose, a dissolução navegante de quem sobrevoa os males de viver
e se dissolve no elemento aquoso. Que é isto nadar: a profunda comunhão com a água, um
enlevo suprarracional. A gente caminha pela estrada da razão, mas enleva no que
dela transcende. E que essa
transcendência se firme e afirme por via também dos sentidos é a contradição
mais bendita e benquista do ser humano. E nisto estou na Feira do Livro
bordejada de lilás, os jacarandás num sorriso a escurecer, vieste. E eu perdida
na sinuosa contorção dos ramos, anos e anos a ganharem a forma que me abisma em
cada olhar, perplexa do mistério imerso na miríade florida e encaixada em nuvem,
presa ao violeta intenso de um mais afoito, corpo de poesia declarada, vejam-me.
E depois arranco-me e deambulo naquele jardim da alma que gosto de percorrer
com vagar, a ler títulos, antevendo o que possa tornar meu. E nenhum momento é
tão grande como esse em que desejo sem ainda ter (ah, o poeta, como ele sabe
dizer isto). Por vezes, surgem-me pessoas da capa dos livros. Inexplicáveis. Porque
sim. Agudamente. São sinais. Livros que
pedem, compra-me. Ou gente que quer ser vista. A relembrar-se. Porque não vejo o
que lá está, escritores a olhar-nos do fundo da sua seriedade, queixo apoiado na mão. Vejo
sorrisos rasgados que troçam brandamente da minha pessoa. Comovem-me estas
visões, querem o quê?!
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