Amélia
chegara à aldeia sem passado e soubera rodear-se da aura de superioridade
natural: tinha empregada dentro de casa, um gerador que resfolegava na rua e iluminava, arrefecia e aquecia os interiores do monte; e um automóvel que conduzia a resvalar no pasmo das gentes. Ninguém ousava levantar cabeça a
interrogá-la. E ela, qual recém nascido de banho tomado e estômago sem queixa, apreciava a fita dos
dias em satisfação
virginal. A tudo atendia a sua curiosidade. Pela noite, apreciava o ruído dos
ralos na terra, o canto alado dos grilos femeeiros, a extremidade
brilhante dos pirilampos a que o povo oportuno chamava luzecus. No passo certo das horas noctívagas,
rodeada de papeis, sentava-se a trabalhar. Acompanhava-a o ruído dos ramos que
estalavam nas árvores em volta, a madeira dos móveis a espreguiçar no centro do
silêncio, um gato elegante e periférico de olhos em desassossego. Pela tardinha, era vê-la descer em passeio no
seu passo miúdo, primeiro à descoberta, mais tarde em exercício de convivência.
Nos caminhos, os homens tiravam-lhe o chapéu e cumprimentavam sérios, rugas franzindo o rosto escurecido de pó sem
data e sóis arraigados. E quedavam-se densos, olhos incomodados de assim
sozinha por todo o lugar, amiudada em sapato rasteiro e raso de poeira,
desinquieta de olhos e mãos. Amélia não se incomodava, tinha-os num limbo de
acenos e sorrisos sem palavras que não lhe descomandava o passo. Havia de
passar tempo até chegarem à conversa, que a confiança nasce e cresce como
qualquer legume: a poder de tempo, rega e paciência.
Depois
que minha mãe aceitara a oferta de emprego no Monte do Cabeço, a aldeia inteira
a empurrá-la, vai, não sejas parva, foges ao trabalho do campo, ficas estimada
e crias a gaiata que com ele não podes contar, eu vivia de empréstimo e
suspense. Passava os dias enjoada de nada para fazer e, sem a companhia dos
meus amigos dilectos, as horas desmaiavam
em semi-morte. Estava proíbida de passear com o grupo de garotos que
cirandava por todo o lugar, por via de um pessegueiro carregadinho que, de uma hora para a
outra, aparecera aliviado de pêssegos. Apesar da minha aplicada veemência,
nunca tirámos nada, perdurou o não implacável. Em compensação, minha mãe entendia o cativeiro e deixava que a esperasse a meio caminho. À hora marcada,
depois de muita ânsia aos ponteiros, saía de casa em corrida de fogo à vista
sem bombeiro para acudir e, num relâmpago, estava sentada no marco combinado. E
aguardava. Meias horas a enfiarem umas nas outras. Na volta, por vezes dentro do breu,
perguntava tudo sobre a casa, D. Amélia, as refeições, o trabalho, quem a
frequentava...mas minha mãe era pouco loquaz e apresentava-se num cansaço só.
Ou seria D. Amélia que não desejava alimentar a calhandrice de comadres e lhe
fechava boca e ouvidos. Uma tarde, a surpresa, este ano vais estudar para o
colégio. Eu a meio da vereda, espeque mudo, as tarantas das pernas, acudam que
perdemos o andar. Na vila, observara uma aluna do colégio e o uniforme embiocava qualquer dos meus vestidos. Minha mãe a validar a decisão, D. Amélia veio dirigir o colégio, foi por isso que
alugou a Casa do Cabeço. E a antecipar
dúvidas sobre finanças, vai arranjar-te uma bolsa de estudo e não pagamos; do resto trato eu, filha. E enquanto eu puxava dos reflexos e as pernas desenxovalhavam
do estupor, virou-me o sorriso de tempos felizes, todo subido aos olhos, vês, vais estudar e hás-de ter uma roupa como gostas, igual à da menina que vimos
na vila.
Porém,
ao invés de largo contentamento, atemorizei a pensar nos colégios que só
conhecia de um ou outro livro, no terror das meninas e professoras novas que ia
encontrar, na catástrofe de uma bolsa de estudo que nem arrisquei perguntar o
que seria. Fixei-me em D. Amélia, nos seus olhos inquisitivos e grandes como
amoras terríficas, na altura de saltos em que se passeava, tic, tic, tic. E assustou-me o
comando daquele palmo de mulher. Apesar
do sorriso retornado a antes, nem minha mãe parecia contente por inteiro.
Talvez canseira. Ou por meu pai já fora do segredo, mas sem visitas. O
certo é que a novidade desprendia uma sensação estranha, espécie de
azedume e travo desconhecido.
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