O
imaginário dos escritores é um mundo que hoje tem gosto pelo lado escuro do
homem e se ergue muito cheio de não prestas e do que de mau temos dentro. Será
por comungarem do sentimento dos actores e ser sensaborão criar personagens
normais, razoávelmente bons e que, parece, desentusiasmam a leitura. Que também
os leitores preferem ser triturados por mázura e canalhice. Contudo, a vida tem enredos que podem ser tomados por ficção. Hoje, no poiso solitário
da minha janela, vi um. Já o encontrei de outras vezes. Variadas vezes. Para ser
exacta, ao longo de anos. A rapariga de que vou falar, é ela o meu enredo, encostou
nas grades de minha casa e, quase ao alcance da mão, ocupava-se a desenlear o
cãozito que a acompanha. Não me fez caso, não sabe tanta coisa que me vem quase
do berço, do tempo em que ela não existia. E juro que, se numa intuição sem
préstimo lhe adivinhei a proveniência, jamais os meus verdes anos lhe sonhariam
a existência. Julgo mesmo que ninguém sonhou o seu existir. Vou
contar a história do princípio.
Aos
doze anos eu era uma menina de boa índole que frequentava igrejas e catequeses,
fazia novenas e tinha um terrível medo de ser santa. Por esse tempo, lembro-me
de admirar na igreja um forasteiro que se mudara de armas e bagagens para a
aldeia, com mulher e três filhas casadoiras. A minha admiração tinha raiz dupla.
A primeira, devia-se ao anómalo facto de o homem não falhar uma missa e participar activamente, cantava com entusiasmo, oferecia-se para as leituras e não desanimava por ser o
único varão na igreja. A segunda, era apenas intrigante. Se comparecia com
pontualidade dominical na companhia de duas filhas, a mulher e a terceira filha
continuavam incógnitas. Na mercearia, o mulherio falava à boca pequena do
mistério na família do senhor Vicente, e por que é que a mulher não ia também à
missa, e por que motivo as filhas não iam as três, e por onde andaria a incógnita terceira filha. E patati, e patatá. Mas
ninguém sabia.
Quando
o verão se apresentou em seus ardores e os braços arregaçaram a suar limpezas, o senhor Vicente, não querendo ficar atrás
na febre da brancura pincelada, contratou duas mulheres para a caiação do
monte. E o segredo desfez. Foi como o esvaziar de um balão a meio gás, um som manso, quase despercebido. O povo tem destas coisas, corrói na curiosidade que depois
maldiz. Mas, se a mulher nunca pisou na igreja (dizia-se na mercearia que era
contra os padres e quiçá seria mesmo comunista), o mesmo não sucedeu com a
terceira filha, por sinal a mais velha; depois da caiança, a rapariga passou a frequentar o nosso lugar de culto. No primeiro domingo em que, ladeada pelas irmãs, marcou presença, concentrou
as atenções. As mulheres esqueciam-se de responder ao padre, e, durante o
sermão, voltaram-se repetidamente para trás e provocaram um ralhete do cura. Intrigou-me mais a presença da terceira filha que a sua
ausência e também me virei para trás em ocasiões pouco próprias. Em geral, os
mais novos foram tão incómodos que as duas irmãs se agastavam e faziam sinais
para voltarem a olhar o altar. Quanto a mim, fiquei positivamente
siderada pela expressão da moça. As duas irmãs que conhecia eram risonhas e superiores,
troçavam de nós e dos nossos hábitos aldeões sem qualquer pejo. Além disso,
eram amazonas de respeito, víamo-las passar ao longe, cavalgando muito direitas
na Azinhaga do Valado até sumirem por entre o arvoredo. O pastor com que por vezes
cruzavam, comentava posto em admiração, aquilo é que são umas mulheres, andam
melhor a cavalo que eu a pé. Eram meninas finas. Não misturavam com a
plebe, tinham lugar marcado na igreja e as únicas a usar mantilha. Nós de
cabeça cingida por triângulos de tule sem graça; elas, virgens sem pedestal, a ajeitar
a brancura florida das mantilhas. Mercê destas casualidades, a aldeia uniu-se em
comum sentimento de inveja mal disfarçada e lembro-me de estar ao espelho a
imaginar-me com mantilha, adereço tão bonito que julgava pecado confiná-lo
à igreja.
Porém,
a terceira irmã divergia das expectativas, tinha uma marca de diferença. Desconhecia alguém assim. Era mais alta e musculosa que as manas, tinha dentes grandes e brancos e sorria
sempre. Sorria para o padre, para nós, para as mulheres que a miravam em alarme. Sorria. E faltava-lhe a beleza e garridice das duas. Era um tronco de árvore ladeado por flores.
Quando saiu do templo, as irmãs davam-lhe o braço como se ela criança pequena. E no
entanto, no adro, sorria e beijava todos. Indiscriminada. De boa mente. As manas puxavam-na em impaciência discreta, vamos, para a semana voltas. E ela feliz, que bem se via estar feliz tão rodeada de gente. Pensei que era
esquisita. Reparei-lhe os olhos, a boca, o nariz. Cada um, isolado, era sem
defeito. Mas a mistura resultava estranha. No caminho para casa falei
a minha mãe dessa irregularidade e daquela satisfação sem nome que lhe latejava à vista das pessoas. E minha mãe em tristeza condoída, desflorando palavras-pétala, coitada, tem falta
de juízo, parece uma criança. Que tristeza!
(continua)
(continua)
Sem comentários:
Enviar um comentário