No
rescaldo dos fogos de 15 e 16 de Outubro, ainda movida a sentimentos e emoções,
não consegui escrever. Talvez por me antever no papel dos desgraçados,
entraram-me uma tristeza e revolta monstras. Pelos que morreram ceifados pela
calamidade. Sozinhos contra o fogo. Impotentes. E por quem ficou, desamparado
de tudo. Conheço esse desamparo de viver de empréstimo, sem que nada seja nosso,
à mercê de bondades estranhas e boas vontades tanta vez apenas iniciais, que ser bondoso durante
muito tempo cansa, e, a breve trecho, familiares e amigos desejam voltar a lugares
marcados e a sentir que a casa é apenas sua. Mas não sei o desespero de “Tudo
perdido”. E não contabilizo a dor pelos mortos que é dor por faltarem e dor
pelo horror que viveram e que ninguém, nem o ser mais vil, merece. Penso nos
que ficaram porque o futuro se faz com eles. Nos pobres desalentados, mãos a
abanar, incrédulos do infortúnio. Gravou-se-me o olhar sonâmbulo daquele homem
pegado aos escombros da casa e dos barracos, tudo negro e informe em seu redor,
mal acreditando no absurdo, como num pesadelo, nem um martelo, nem uma enxada,
nem um trator; ardeu tudo, não tenho nada. E a gente a ouvir e a saber que
estava a auto convencer-se da extensão de vazio.
À
medida que os anos correm sobre nós e que a vida e os homens nos contrariam,
vamos aprendendo que o pouco que temos nos é tudo: a cadeira de sentar, a cama
que o corpo deseja para o repouso, a chávena do chá ou o café da manhã. E há a
janela de espreitar os avanços do dia que se espreguiça ou corre em lufa lufa,
as manias da porta das traseiras, o som dos passos que são distintos nas
diferentes partes da casa. A história de cada um enleia na de todas as coisas
que são suas e lhe fazem falta. São os
pequenos nadas que os olhos necessitam, objectos comezinhos que têm lugar de
anos no cenário. E assim acontecia antes do fogo. Também eles tinham a sua casa,
animais domésticos e de trabalho, alfaias agrícolas que compraram a juntar as
notas umas atrás das outras, a guardá-las semana a semana, mês a mês, sacrificando
sabe deus o quê, porque um trator faz falta, porque o reboque, porque a
segadora mecânica, a tratorinha que baptizaram com um nome terno por ser
maneirinha e caber onde os tratores não entram. E perderam família, a casa, os
haveres.
Neste
oceano de desgraça, o Estado fracassou humanamente. No vigor da calamidade
imprevista, tratou todos com desrespeito. Quem fala assim do seu povo trai a
sua confiança. Em situação de desgraça, não se atiram razões e culpas,
oferece-se compreensão e ajuda. O que se ouviu foi indigno de representantes do
povo, gente eleita por ele e que lhe deve protecção. São os portugueses quem lhes
paga o ordenado, mereciam o seu apoio incondicional desde o início. Mais tarde,
o governo emendou a mão, pediu desculpa, mexeu-se para trazer futuro a quem
dele precisa. Mas é no ardor da provação que conhecemos as pessoas.
E
há as árvores. Hectares e hectares ardidos. Muitos milhares de hectares de
floresta sacrificada (quinhentos mil). Uma razia que nos trará consequências
nefastas e a vários níveis e de que nem é bom falar nesta hora que tem de ser
de reconstrução. O fogo quase extinguiu
o pinhal do rei. Mandou plantá-lo o rei poeta e de vistas largas, para segurar
areias marítimas, assim o estudámos nós. O pinhal de Leiria era de todos os
portugueses e não apenas dos leirienses. Oitenta por cento, ardeu. Não veremos
formado o novo pinhal. Mas que o plantem. Que o plantem! É incumbência
nacional. Que a história se recrie. E os portugueses, senão estes outros serão,
o olhem lembrando ainda esse D. Dinis de grande alcance e os versos dos poetas
que o cantaram, imaginando no rumorejo dos pinheiros o som futuro das caravelas
velejando.
Não queremos ficar encalhados e ajudamos no
que podemos. Essa gente martirizada há-de navegar. É dever nosso interessá-los,
trazê-los de volta ao mar da vida.
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