Sexta
feira, vinte e quatro de Novembro do ano de dois mil e dezassete. Madruguei.
Passava das cinco quando tudo que a seguir conto se me fez presente. Seria alguém talvez ligado à memória vívida que me despertou.
Anseio que seja um chamado, transmissão da força do pensamento, desejo puro de
um tempo em que fomos “for ever young”. Que não um sinal de perigo, urgência a
que não posso nem sei atender, apelo instante em situação limite. Porque
claramente distingo o chamamento da simples lembrança. É outra intensidade e
outra natureza. A segunda, é apenas memória afectiva e morna que sucede em
consciência. O primeiro, acorda-me em clareza e precisão, numa supraconsciência
inexplicável que se particulariza em qualidade e grau; supraconsciência que é portadora
de natureza própria e para que não encontro palavras. Temo chamamentos. Se é
verdade que os separo da lembrança, também é verdade que não sei destrinçar o
desejo instante de presença, da necessidade que se expressa no apelo
irredutível e último em urgência vital. Os chamamentos são gritos na noite.
Gritos que só eu oiço, sem lhes conhecer proveniência. Mente que me chama com
força inusitada e única e que, milagrosamente, chega até mim. Nem sei se de
mortos, se de vivos. Que os mortos também nos chamam e falam e têm força.
Quem
sabe não eram senão eles, os mortos, a
lembrar-me esse período difícil da vida em que fui bafejada pela sorte de um
projecto comum tão salutar quanto contrariado pelo poder. O volume de trabalho
e escolhos a ultrapassar. Primeiro, a escrita da peça de teatro (que já perdi);
de seguida, a leitura para escolha de actores, todos a escolher todos; e logo,
os ensaios. Sem sala, ensaiávamos nos átrios de corredores, no intervalo entre
aulas diurnas e nocturnas, perturbados por aspiradores e vozes de empregadas. Ou
em casa de um ou outro. No final, eu a carregá-los para os autocarros. Gente
que se levantava às cinco e ainda assim entusiasmava com os extras; Do meu
lado, nem verba, nem horas disponíveis. Era a nossa carolice sempre rechaçada.
A pior turma em comportamento. Mas, no dia, enchemos a casa. O temor, tanta
gente (era quarta à tarde, não havia aulas, o auditório à cunha, gente sentada
pela coxia), e se não gostam, e se...E eles, mais de trinta, já
metamorfoseados, o do acordeon a puxar-lhe as alças para o ombro, vai correr
bem. Um lá em baixo, amarfanhado junto às casas de banho, mãos na barriga, não
consigo, não consigo. Eu a levantá-lo do chão, consegue pois, entra e
esquece-se de tudo, vai ver. E ele, tenho de ir vomitar, eu não devia ter vindo
para isto, foi só por andar atrás daquela miúda loira que está a apresentar. E
eu, deixe-se de paranóias, você é um actor, quando pisar o palco passa-lhe
tudo. E ele a olhar-me em dúvida culposa, e se eu me fosse embora agora... Eu
séria, olhos de ácido sulfúrico, deixe-se de parvoíces, vá lá vomitar que eu
espero aqui e vamos os dois para cima, ouviu? E lá em cima o do pano de cena,
tenho que ir a casa num instantinho, eu não me demoro; - e a dar-me palmadinhas
no ombro - mas olhe que o bombeiro ainda não chegou, ligou-me e vem a caminho,
teve que acompanhar um doente a setúbal. Eu aflita, e agora? Ele, agora
começamos que entretanto chega, diz que já ligaram a sirene e vêm a toda a
mecha, como não tem que se vestir...Eu, ai valha-me Deus, temos a casa cheia e
falta-me uma pessoa. E daí a pouco o funcionário do auditório, temos de começar
que eu não saio daqui depois da hora; ok, ok, onde é que está o nosso homem do
pano de cena? Alguém a medo, ainda não voltou. Mas não voltou como? Então, foi
a casa e ainda não veio. Com franqueza, mas o que é que aquele rapaz tem em
casa de tão urgente? Ora, então não
sabe, é a namorada. Eu a desmoralizar, esta gente é toda maluca. Merecia era
umas porradas, aquele irresponsável. E as garotas vampirescas, capa e
lábios pretos, a estenderem um lençol de compreensão, é só mais um bocadinho,
eles vêm todos. Na régie, o funcionário de braço no ar, um dedo todo nervos a apontar-me o
relógio. E eu que não ouvia o barulho, a imaginar a unha a bater no vidro, tic,
tic, tic. E entretanto o bombeiro-actor, acabadinho de chegar, agarra o
namoradeiro logo na entrada, és maluco ó quê, pá. Desato a rir e empurro-o para
a régie, se se engana nas aberturas do pano dou-lhe uma surra. E começamos.
Gostam.
Temos de parar várias vezes porque riem e batem palmas a meio. E no
bocadinho de jogo do benfica em que gravámos um golo, a plateia levanta-se em
peso como se no estádio, a gritar gooolooo!!! E o goooolooo!!! do nosso actor
fica elidido. Mas também nós gostamos.
À
noite, na sessão para encarregados de educação, os filhos bisaram e a sala à
cunha. Lembro-me da voz da Gisela numa canção da Ala dos Namorados e de toda a
gente a bater palmas; de as danças serem um primor; do meu actor das dores de
barriga se ter transformado em palco; e a Rita tão miúda e pacata, tímida, a
crescer desmesurada declamando o Cântico Negro num lampejo de eternidade que
electrizou a plateia e arrepiou gente. E de estarmos tão contentes e nos
abraçarmos uns aos outros no fim de cada número. E lembro-me dela a declamar no
ensaio geral e de um garoto que por ali andava ter mofado da ênfase. E logo o
Carlos que tinha fama de ser (e era) arruaceiro, o levou para um canto a
avisar, eu até nem gosto de poesia, mas aquilo é qualidade, ouviste. vê lá se
respeitas o trabalho da miúda, porque se te ris outra vez levas um ensaio de
murros. Chaparro!, chasquinou; e deu-lhe as costas displicente, andar desengonçado, o boné com a pala para trás, satisfeito consigo e sem ideia de que eu o ouvira. Apeteceu-me abraçá-lo.
E
depois as pessoas a saírem agradadas, imbuídas no espírito dos Alphaville, “Forever young”. Música tão bonita, alegre e jovem. Que eu desconhecia. Escolha do colega
e ex aluno, também professor da turma, que nos ajudou nos finalmente. Ensaiámos algumas vezes em
sua casa, sugeriu a música e propôs fim mais realista e menos happy end. Há pessoas extraordinárias e
extraordinariamente humanas. Insubstituíveis.
Fomos
um grupo. Na memória, ainda somos. E seremos. E os Alphaville cantam-nos a nós eternamente.
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