Nesse
tempo, morávamos isolados. Para chegarmos a casa havia que atravessar um pequeno pinhal onde, apesar
da estrada de terra que o ladeava, talháramos vereda serpentina e para nós
mais agradável. Foi na peugada de minha mãe, por entre curva e contra curva, a
perscrutar as copas altas dos pinheiros bravos, que assimilei a informação. Aprendi
que a falta de juízo modifica o aspecto das pessoas. Compreendi a constância do
sorriso, os pais e as irmãs a guardá-la de estranhos, a possível revolta
materna contra Deus. E gostei dela assim inocente e crescida. Por outro lado, enquanto
os meus irmãos corriam livres pinhal fora, no intuito de montarem cavalos
imaginários em troncos flexíveis que eles mesmos tombavam em uníssono de forças,
ela estaria em sua casa, saía pouco e sempre vigiada. Mas, como dizia minha
mãe, por dentro era criança. E as crianças gostam de rir e brincar, de correr
sem destino. Tinha um corpo desaustinado e descompadecido da mente, que enchia costuras afirmativas, facto que não
nos incomodava. Depois da missa, a sua figura alta e enformada destacava
rodeada de crianças. Em seguida, as irmãs tomavam-na pelo braço e conduziam-na ao
automóvel onde um pai paciente e risonho as esperava ao volante. Ela entrava
para um dos lugares traseiros e virava-se para nós a sorrir e acenar ao vidro
até o carro desaparecer. As mulheres desandavam para casa comentando,
coitadinha da rapariga, mas que desgraça que ali está; ela até é boazinha, mas
coitadinha falta-lhe o tino. E rematavam a estugar o passo, Deus nos livre de
uma desgraça assim, o que vai ser daquilo quando os pais morrerem. E eu tinha
certeza que nos domingos ela era feliz e talvez também nos outros dias em que a
não víamos; parecia-me que as mulheres agouravam demais. Falar na morte dos
pais era chamar um facto longínquo, ainda havia muito tempo de bem viver.
Um
certo domingo, as manas sozinhas. E nós num susto. Era sobejamente conhecido o seu gosto pelos dias
em que toda se enfeitava e saía de casa. E quando perguntámos, que estava doente e
não era conveniente sair. E foi assim domingo atrás de domingo. Até que num dia
mais impaciente as manas nos responderam lacónicas, ela não vem mais, parem de
perguntar.
Correu que sofria do coração e não se podia
mexer, que estava tuberculosa e tinha contágio, que os pais eram afinal muito
maus para ela e a tinham proibido por qualquer sua desfaçatez infantil. E logo
houve quem tivesse passado de largo e ouvisse gritos; quem tivesse visto o médico
a sair de casa e mais do que uma vez; quem soubesse de pés juntos que fora sova
e enquanto durassem as negras não via a luz do dia. Na dúvida, as mulheres juntaram-se e resolveram fazer queixa ao padre. O Cura
recebeu-as na sacristia onde um Cristo todo de roxo vestido jazia ano inteiro
num caixão de vidro, as mulheres a rodeá-lo com respeito bichanando, parece
mesmo um morto de verdade, olha lá o sangue que corre da coroa de espinhos,
quem é que diz que aquilo é tinta. E depois, fixas na alvura das mãos do
padre emergindo do luto da batina e enlaçadas sobre a secretária. Ou de olhos a
saltar para a pilha de papéis no canto esquerdo, matrimónios e baptizados em
confraternização de acaso, e outros que não sabiam ler. As mãos em espera. Quietas.
E a mais foita, senhor padre a gente vem por causa daquela rapariga que é
poucochinha, a filha do senhor Vicente que ajuda na igreja, é que a mocinha tem
alguma coisa séria que nunca mais veio à missa. E o padre, fica-vos bem o
interesse, mas têm de perguntar ao pai. Só ele pode responder. E num frou-frou
de saia comprida deixou-as na sacristia com o Cristo morto. Saíram temerosas do
defunto de louça, a benzerem-se às recuas que não é bom virar costas a um Deus
morto, mesmo de faz de conta.
No
domingo seguinte, puxaram o pai Vicente de parte, serviram como entrada o goro na
sacristia e perguntaram. Ele, chapéu de feltro na mão, para cá, para lá, triste
de dar dó, respondeu: está grávida. Não sabemos quem é o pai e nem ela sabe
dizer. E rematou de lágrima no olho, já vai para seis meses.
(continua)
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