A vida é feita
de rituais. Mas gostamos de pensá-los apenas quando um tempo diferente nela
se instala. Se assistimos a uma missa, acompanhamos um ritual. Se enterramos um
morto ou batizamos um recém nascido, também. Ou podemos vivê-lo, se nele cremos
profundamente. Mas um quotidiano celularmente vivido é também constituído por
uma série de rituais. Defendo os rituais quotidianos com unhas e dentes e não
encontro transcendências e êxtases senão no que é humano. Por isso, ir e voltar
do colégio eram rituais. Nossos. Um tempo diferente dentro da normalidade
diária.
Todos os dias,
eu e uma colega pedalávamos dez quilómetros na estrada nacional, desligadas do
ser que éramos no resto do tempo. Por
ser eu uma arvéola (o meu pai dizia arvela, que é afinal o mesmo passarito), ela seguia na frente a comandar a
marcha – bondade sua, que o vento matinal era ali bem mais cortante - e como
era uma loirinha de bastos cabelos, olhos azuis e pernas muito adolescentes e eu
uma criança do Biafra em recuperação, os apitos e adeuses na estrada, as
cabeças todas enviesadas no vidro descido, pertenciam-lhe (seguindo sozinha, ninguém se lembrava de me apitar). E tudo endereçado, força loirinha, a loira é a camisola
amarela, viva a camisola amarela…e outros piropos engraçados. Só na
faculdade descobri a existência de um outro código para abordar as mulheres.
Muito mais estranho e indecifrável. Nesse dia, eu desejava chegar a
casa para contar à minha mãe que tinha enfim alguém a quem escrever em nome
próprio. Pedalei os cinco quilómetros desatendida dos piropos e da própria
estrada nacional, os olhos presos à roda de trás da minha companheira, enquanto o
pensamento imaginava a França e uma amiga, indiferente a distâncias e
outras miudezas de importância nenhuma. E
foi bonita a luz que nasceu nos olhos da minha mãe. Tão de alegria mansa como
só nos olhos dela podia haver. Quando contei ao jantar, o meu pai, vai lá buscar o papel, e depois todos
queriam ler o endereço, apesar de ninguém senão eu saber ler francês, deixa
ver, deixa-me ver também a mim, deixa-me ver. O certo é que dei logo
ali uma aula de francês, que não fazia por menos. Se queriam ler, tinham de ler
como eu ensinava. E pareceu-me que um orgulho fugidio nos olhos do meu pai
quando meio ríspido, guarda lá isso.
No dia de ir à
mercearia – uma vez por semana - a minha mãe comprou-me o necessário para
escrever à Francesa. Pois é, a Bernardette nunca soube, mas lá em casa o nome
dela era a Francesa. E pertencia-me, a Francesa da Beatriz. E, nesse fim de
semana, tratei de iniciar a extraordinária correspondência. Sentei-me durante
umas horas a fazer um rascunho e a passá-lo, completamente entregue a mim
mesma. As minhas irmãs ainda me espreitaram a carta que, ao contrário das que
escrevia às minhas avós, caracolava estranhamente, mas eu logo dei um grito, ó mãe elas não me deixam pensar. A minha
mãe deve ter considerado a queixa, porque veio a defender-me, deixem a mana que ela está a escrever à
francesa. E ali fiquei eu a redigir a minha primeira carta a sério; até me
custava a crer que com selos e tudo. Não sei como se sentirão os escritores
quando se entregam à escrita, mas eu estava acima. Sublime. Agarrei-me ao
dicionário e enchi umas quatro folhas bem medidas. Contei-lhe tudo aquilo que,
pensei, eu mesma quereria saber dela, a minha aparência – devo ter-me descrito pelo melhor, em objectividade de cores e medidas e sem juízos de valor - a
família, o lugar onde vivia, o colégio onde estudava, o que gostava mais e
menos, os rapazes que por acaso não me ligavam nenhuma mas eu dizia que não tinha
namorado, que era muito nova… mentiras assim. Escrevi o endereço com um cuidado
tão grande que a mão suada me tremia. E coloquei os selos, desconhecendo que o
correio para o estrangeiro tinha tarifa diferente. Depois, pus a carta sobre o
louceiro da cozinha e pedi ao meu pai que a metesse na caixa do correio. E,
passados quatro dias, começou a infatigável espera. Todas as tardes fazia a
mesma pergunta, a francesa já me
respondeu? E a minha mãe ou as minhas irmãs um monossílabo a cortar cerce a
ilusão, não.
Mas os dias
foram passando e a minha ansiedade minou de dúvidas. Tinha escrito mal o
endereço, a francesa tinha mudado de casa, não tinha gostado da minha profusão
de ideias… A agravar, as outras duas garotas já tinham as suas respostas. Passadas
três semanas, deixei de perguntar, queixei-me à professora de inglês e pedi
outro endereço. Ela fez um arzinho bem pesaroso e respondeu-me que não tinha.
Então, esqueci a Francesa. Não sem antes amaldiçoar o tempo que lhe dedicara. Não
merecia os meus esforços. Eu, que lhe contara tanto de mim. Intrigava-me o
percurso da carta. Onde estaria?
E um dia em
que voltava do colégio, quando a Bernardette era uma lembrança a desvanecer, as minhas irmãs a correr para a bicicleta, incontíveis, a francesa escreveu-te.
Sem comentários:
Enviar um comentário