Podemos
nem reparar, mas sempre que pensamos em alguém, a razão não o isola. A memória
liga, une. Ninguém nos surge na mente sozinho e em si mesmo, cada pessoa
arrasta um conjunto de atributos, verdadeiros ou fictícios, que lhe apomos. É
por isso que, se penso no meu pai, não lhe penso o automóvel mas a zundap que já não tem e, se acontece passar
de carro por mim, abro em estranhezas, quem
será aquele senhor que me acenou; anexo os gritos e as cóleras súbitas que
nos assustavam (ou me) e que ainda treina por desfastio e eu um continuum desagradado; e vislumbro o seu jeito sério
que ganhou olhos de horizonte – as pessoas quando vão para a idade vestem esse
olhar, como se já não estejam inteiras na terra e exista nelas uma nostalgia de
tudo que é, em função do não ser que há-de vir. Ou a consciência da saudade que
não vão ter. Os olhos do meu pai podem ser duros como aço, cortar como faca
afiada no lugar que mais dói, mas não são olhos lúbricos, malvados ou
escarninhos.
Às
vezes, que são agora mais vezes, visito-o, dou-lhe pequenos nadas que sei que
gosta. Ele não visita. Excepto quando há uma doença que considere grave. Uma
vez adoeci e entendeu que. Aparecia ao domingo de manhã, quando estava sozinha,
a fazer-me as suas próprias queixas e distraía-me um pouco das minhas. Porém,
se elas me tomavam de assalto, ele torcia as mãos de desconforto. Gostava
dessas visitas de médico em que chegava cheio de pressas, a anunciar que tinha
de ir a um sítio, me dava um beijo rápido e, então
filha, estás melhor, e depois a meio do quarto, muito interessado na
janela, até que eu, pai
sente-se aqui ao pé de mim. É assim, o meu pai. Cumpre o dever, deixa-se
afectar pelo sofrimento, mas não consegue mostras. Vi-o chorar duas vezes.
Soluços grandes e quase sem lágrimas, de costas para mim, o rosto entre os
braços encostados numa parede. Imagino que possa ter chorado mais vezes.
Talvez. E já vivemos juntos difíceis estrangulamentos de ampulheta.
Noutras
ocasiões, encontro-o em serviços fúnebres, como se nós velhos conhecidos ou familiares
mais ou menos distantes. E sou eu que o vejo, os olhos de horizonte cavalgando
a figura hirta de silêncio, boné na mão, nunca dentro das igrejas. Junto-me a
ele. Penso que o meu pai tem um certo orgulho em mim, mas não sei se alguma vez
que eu o não repare, ele se aproxima. Há pouco tempo, encontrámo-nos assim,
acompanhei-o e deu-me, depois, boleia. Quando me deixou, meteu a mão ao bolso e
ganhei uma chave do portão. Lembrei a quinta a que chamamos “a nossa terra” e
nome que mais lhe quadre, não existe. Os vizinhos erguiam muros e vedações e a
nossa terra à solta. Ainda assim, dizíamos, vou
até ao portão, parei ao portão, a mota do pai caiu quando virou ao portão (e
quanta vez aconteceu). Mas
não havia portão nenhum. E
agora, que já foi para aí há uns dois anos, só por causa das coisas, o meu pai
pôs mesmo um portão no que era só o sítio. Fiquei a olhar para a chave e a
pensar nisto tudo ao mesmo tempo, o meu pai atrapalhou-se com ter demorado dois
anos a decidir dar-ma e gaguejou umas explicações, mas eu pensava no portão
imaginário, sem grades nem limites. E enchi-me de pena da terra feita poeira
queixosa, em remoinhos cinzentos, num isolamento sem destino. Depois agradeci e
tratei de o descansar, na verdade não esperava tal chave. E despedimo-nos como
se eu uma miúda, não percas a
chave, ouviste.
Portanto,
se o visito, saio do carro, abro o portão, entro de novo, passo, saio para o
fechar à chave e sigo até à casa. E à saída repito tudo. O meu pai fica no meio
da rua a ver a manobra. Todo importância, como se o portão uma coroa. E palavra
que não entendo para que serve este enredo. A vedação da quinta é baixa, tem
malha larguíssima e já rebentou em vários pontos. Ainda assim, o meu pai exige
a toda a gente que feche o portão à chave por
causa da ladroagem.
Na
última visita, avisei-o e já me esperava como quem não quer nada, conversando
com a vizinha que por acaso é minha tia, a deitar rabinhos de olho ao portão.
Gosto que me faça lumes e sempre lho peço, apesar de me ser difícil a televisão
com o som no máximo. É um dia. E logo me disse que não tinha feito o lume,
estava calor. Era verdade, o dia pedia rua, a brancura de braços e pernas às
espreitadelas, a avançar confianças e despudor de decotes e brechas na tepidez
do dia, gratos ao sol e aos ardis da brisa. E ficámos conversando por ali.
Depois calcei as botas de borracha dele e, de saudade, fui apanhar laranjas e
tangerinas a falar com elas e com as ervas que quase me chegavam à cintura. E o
meu pai na rua a ver, talvez contente. Quando deixei os sacos de fruta no
porta-bagagens, ele recusou lanchar connosco e foi para casa. E nós, eu e a
minha tia, para a mesa. De repente, o meu pai a chamar-me da rua. Fui ver. Toma lá para o lanche, e quase fugiu para casa. Era um pacote de bolachas de
baunilha. O meu pai. Que, em pequena, me deu coisa nenhuma. Tem vezes em que o
amor é simples.
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