Em primeiro lugar, estou à vontade porque a avó Luísa se chama outro
nome, não sabe ler, nunca mexeu num pc e não imagina que alguém a queira de
assunto. Em segundo, estou à vontade porque não é minha avó e menos ainda
suspeita que eu escreva o que quer que seja, sem ser o de obrigação. Em não sei
quantos lugares, estou à vontade porque este espaço é meu e faço nele o que
muito bem me apetece. Acima de tudo, tenho enorme prazer em pensar e escrever
sobre a doce velhota.
A avó Luísa é o meu protótipo de avó. Se penso numa avó, é ela que me
aparece na cabeça. O único conto que escrevi tem uma avó Luísa, roubada à minha
avó Luísa que nem é Luísa, nem é minha avó. Sou pródiga em relações familiares
com quem não me é nada. E também em não ser nada a quem me é do sangue. Os meus
afectos desligam-se da consaguinidade e distribuem-se por onde calha, de acordo
com as inclinações que Kant condenou. Os
filósofos são grandes pensadores, homens de respeito, sabem o que dizem. Mas,
no restante, apostaria que vivem parecidos a nós. E, quem sabe, comungam dos
nossos desaires de viver. A verdade é que aquilo que somos não nos vem só de o
conhecermos.
A minha avó Luísa não sabe o que é a filosofia, mas filosofa. É uma
morena de óculos bem graduados e olhos longínquos e meigos, tornados assim de
tanto olhar e compreender. Tem o esqueleto dentado pela osteoporose, os braços,
pulsos e joelhos partidos e mal colados várias vezes. Nela existem erros
médicos graves que a afligem de dor constante, a impedir movimentos ad aeternum.
Temo que caia por onde se movimenta em cautelas de bengala. Vive ainda em sua
casa, com o marido que tudo lhe faz. Após tanta queda e operação, não consegue
sequer lavar loiça. Visito-a e abre um sorriso bonito, que
me faz valer os passos. Porém, sofre imenso. Mostra-me os aleijões da artrose,
inchaços inexplicáveis do corpo, um dos joelhos igual a uma bola de
basquete. Sem uma queixa, os olhos muito sérios fixos nos meus, lábios
apertados num veredicto de imutável, mãos púdicas a subir meias e a baixar a
saia. Chamo-lhe avó com o prazer de a ter escolhido para sê-lo, mas ela
trata-me com alguma cerimónia e já lhe fiz notar que não é modo de falar a uma
neta. No seu coração, não sou igual às netas. Ou sequer às bisnetas. Mas a indiferença não consegue tal alegria.
A avó Luísa carregou no colo um dos meus filhos e nunca se esquece de querer
sabê-lo. Certa vez, ainda mal a conhecia, trouxe-me um pombo já depenado, para uma canja. Vinha embrulhado no avental, como se fosse nada. A minha
avó Luísa dá e quase não se vê que estende a mão. Várias flores do meu jardim
encontrei-as à porta, pela manhã ou tarde, sem saber do dador. Depois, passado algum tempo, contava-me que fora ela.
A avó Luísa tem a minha atenção de amor. Se um carro à sua porta, corro a saber o que se passa. Dá-me ramos de salsa, fala-me dos regos das
couves e do cebolo, conta-me proezas da descendência…e não se queixa das dores,
de quase não poder andar, de tanta vida que deixou atrás.
E
gosto de estar com ela a apanhar um solinho, viradas à horta em
simetria; olho-lhe a artrite dos dedos, as sardas das mãos a pintalgarem o regaço. E a minha mente espreguiça-se no desejo de ser empírica e devir incólume folha branca. Em paz.
Sem comentários:
Enviar um comentário