Coube-me em
sorte estudar num colégio religioso para raparigas, única escola da minha
terra. Foi uma bênção do Olimpo a esta humilde servidora e, na corrida das
preferências, o colégio continua desmarcado. Era um mundo bem diverso do meu, com
tudo no lugar, tempo em que vivi aristotélica e organizada, as coisas a tenderem
para o seu lugar natural. As minhas freirinhas vestiam hábito e, para mim, espreitava-lhes uma aura sobre a cabeça, o que aguçava a graça natural das poucas
professoras laicas que nos entravam vida dentro. Vida, pois. As professoras –
com ou sem hábito - eram parte da minha vida. No terceiro ano, a novidade da disciplina
de inglês trouxe-me uma nova mestra; e de imediato me tomei de amores
tumultuosos e birrentos pela paciente jovem. Lembro-lhe as pernas finas e
elegantes em estalidos de ossinhos, enquanto passeava a delicadeza dos sapatos
entre as nossas carteiras, eles impantes, Olá,
como estão. Aturdíamos no mistério das meias de vidro que desapareciam no
alabastro das pernas e nós em dúvida acesa umas para as outras, traz meias?, e logo as mais sábias, se não trouxesse, a irmã directora não a
deixava nem entrar. Descansava-me a voz calma, a juventude da pele, a
ternura verde do olhar. Uma Miss. Que ainda por cima me passava à porta,
sentada muito direita, ao volante de um carro verde comprido, moldura adequada ao etéreo da sua beleza. O máximo. Faladora inveterada, tornei-me a tagarela das
aulas de inglês, o resto da turma ainda imerso no fascínio francófono e em
retaliação a rudimentos de conversa anglo-saxónica. Aplicava-me de gosto na disciplina, estudava
a fonia das palavras com o empenho de um cientista ao microscópio, mas, se a
professora me calava ou ousava interessar-se por mais alguém, do meu
ressentimento de birra nasciam aulas tumulares. Quando mais tarde a
reencontrei, o único que recordava de mim eram as birras. Portanto.
Uma manhã, a D. Maria Luísa abriu a aula com
uma novidade: ia oferecer às três melhores alunas o endereço de garotas
francesas que se dispunham a ser nossas copains,
palavra que só valorei depois de lauta correspondência. Não entendi por que
razão as garotas haviam de ser francesas e disse-lhe isso mesmo, no despudor de
inconveniência que ainda hoje me caracteriza. Ela corou, baralhou-se um bocado,
falou-me de outra escola e mais não sei quê que já perdi a esperança de
entender e passou à frente. Influenciada pelos Corín Tellado das minhas tias, logo imaginei que o rubor tinha a ver com um amor qualquer que, manda a
honestidade, nunca descortinei.
Fui a última a
escolher. Desdenhado pelas minhas colegas, o endereço da
Bernardette sorria-me de um papelito dactilografado. Agarrei-o satisfeitíssima.
Mal sabia a francesinha com quem se metia. Como diriam as minhas queridas
professoras, Maria Auxiliadora dos
Cristãos!, apelo que me trazia à memória grandes e renhidas lutas de
cruzados. Pelo que, sendo esta a sua exclamação preferida, o colégio encontrou-me
sempre a cerrar fileiras. Um soldado. Mas gostei. A Valer.
Ora, um dos
meus maiores prazeres é a escrita de cartas. Escrevia cartas às minhas avós, a
encher folhas e folhas de que elas duvidavam, habituadas ao estilo telegráfico
de outras escriturárias. Mas, na volta do correio, as pessoas agradeciam sempre
as novidades tão de pormenor e eu bem via o contentamento em que os olhos lhes
ficavam. A minha técnica era simples, esperava o assunto (a
escrita das cartas também daria bons posts) que germinava lá dos fundos e me
secava a tinta no aparo. E quando elas saiam do anh, anh,anh… mergulhava a
caneta no tinteiro e, borrões à parte, escrevia a meu modo, a carregar de
letras linhas e espaços brancos, até abalroar as duas folhas. As margens eram-me
obtusas e invadia-as de assunto. E de certeza, misturava frases dos romances que
lia, no quotidiano ditado. Esmerava-me para gente que nunca soube quem era, num
tempo em que Portugal me parecia enormérrimo.
Lembro-me de uma prima que morava no Vale de Santarém, que eu calculava ser o fim
do mundo. A palavra vale sugeria-me um lugar muito fundo e só presente depois
de subir e descer grande quantidade de montanhas – ai a minha geografia - e a
minha avó encompridava a distância a garantir, é muito longe, ela coitadinha não pode cá vir. No meu imaginário, a
tal prima perdia-se se tentasse. E agradava-me escrever cartas para o fim do
mundo. Imaginava o caminho da carta, a ir, a ir, a ir….
Portanto, ter uma copain foi um
benévolo acontecimento. Encheu-me de ideias solares e conversas de mim para mim
( converso muito comigo). Tudo em francês.
E se o Vale de Santarém já era
longe, imagine-se a França.
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