Ganhei
hábito de janela e olhares matinais
quando me mudei para o apartamento lisboeta. Contudo, continuo sintonizado com o ritmo aldeão e emito sinais
de vida aos primeiros alvores. Apesar dos meus cuidados, minha mulher rabiava
que não dormia uma manhã em descanso. Tudo lhe perturbava o ouvido de tísica, a
cozinha de pequeno almoço, a água corrente na casa de banho, tosse, passos de chinelo, o alvoroço do cão na porta
de entrada a farejar-me os movimentos. Nesse tempo, a rua não me chamava. Bastavam-me os ingredientes in(ternos). Havia
um jeito de lar nos cheiros de cada canto e em cada coisa no lugar;
uma certeza de gavetas; certo aconchego de ninho previdente. Entreabria a porta
do escritório e, na mesinha, longe de indiscrição visitante, os filhos sorriam-nos
desde a juventude; logo ao lado, todo arte fotográfica, o primeiro neto. Um mundo que foi eterno até à estranheza de não me apareceres estremunhada, mãos a algemar
cabelos num elástico, voz pastosa, bom dia, amor. Abri só um pouco a persiana
do quarto. Dormias. Contornei a cama, apanhei-te as mechas sobre a cara e
acamei-as atrás do recorte da tua orelha de porcelana fina; e tu em modo de
olhos fechados. Sussurrei no teu ouvido, preguiçosa. Mas não consegui
acordar-te. Meu amor. Meu tão longo amor de curta vida. Diz-me quando em exacta
colher me deixaste, em que minuto partiste, qual o momento em que a tua alma
voou do meu braço abandonado no teu corpo.
E
logo a casa se transformou. Desencantou dos cheiros vitais, ampliou de recantos
sombrios alongando pelo espaço onde os meus passos ecoavam. Quando a almofada
perdeu a forma da tua cabeça e o perfume deixou de cheirar a ti, vendi a casa e
dei o cão ao vizinho pequeno, aquele que o beijava entre as orelhas e fazia
dele cavalo. Foi assim que criei tempo para o vento na copa das árvores, os lulus passeados na manhãzinha por donas descompostas, rolos na cabeça e
roupão, uma sofreguidão de vício a subir-lhes pelos dedos de nicotina. Envelheci,
Amor. Árvore de raiz podre, não me aguentei ao teu balanço. Talvez tenha acontecido na vez em que parei a
meio da escadaria, uma moínha leve a rondar a perna esquerda. Ou, quem sabe,
foi anterior e começou no teu desafio, vamos ver quem chega primeiro. E ganhaste-me
logo no segundo lance de escada. Não sei precisar. Durmo do teu lado da cama
que nunca te teve (durmo é eufemismo para as horas de posição horizontal). Tu
sabes. Deito-me e a dor mostra-se. Persiste. Não é severa, antes um sinal de erro, máquina com anomalia. Talvez na
cabeça do fémur, que qualquer escadaria me maltrata e o terceiro andar sem elevador, um martírio. Não demove com repouso e recusa abrandamentos nocturnos. Tiveste
a sabedoria de abandonar o corpo na idade certa, que logo, logo, ele se
tornaria incerto. Não sabes o desfalecer de tudo, a desimportância de rugas,
meros vincos que nos desfiguram; os brancos que encanecem e avelhantam; a pele
do corpo que sobra e pendura a cada dia. Não, essa metamorfose é resíduo. A mágoa
é não ser capaz acompanhar quem nos cerca. Querer ir e
ter de ficar; ter alma de experimentador e
ficar a olhando por janelas reais e virtuais. Ser velho exige, em permanência, um reajuste no agir. Sempre a minguar.
Sem comentários:
Enviar um comentário