Encontrei-a
entre aviões, tão perdida quanto eu num grande aeroporto. Duas mulheres em
trânsito, idades e destinos diferentes. Era Inverno e um manso nevão
aconchegava-se pelos hangares e pousava no dorso metálico dos aviões. Nessa
noite, o aeroporto regurgitava de gente. Enxameava. Gente retida a meio do percurso, crianças de
colo e birra, um embaraço de malas junto às pernas, ou em ruidoso e arrastado cirandar.
Viajava
sozinha e tentei afastar-me do ruído na mira de um canto sossegado onde pudesse
dormir um pouco. Reparei nela quando juntava as malas. Era jovem e estava
sentada no corredor em frente do meu, semblante contrariado. Imaginei que o
jeito contrariado se devia ao incumprimento de horas e afazeres no ponto de
chegada. As previsões eram catastróficas em relação a compromissos: os voos nocturnos
tinham sido cancelados e na manhã seguinte, já sem queda de neve, a seriação
das rotas fazia-se pelo atraso que detinham. Com sorte, o meu voo saía pela
tardinha. Os hoteis do aeroporto estavam superlotados, não havia onde albergar
toda a gente.
É
sabido que aeroportos e aviões aproximam desconhecidos. Habita-os uma tal
precariedade que normais pruridos se dissolvem. Ao fim de uns minutos de
mutismo, eu e ela conversávamos como colegas de trabalho. No vaivem de
descobertas e alguma afinidade, e porque nos desagradava a noite branca de
corpo sentado, resolvemos abandonar o aeroporto e procurar quarto na cidade. Guardámos
a bagagem maior e um taxi levou-nos ao hotel. Outros viajantes tinham tido o mesmo
pensamento e o único quarto disponível era um quadrado mediano atravessado por uma
cama larga. Olhámo-nos rindo e dei-lhe a escolher entre o lado esquerdo e o
direito. Dormir acompanhada era-me difícil e estranho, mas não havia escolha e o
cansaço da viagem pesava-me no corpo. Enquanto a minha companheira retirava a
maquilhagem no espelho do quarto tomei um duche rápido e enfiei-me na cama. Depois,
fiquei a ouvir o som abafado do chuveiro por entre apreensões, e se ressono, e
se não consigo adormecer e dou muitas voltas na cama, e se. Mas, ao invés do
que pensava, caí num sono profundo.
Sonhei
com mãos suaves a soletrarem-me o corpo; sílabas paradas e repetidas até à exactidão
do som, espaços que o desejo preenchia. Temia o desfazer do sonho. Queria ficar,
permanecer nesse mundo de calor e companhia, prolongar o bem quimérico de me
sentir amada e indefinida. E as mãos que. E infinitamente me amavam em cada
arco e grinalda de dedos, o corpo a fugir-me, a fugir-me. Algum animal me
enrouquecia na garganta e me fechava as palavras, as escondia e eu apenas um
som de liberdade sem nexo por onde enfim respirava. E quando recuperei braços e
mãos, senti-os a serem mansamente levados e deslizavam já na suavidade cálida
da pele. Subi-lhe a cintura a medo e dúvida, dedos incrédulos na elevação do peito de mamilos
erectos...afastei-me de rompante, agora bem acordada. No horror de ser verdade
desviei-me dela num misto de nojo e estupefacção. Com o meu corpo. Com ela.
Connosco. Na mente, em néon, um e agora gigante. Tentei levantar-me e as pernas
prendiam-se nos lençóis, não conseguia erguer-me.
Acordei
quase a cair do banco, salva pela trincheira da bagagem. A mulher continuava na
minha frente e olhava-me como quem vê bicho raro, uma expressão curiosa a
vestir-lhe o semblante. Posso ter corado. Posso. Alheia aos meus íntimos motivos, ela levantou-se e
rumou ao destino. O tempo que nos aproximou também nos deu distância.
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