Nos
primeiros tempos não dei por ele. Transpunha a cancela a adiantar hipóteses, fixo
num futuro de papéis, rememorando urgências telefónicas e post-it, minutos em desconto
para um café. Confesso, não o via. Passaram meses até lhe notar a atenção.
Rasa. Fluida. Creio que foram os olhos funcionais. Ou tínhamos, em verdade, de nos cruzar.
Naquele
dia, pretendia chegar com algum avanço a
um encontro importante. Queria rever os pontos fundamentais da negociação e
relembrar estratégias e pormenores. As informações sobre a gestão e
personalidade de quem me aguardava corriam-me a bold na mente e sabia que o
acordo entre ambas as partes dependia da transição entre a exigência flexível e amigável e a imposição em
trompe d’oeuil que cerceia amizades. Tinha sido escolhido por isso mesmo. Sem
falsa modéstia, dominava essa arte de dar e retirar sem mão, parecendo que dava
mais do que subtraia quando sucedia o inverso. Claro que vendia o produto apoiado em cálculos
e dados reaise transparentes, mas escamoteava
especificidades que os tornavam pesados e menos lucrativos. Esse era o ingrediente
secretíssimo. Na vida empresarial, a transparência conquista-se, iça-se do
fundo de água turva onde nasce o lucro. Enredado neste conciliábulo, só reparei
na avaria da cancela quando, imediatamente antes de embater, o homem avançou,
abriu manualmente, e regressou à cabine envidraçada. Irritei-me. Baixei o vidro
na intenção de um ralhete. E dei com os olhos dele sem expressão, meros botões atentos
e já acesos para o veículo que transitava atrás. Levantou-se. Imaginei que iria
proceder a idêntico conjunto de movimentos. E desisti. Afinal, eu vinha
distraído e ele executara a função em tempo útil, de modo a evitar colisão. Acelerei
até ao meu lugar no estacionamento e quando entrei no elevador, já o esquecera.
A
vida tem caminhos por onde seguimos atarantados e em corrida insana. Na mira
dos pontos de chegada, não os reparamos, estão sem estar. Contudo, nada é tão
aberto e disponível. Teremos de palmilhá-los. Ou não. Pode a morte apanhar-nos
a meio, ou a um quarto. Notá-los é a única forma de os viver e sermos gratos.
Os caminhos que a vida – quiçá um deus – nos deu. Chão dos nossos passos. Mas
isto era assunto que, então, não me ocorria. Caminhava como os jericos, a olhar
em frente. Os objectivos como degraus, nem sequer metas ou zonas de verde
respiração. O caminho existia-me em forma de subjecividade radical: dizia
respeito à velocidade e tipo de passada, ao número de degraus transpostos. Competia
comigo mesmo.
Nesse
fim de tarde, saí a pensar numa bebida. Fora bem sucedido. No dia seguinte,
iniciava outro desafio. Apetecia-me fechar
o dia. Adormecer no sucesso. Pensei vagamente que um brinde não ficaria mal,
mas não havia com quem, o mundo de colegas laborais era pouco atreito a
celebrar vitórias de outrém e a namorada estava longe e em trabalho. Tomaram-me
de assalto as suas pernas a sairem da t-shirt, os pés descalços, mamilos a
enrugar o algodão, e alaguei em ternura. Concentrei-me na escolha do lugar, o sorriso
meio irónico e cabelos de rapazinho maroto a persistirem. Afastei-lhe a imagem e, enquanto atravessava a
rua, fitei a mancha escura de árvores copadas. Gostava daquele lugar fora do
bulício. Entrei. Uma luz discreta
iluminava o interior. Sentei-me nos fundos, alarguei o nó da gravata e pedi. A
meio da garrafa requisitei outro cálice e chamei o empregado, importa-se de
brindar comigo? Ele trouxe um copo, largou o tabuleiro sobre a mesa e encheu os
dois. Quando o ergueu li-lhe o nome na chapinha de metal: António. Olhei-o
vagamente, À nossa. Bebeu de um trago e, sem palavras, voltou à sua lida. Não
agradeceu. Cumprido o desejo do cliente, retomou a actividade. Alguma coisa
nele me parecera familiar, mas julguei tolice. A essa altura já o mundo me
parecia risonho e eu era leve. E desliguei.
Passados
dias, o funcionário da entrada pede para falar comigo. Tratamos do assunto, olho
a chapinha do nome e, António. Era ele. Os mesmos olhos sem expressão, corpo de
nem orgulho nem submissão, solicitude comprada. Quando à noitinha fui
confirmar, encontrei-o no pub. Um desempenho perfeito e maquinal.
Intriguei
com o homem. A empresa não pagava mal, o que o levaria a deter dois empregos?!
Investiguei com o dono do pub, mas conheciam-no apenas dali. Usava pontualidade
inglesa, calado e sem amigos. Satisfazia em absoluto no trabalho. Quando o
investiguei na empresa verifiquei que estava indicado como trabalhador de continuidade,
não faltava e não existia registo de queixas.
Entretanto,
comecei a passar a cancela com um aceno de cabeça que só os olhos dele pareciam
notar. Se voltava ao bar, a resposta ao meu cumprimento não diferia de nenhuma
outra. Continuávamos estranhos. Certa noite, não aguentei a curiosidade e
esperei-o no fim de turno. Apareceu com um cãozito pela trela. Silenciosos
ambos. A sentir-me um estorvo inquiri, na sua idade, dois empregos são castigo,
se precisar de dinheiro...Olhou-me sério. Andou uns passos comigo e o cão ao
lado. Sentia-me um inútil, a chave do carro a bater-me nos dedos, sem saber que
fazer. Parou e sem se voltar murmurou a olhar o alcatrão, há tristezas tão
grandes que perdemos o tino, deixamos de mandar em nós. Mas ainda reagimos a
ordens. É por isso que tenho dois empregos. Olhe, sou como este cão. Só que não
tenho dono. E afastou-se.
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