Viajo
às vezes com meus primos. Minha mãe parece confiante na sua mestria de
guardadores de jovens casadoiras e mobiliza-se a encontrar-me indumentária
que ajuste ao suposto acerto matrimonial. Meus primos, solitário casal de meia idade, nem velhos nem
novos, vivem regaladamente para si mesmos. Ou é assim que os julga minha mãe no
seu inglório afã de queixas acerca da minha pessoa e da falta de jeito para
encontrar a metadinha. Habituei-me pois a esse acerto de férias que a deixa esperançosa
e livre para amigas e passeios. E parte contente depois da visita ao seu
coronel que dorme tapadinho com a colcha de renda antiga na prateleira do
jazigo onde, diz ela, eu a hei-de levar um dia sem pena ou paixão. O que não é
verdade. Minha mãe é senhora tão avessa a costumes maternais que a sua suculenta alforria por certo me
deixará saudade. Mercê desta espontaneidade que não
herdei, conquistou meu sisudo pai, sempre temeroso de repentes tão prazeirosos
como inoportunos, e que tanto o derretiam como irritavam. Contava que o seu riso
alto na parada, de costas insolentes para os graduados, o prendera sem remédio.
Quando eu nasci após nove meses em que maldisse a maternidade e nos arriscou quanto
pôde, sentiu-se livre de encargos e tratou-me como brinquedo favorito que
passava à empregada mal me desconfiava pessoa.
Ora
meus primos, aqueles a quem minha mãe me entrega nas férias por julgá-los
empenhados no meu futuro, ou seja, num casamento decente, levam-me consigo na
mira da sua prodigalidade. Mais novos que ela, limitam-se a carregar-me sem
outra obrigação. Eu agradeço a liberdade e pouco saio sem eles. Assim
conheci lugares e hotéis, sem experiência das amizades românticas para que ia
talhada. Em compensação, sobra-me tempo e disposição para estudar os dois.
Há
nos casais sem filhos uma união que minha mãe não supõe e eu experimento sem
evasivas. Ela nomeia-os pais temporários. E eles não saem do casulo. O casulo
de meus primos é circular, sem ângulos e acutângulos. Tudo gira em volta de
prima Fininha, Josefina de seu nome. Ela marca a hora de sair, de ouvir música,
de falar. Antes do seu pestanejar matinal, a casa é um sepulcro. Primo Gustavo,
sempre tão quedo, todo se empertiga ao menor som, cuidado que Fininha dorme. E
fica na sala contígua ao quarto, cão de guarda ao recato de Fininha. Ora minha prima acorda tarde e o seu humor
trabalha a horas de sono. Se incontornáveis acasos nos levam a madrugar,
Fininha exaspera, irrita, grita, amua. E bom é quando a nossa menina decide num
repente, vou dormir. Enquanto Fininha dorme, pára tudo. Que ela sim, é a
menina. Uma menina pequena. Mimada. Mandona. Minha mãe supondo que passeio nas
alamedas com meus vestidos de arrasar e eu a usar silêncios matinais para ler, pensar, escrever. E faço orelha mouca aos vestidos que confrangem,
não saímos do cabide, para que viemos.
Se
acaso Gustavo se levanta primeiro, surge na sala em bicos de pés e comunicamos um
com o outro em secretismo tão inaudível que mais parecemos conspiradores. Se
pudesse, faria campânula vazia do mundo exterior só para não perturbar a amada.
Fininha não cozinha, só come. E come voraz, numa pressa que minha mãe estranha,
parece que tem medo que a comida fuja, mastiga como um furão. Desconfio de
minha mãe que nunca viu um furão nem sabe dos seus hábitos alimentares. No
entanto, concordo, a prima é senhora de invulgar mastigação e parece sofrer insaciável fome de séculos.
Nas
férias (e desconfio que em outros tempos), primo Gustavo orbita-lhe os gostos mínimos e também os máximos. Ela que, se eu ousar uma compra criteriosa, me afirma criança aborrecida (trata-me assim) que a faz perder tempo, entra e atarda-se em experimentação do que
bem entende. Cá fora, primo Gustavo espera paciente e sem recriminar, contente da
compra mesmo antes de a ter visto.
Na
hora do jantar, Fininha recreia a cortar no facebook.
Nos utilizadores. Nas fotos que por lá deixam. Que há muito quem viva pendente desse
mundo de faz de conta. Mas antes de sair, e também antes de deitar, ensaia poses
e fotografa-se; se desanima por um assim ou assado, pede a Gustavo que a
fotografe, exige um ângulo depois do outro, muda o penteado, vira-se do outro
lado, sorri só com os olhos, põe mãos em evidência, esconde cabelos. E
etecetera. Se fica um momento em avaliação e a foto agrada, corre ao face a divulgá-la.
E
ora esta que não chego a vestir os vestidos de anzol. E nem tenho conta no
facebook. Decerto me desencontro do Gustavo que me cabe e nem sei bem para
que o quereria.
Mamã,
tenho certeza, certezinha absoluta, fico para tia.
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