Antes,
eu julgava que preparar a casa para férias já eram férias. Hoje, por via do
ininterrupto fio do tempo e sedimentada de horas extra-longas, reconheço, não sou
a mesma. Divirjo. Emprestar à casa o espírito de sobrevivência cansa e
exaure-me. Se pudesse, saltava esse patamar. Ele são flores em chamado urgente,
rega-me que tu é que sabes a quantidade
exacta de água e nem calculas o que custa o atoleiro nas raízes, ir morrendo a
partir do fundo da alma que não sabe nadar e se
afoga e apodrece nos dedos da terra em papa. E tu não falhas a
circunstância. E depois segredam-me ternuras enquanto aplico o regador, coisas
como, não te demores que precisamos de ti, se não voltas, esquecemo-nos de
florescer; ou sussurram no fim de tarde, volta ou não aguentamos de saudade,
morremos, definhamos aos poucos. E num aviso de cautela, vê lá se tens cuidado
que somos inertes e prisioneiras, à mercê de quem vier. E depois há a casa, o
lava loiças, as bancadas da cozinha, o fogão, as mesas de cada divisão em
lamentos que me tolhem a cada passo, teimosia de esperança que me atrasa o
espírito viajante. E finalmente saio e fecho a vida caseira na redoma. Vejo-a
de longe, sem som que lhe valha, como se não fora minha, mas sendo. O ar do
aeroporto saturado sabe a oxigénio e empurra-nos para o pássaro de aço e sua
arrebatada força de propulsão. Subir. Sentir o continuum de aceleração e as
rodas da frente a soltarem-se do asfalto, e logo após, num ápice, as de trás.
Estamos no ar. A paisagem
agiganta na proporção em que o conteúdo diminui. Tudo a encolher, casas que
ainda são casas, arcos breves em ponte, estradas em cobra , rios que são fitas azuis
como nos mapas da nossa infância, Tejo, Douro e Guadiana. E eu no exame da
quarta classe, qual é o maior rio de Portugal?, a falta de investimento na
geografia somada à desorientação congénita, Guadiana. O examinador a faiscar,
todo olhos a saltarem detrás dos óculos, um repente de rosto afivelado em zanga e escândalo. E eu a diminuir
como a paisagem, bicho de conta a sumir de susto e falta de sorte, não era
este.
Sobrevoamos
as nuvens, há sol, as hospedeiras afadigam-se sobre um chão falso a preparar
uma refeição de faz de conta e esvaem-me a infância de bata branca. Embarcamos
em uníssono no trivial que não é de uso: mastigar em voo, a mais de 2000 metros
de altitude. Convictos de que não se cai a mexer o café ou dar dentadas num
muffin. Mas cai. Confiados em pilotos de porte garboso. Esclarecidos de que o
rei pilotou estes aviões. E um rei, não é por nada, mas infunde respeito. Diz
uma colega convicta, repare na tinta que gastaram a pintar os aviões, aquilo é
a sério. Olho e confirmo, navegamos num
golfinho azul e coroado, gastaram muita tinta. E torna ela, sapiente, isto não
é qualquer tinta, que se esbarrondava toda na alturas se fosse barata; não,
não, é tinta da boa. E muita, esta companhia é como deve ser. Válidos
argumentos. Convenceu-me.
Em
Cracóvia noite fechada, aeroporto sonolento e a adormecer por sectores. Um
bólide xpto em espera. No interior, música polaca de mistura a Roy Orbinson, Gipsy
Kings e Gene Kelly (e nós) a cantar singing
in the rain em lugar de bom tempo. A caminho de uma casa que nos espera e já
é nossa. Do século XIX. Fresca. Airosa. Portas em silêncio codificado. Entramos
no cofre. E assim permanecemos, guardadinhos para amanhã.
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