domingo, 22 de abril de 2018

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Relendo, até parece apenas um passeio virado à cultura já feita e pronta ao disfrute.  Mas o bom de ele haver foi a miscelânea ancorada na boa companhia.  Madrid é lugar a que volto também pelos laços, aqueles fios que nos atam uns aos outros e não gostamos de perder. Lembro a casa no centro da cidade e ainda sei o cansaço das pernas em cada degrau; a porta de então, ontem sempre aberta e hoje cerrada; o largo para onde davam as janelinhas de água furtada e que mirava com olhos de pardal de telhado; a vizinhança cosmopolita  do hotel de que éramos vizinhos e foi recauchutado. Não seremos os mesmos. Mas o que nos unia é chão descalço a guiar-nos a mudança. E aquela amizade juvenil, vinda do fundo dos tempos. Em palpação mental depois de trinta anos. Quatro tolos a procurar no rosto uns dos outros as linhas de entendimento que a alma sente. E as fotos, mostra dos anos e das gentes que nos habitam. E o brinde a nós e a todos os que gostam de nós. De permeio, o passado dissemelhante do futuro extenso que, sem haver, nos existia nesse tempo de passeios descomprometidos.  Tão felizes que nós éramos nos interstícios  das dificuldades que ensombravam cada um. E que bom o reencontro. Que bom constatar que Xavi mantinha disponível para nós a mesma ternura delicada. Xavi, que continua simples e ele, apesar do que foi ganhando com os anos. Que sofre de cirrose de grau um e nunca bebeu, continua a jogar futebol três vezes por semana e tem três filhos lindos e dieta apertadíssima. Mas a ternura calma dos olhos. É nela que somos aceites. E logo o  resto desimporta.
E depois houve a serra (não sei qual) e o ar rarefeito a infiltrar, um friozinho insidioso em dia soalheiro. E a neve gelada nos caminhos, mais de um metro de altura. E os incríveis esquiadores que desciam “a bola do mundo” à velocidade da luz.  Nós cá em baixo numa angústia, ai se caem; ai se vêm por aí abaixo de escantilhão, descomandados, e esborracham no alcatrão; ai se. E não aguentámos, dirigimo-nos à pista de aprendizagem ou morríamos aflitos do coração por aquelas paragens. Filhas de minha mãe jamais seriam capazes de se armar de esquis e andar para ali ao frio, sabe Deus a quantos quilómetros por hora. E isto, vejam bem, depois de milhentas quedas. Que bem os observámos aos trambolhões na pista de aprendizagem. Contudo, bateu-nos um suave de ternura, olhos a acompanhar aquele garoto que cambaleava estrada fora.  Dois minúsculos anos,  botas de esquiar enfiadas, o pai a segurá-lo pela mão e por vezes a içá-lo.  Sob o ombro do homem, um par de esquis pequeninos, em pose de brinquedo imperturbável, espreitavam do saco.
Oh! E houve os petiscos madrilenos. Que sopa e segundo comemos em casa e só transigimos na paella. E os deliciosos folhados das pastelarias Viena que Deus as conserve e tinham certo ar do Majestic mas sem a majestade, o que é motivo de agrado, não quadramos com a realeza. Mantêm idêntico traço de época, amarelos e espelhos. E tal. Deus dê vida longa e feliz a quem ali nos levou. Que se os deuses passeiam pela terra, de certeza vão lá lanchar.
E El Rastro, que é só uma feira de rua semanal. Mas seria a nossa boutique se por ali vivêssemos. Em ruas pedonais e infestadas de portugueses, passeavam sem cansar a vista, espanholas alegres e buliçosas ao lado de espanhóis pachorrentos. E por lá se mantêm.
E Olé.

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