Gosto
de igrejas. Admiro-as desde o exterior, mas é no interior que existo, penitente.
O ambiente de silêncio propicia o recolhimento, ainda que nas invernias se
confunda com desacerto e vazio de friúra que afugenta os mais afoitos. Ignoro
se Deus as habita sempre ou apenas esvoaça de longe a longe pelos domínios que
o convénio dos homens Lhe determina, a Ele que, por essência, é pura indeterminação.
Talvez a candura de Alberto Caeiro O resuma cantando em brevidade lógica o Tudo
que Deus é. “Mas se Deus é as árvores e as flores/ e os montes e o luar e o
sol,/Para que lhe chamo eu Deus?/ Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e
luar/”.
Ora,
supondo mesmo que tal ser supremo as não habite ou des-exista, fica-nos o
sonho, o desejo místico dessa omnipresença palpitando em cada ogiva, poalha
coada com a luz que entra por janelas altaneiras; olhar que nos mira dos frisos
das colunas, haste volteando nos arcos de volta perfeita. E a certeza de que o temor dos homens Lhe outorgou as mais
belas criações dos artistas de época. Do pequeno mundo que conheço, em nenhum
lugar como em Itália as igrejas devieram repositórios de arte. Só ali o povo oblitera o lugar e, num deslumbramento, se excede em retumbância exclamativa.
Corria
o calor da tarde em Ravena quando passámos perto de uma igreja e ao chamado de
órgão mavioso, entrámos. Decorria talvez um ensaio para concerto e por longo
tempo nos subtraímos ao calor da rua, presos à sincronia de dedos e teclas. Ali,
acendi uma vela e copiei um propositado poema.
Ora,
foi por gostar de igrejas que na Calle
Alcalá entrei na Iglésia de las Calatravas. Sem imaginar que, no interior,
decorria o ensaio do Concierto Davidson Chorale and Orchestra from Augusta,
Georgia. Eram teens entre os quinze e os dezasseis, dezassete anos. Todos made in
USA. Ensaiavam o que nos pareceram cânticos
espirituais negros. Com solos lindíssimos e respostas de coro em uníssono. Jovens a tocar e cantar com mestria angelical. Ficámos até ao fim. Nos breves intervalos, os garotos voltavam à idade,
brincavam, conversavam, dançavam com o inato donaire da mestiçagem. E logo o que
julguei ser uma professora de canto, ou talvez a maestrina que os dirigia,
avisou brandamente, “é o nosso último concerto, espero que honrem esta cidade como
às outras por onde passámos. Vamos deixar nas pessoas boa impressão, ok?”. E
tudo acalmou. Quando o ensaio terminou e
os garotos passaram por nós, deitaram-nos soslaios sorridentes por entre passos
de dança, o corpo pletórico e irrequieto, cansado de tanto respeito no altar. Um dos garotos olhou-me, cumprimentou
e levou a mão ao boné. Uma simpatia. A sobrepôr, ficou-nos o cristal puro das
vozes femininas que, no meio de conversas e sussurros, já de saída, trauteavam algumas
notas soltas, agudos que eram flores a altear na igreja e desabrochavam até à
cúpula.
Há acasos felizes.
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