quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Elena


Há uma Europa onde me sinto estranha. Se num filme, gela-me a atmosfera glacial que atravessa os países de leste, a pobreza a que não se foge por ser tão de dentro, a violência que nos estupra, aleatória.

Filme de 2011
Helena é casada com um marido que há-de ser o segundo – pode não ter havido outro. Rico. Mas ela dorme no sofá cama. Nunca liberta de quem foi, a enfermeira.

E numa casa feliz, um quotidiano de sombras e tão de segunda categoria para as mulheres! Traz-me as minhas coisas, tira-me um café. Ela a limpar a casa e ele a ir ao ginásio e ser levado à porta num ritual de sem amor. E, vem cá, quando o corpo lhe apetece. E só então ela na cama dele. A obsessão do dinheiro e das contas que lhe presta, regular.

E há cinquenta anos era assim a submissão das mulheres em Portugal. Muda. Descalça. Que hoje, outros contornos. Contudo, não a abandonámos. Vestimo-nos de liberdade sem nos desfazermos das grilhetas.

Num subúrbio, vive o filho com a família. E cada elemento disfunciona. Sugam-na, vivem dela. E apetece pedir-lhe que vire a mesa e não volte. Mas não é só o coração a ter razões. O homem inteiro as tem.

O pedido que ela faz ao marido acerca de uns dinheiros para a entrada do neto na universidade, e fica-nos uma ideia das teias e jogos sujos necessários ao ingresso.

Depois, o súbito de um enfarte no ginásio. Ela mais necessária e menor o reconhecimento: o propósito de testamentar dando-lhe uma renda vitalícia e assegurando a filha de anterior casamento como única herdeira. A negativa em ajudar-lhe a família.

E um homicídio premeditado e executado a frio. Bem sucedido. E que a deixa nas mãos do gang familiar. Que encarcerada dentro de si, já estava.

Não entendo a transição para a morte do marido, fundura de ódio que tudo aniquila. Ganância, palavra de que não gosto e condiz. Intriga-me a violência que aqueles jovens procuram por nada. Saem para lutar uns com os outros como nós à rua para fumar um cigarro. Sem outro motivo do que apetecer-lhes esmurrarem-se. Pavios sempre acesos na ânsia de pegar fogo a alguma coisa.

Dois crimes em inexplicável impunidade: o dela em premeditação e o da família, avolumétrico e informe, podre caminho de  arestas. Que se instala na casa de Elena, a toma à nossa frente, em clara invasão e despudor.

Detesto filmes tão desesperançados. 

domingo, 20 de janeiro de 2013

EQUILÍBRIOS DIFÍCEIS 4


Não acredito que a noite má conselheira. Trabalhar, ler, pensar, ficam mais fáceis no quieto escuro em que os móveis um torpor. No vagar da noite, esquecem a etiqueta – que a têm forte - e estendem braços e pernas. Espreguiçam-se. E logo as loiças lá dentro, em tremeliques argilosos, ai que me quebro, o chão esticou-se, bem senti. E nas gavetas os lençóis, enfim, respiro. E logo as fronhas a festejá-los à largura, mãozitas brancas estendidas em afagos de renda, senhor lençol! E das gavetas das toalhas chegam pontadas de guardanapo, o menino esteja quieto; arrume-se que me faz cócegas com essa dobra de bico. Mas aos poucos, também a distensão dos objetos se faz calma e o seu sono de lentidão nos atapeta o pensamento.

Quando me deitei, os vidros da janela faziam peito para os caixilhos, vejam lá se param com os esticões que ainda caímos e não se aproveita nada. Eram conversas de sono, tão de hábito que desliguei e entrei a pensar no dia seguinte. O último. Jogava tudo. E não podia perder. Quem seria capaz de me ajudar?! As minhas duas amigas, não. Uma vivia longe. Com a outra já tinha desfeito uma festa promissora - a ideia de casarmos no mesmo dia – e ela esquivava-se à minha pessoa, cativada por gente mais expedita e interessada em crescer. Passei aos primos que viviam próximo. A minha prima mais velha era uma senhora – usava sutiãs bicudos, meias de vidro e saias à godés. Nunca percebi a razão de godés, termo que só me lembrava o nome daqueles caquitos brancos onde diluíamos guache e aguarela, que em férias eram pratinhos emprestados às brincadeiras das minhas irmãs. Admirava a minha prima. De joelhos. Sem um átomo de inveja a estragar a contemplação. Extasiava na sua exuberância juvenil com não menos admiração que a chusma de rapazes que a rondava. E eu impante da sintonia com tanto alguém. Hoje, admito diferença na motivação. A minha prima Zita pintava os lábios de cor-de -rosa e depenicava as faces, tenho a cor por igual? E eu na importância de julgá-la. Mas a sacerdotiza não me ligava meia. Pior, esquecia-se que o primeiro namorado tinha sido eu a arranjar-lho. A mal agradecida. E não sabia andar de bicicleta. Portanto...

O Artur, que tinha a minha idade, não acertava comigo excepto no folclore e aos treze anos pensava que era homem; tinha um estar impaciente que não me servia. E logo o deixei para trás. Na verdade, tinha um outro primo, meu vizinho de infância, que à mínima zanga corria para casa a buscar o sacho e voltava aos gritos de, vou-te cortar as pernas, enquanto eu desabalava a correr, ó mãããeeeee!!!, superando marcas à medida que a voz dele – e o sacho -  mais próxima. A corrida terminava invariável à porta de minha casa. Julgo que se divertia bastante e que, quando eu sentia a mão a rasar-me a roupa, atrasava o passo e, de propósito, não me apanhava. À cause de cela, ainda éramos inimigos. Portanto, bani-o. Restava o meu primo mais novo, que tinha uma bicicleta e sabia andar; muito paciente. E não pensei mais. Larguei a dormir dentro da irrevogável certeza: o Jaime era o único capaz de me ensinar.

No dia seguinte, executei. Fui ter com ele e expliquei-lhe a situação que traduzida deu, tia, o Jaime pode ir almoçar com a gente? E fomos os dois. No caminho, pu-lo ao corrente do meu estado, não sou capaz de dar aos pedais e olhar para a frente. Ele teria uns dez anos. Olhou-me sem surpresa e perguntou, o que te custa mais? E eu, guiar. E logo uma solução à medida. Eu empurro e tu guias e olhas para a frente. Eu incrédula, esperança toda nova, a sério que és capaz de me empurrar? Não me cabia pôr condições, mas ainda assim arrisquei, vamos até ao meio da herdade que ali ninguém vê. E o meu primo logo que sim.

Guardo uma imensa ternura por aquele garoto asmático e cheio de eczemas que resfolegava atrás de mim sem desistir de empurrar e segurar a bicicleta enquanto eu, completamente desvairada, arremetia para todos os montes de cardos que bordejavam as veredas. Como ele se recusasse a entrar em tanto pico à molhada, largava por vezes o suporte da bicicleta e eu caia despedida. Com o penso todo de lado, a meia cheia de picos e palhas, as mãos uma lástima. Fazíamos uma pausa. Esbaforido, o Jaime sentava-se vermelho, o suor a espreitar-lhe a pele em bolhinhas pequenas. Eu, ai se a tua mãe te visse. Tens de descansar mais tempo. E, ainda assim, ele arfava contente, já te larguei um bocadinho e não deste por isso. Mas nunca acreditei. Brincadeira. E respondia-lhe, Jaime, não desistimos tá bem? Se ficares muito cansado, descansamos. Tirava a meia, endireitava o penso, o meu primo aproveitava para espreitar as feridas e soprava para dentro a fazer um barulhinho com a boca que me garantia que não eram pieguice. Então, procedia à limpeza da meia e voltava a calçá-la. Depois mostrava-lhe as bolhas das mãos e ficávamos a conferenciar sobre se devia rebentá-las ou não, tirávamos os picos maiores da mão direita um do outro, púnhamos os chapéus de novo na cabeça, lamentando não haver água para beber e, mal me sentava na bicicleta, saía da vereda e embicava num sobreiro, a roda da frente num sobressalto confrangido a recuar em zonzo ricochete, desculpe, não tinha intenção. O meu primo não comentava e, mansamente, ajudava-me  a voltar ao trilho. Mas eu resmungava comigo e quase chorava, olha para isto, não sou capaz de aprender. Apesar desta choradeira esporádica, ia cantando as canções que ele pedia e mais outras que sabia e nem eram de época; cantava o mon beau sapin e os sobreiros de boca aberta que será isto, sem entenderem patavina. E suponho que o Jaime contente, empurrar uma prima que canta francês não é igual a nada. Entretanto, aborrecida que sou, pedia-lhe a opinião para tudo Jaime, Jaime, Jaime…até que uma vez perguntei e não respondeu. Olhei para trás e ele não estava. Caí um trambolhão. Dos melhores. O Jaime apareceu a correr, aflito da asma, a entrecortar, o dedo uma autoridade, vieste… desde… lá de cima.

E depois, quais deuses, descansámos.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

EQUILÍBRIOS DIFÍCEIS 3


As crianças aprimoram a inocência do sono. Flores em sua natureza, dormem sem mágoa. Arrumam os problemas sobre a mesa-de-cabeceira como os velhotes a dentadura, e dormem. Os seus mas de criança aos suspiros pequenos de, ai, que aborrecimento estar assim dobradinho, e elas a sono solto. Assim comigo. Adormeci pacífica, sem sobressaltos. E nem sonhei com bicicletas.

Mas na manhã seguinte, ainda o corpo a juntar-se, um ardor na mão direita. Palpei. Uma bolha. Que doía em escrupulosa nitidez. Não sonhava, portanto. Lembro-me da claridade insidiosa,  a escapar da janela fechada como que a dar-lhe um chega para lá, deixa passar faz favor que é tempo, e eu a olhar os retalhos de luz e a pensar, onde é que arranjei esta bolha (não pensava bolha, pensava borrega). E não me ocorria. O óbvio não entra em mim como tal; e muito menos ao acordar. Portanto, levantei-me e fui perguntar à minha mãe. Talvez ela me iluminasse o mistério. Da borrega. Eu. Que até já tinha  a 4ª classe.

Cheguei à cozinha de palma estendida, ó mãe, olhe lá para isto, tenho aqui uma borrega, não sei onde é que a fiz. E antes que ela respondesse, a verdade caiu-me em cima e, foi da bicicleta. Uma pedrada. O súbito da descoberta trouxe-me o filme todo e abafou o completo de mim.

Depois do pequeno-almoço, cirandei por ali em espreitadelas de trovoada ambivalente a desabar na bicicleta. Até que tomei coragem e a levei para a descida. Repeti mais ou menos o dia anterior, acrescentado do rotundo êxito com as bolhas. Mãos de cavador em estreia. À hora do almoço, já tinha três na mão direita e duas na esquerda, ponderava usar as luvas de inverno, amaldiçoava o guiador – ele é que era muito áspero - e mantinha o meu record: dois metros. Maravilha.

O pior foi que o meu pai veio almoçar. Gargalhou das minhas bolhas, chegou mesmo ao cúmulo de dizer que ninguém as fazia a aprender a andar de bicicleta senão eu, mandou-me experimentar e caí mal pus os pés nos pedais. Ele gritou um montão de coisas que não me lembro, mas foram muitas e não muito boas, e eu desatei a chorar e a falar chorando que é uma coisa que não aconselho a ninguém, mas toda a gente experimenta não sei porquê, que dá muito mau aspecto. O mais péssimo, foi ouvir o ultimato. Curiosamente, em tom menos estridente, talvez até um pouco desanimado, Se ao fim dos três dias não aprenderes a andar, entrego a bicicleta ao homem, ouviste? Tens até amanhã à tarde. E zundapeou.

Aflição. Mas a parca ideia que me surgiu foi mudar o lugar das aterragens. Fui para a estrada, floreado para azinhaga de terra batida. De luvas, com o artelho todo armadilhado e só com uma peúga calçada a segurar um super penso, lá me dispus a prosseguir. Ora, ao lado da estrada havia a vala onde corria a água no inverno e que o meu pai tinha mandado afundar nesse ano. Completamente escondida pelas ervas de Verão, crescidas de um lado e outro. E é claro que eu nem fazia ideia da sua existência. E que caí lá dentro às guinadas, enquanto olhava para os pés, a contrariar o código. Devo ter batido com a cabeça em algum pau ou raíz, ou serei mesmo de cabeça mole. Desmaiei. A boa da vala, braços abertos, venham cá. E rápida nos guardou. Desconheço quanto tempo lá permaneci. Quando acordei, pensei que, ou sonhava, ou tinha morrido e acordado no caixão, facto que bastante me assustava. Tratei de respirar com muita força. Se estivesse num caixão gastava o ar, morria de novo e pronto. Mas não senti falta de ar. Portanto, arrisquei abrir os olhos já que quase não conseguia mexer-me. Também não sonhava. Sobre mim havia alguma coisa a pesar e depois uma tampa móvel, que se deslocava um tudo-nada de quando em vez e clareava o lugar que nesses instantes me surgia verde. Pensei que os olhos estivessem esquisitos. Desentalei os braços que entretanto achei e afinal estavam vivos. E empurrei. Espantada até ao âmago do agradável, senti-os em leveza de movimento. Sem esforço. Que logo me  lembrou o abre-te sésamo de Ali babá. Já eu entrava na senda mágica quando entendi: estava algures dentro do estreito de uma vala e a minha tampa móvel que  verdejava era o entrelace de ervas muito altas que tremiam na brisa do estio, arrepiadas de gosto, hummmm, passa de novo. Portanto, não saíra da realidade.  Palpei as pernas e senti a roda da bicicleta. É que ainda hoje não me lembro de ter caído. Gritei. E ninguém veio. Gritei de novo. Nada. Então, fiquei a ganhar alento para sair dali e aproveitei para pensar na vida. A bicicleta não se queixou.

Fez-me bem ter caído. E ninguém a acudir. Deu-me o tempo de olhar, vendo. As crianças pensam simples e fácil: tinha de pedir ajuda; a alguém que soubesse bicicletar; não me ralhasse; e fosse da minha idade. Só assim conseguiria aprender.

Depois destas maduras reflexões, criei força, afastei a bicicleta como pude e saí em viagem de reconhecimento. As minhas irmãs vieram a correr, tiveste uma visita mas não sabíamos de ti, onde é que tu andavas? E eu, por aí. Elas de novo, era o senhor Padre Nunes. Eu a pensar, ainda bem que ninguém me encontrou, aquele padre leva o tempo a dizer que sou santa. E nem sabe o que me assusta. Indubitável, o dia estava um exagero comigo, precisava descansar. Na chaise longue de um romance.

 Atirei-me com alma para dentro de um livro e deixei o resto para quando.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

EQUILÍBRIOS DIFÍCEIS 2


Entretanto, a minha mãe, senhora de silêncios demorados, parada a olhar, sorriso embevecido. E gosto de pensar que de mim, portanto, de mim. Cruzou-me a mente o perverso de um pensamento, e se eu não aprendesse? E logo a procurar asa, eu aprendo a andar de bicicleta, não aprendo, mãe? Ela não mexeu o sorriso e como a acordar, tenho mais que fazer. E afastou-se. Sempre que eu perguntava o óbvio, deixava-me sem resposta; por ausência de discernimento, este facto contristava-me, imergia-me numa irritação mansa de perguntas repetidas. Eu ainda era toda óbvia. Hoje? Bom, mudei para muito óbvia. Fiquei ali, em salamaleques de adoração. Palpava-a a medo e a seguir esfregava o lugar onde os meus dedos suados do estupor, uma marca; corria-lhe em vagar e enlevo o delgado do corpo; mal tocava a campainha metálica, com medo de estragar; levantava a roda de trás e girava-a em admiração. E ficaria até quando, se o meu pai, rapaz de pouco sonho e muito trabalho, não me cortasse o devaneio Vai mas é guardar a bicicleta que tens de te habituar a pô-la no descanso. Anda cá aprender como é. E fui descansá-la e fechá-la à chave que a gente nunca sabe se às bicicletas não lhes dá para se escapulirem no escuro da noite. E é melhor prevenir.

Ao serão, as minhas irmãs indiferentes àquela sorte grande, não falavam dela. Estavam parvamente na sua vidinha normal, sem respeito nem interesse pelo meu asteroide. A mais nova, caracolinhos desdenhosos, cavalgava um animal de plástico cozinha fora e para a minha estrela nem um ámen. Adormeci contente de no dia seguinte começar a pedalar. E por entre descargas de sono, ainda espantava nebulosas dubitativas, “é a sério, mesmo minha”.

A bicicleta foi o meu Cristo em objecto, criou-me a história e a pré-história.

No dia seguinte, o meu pai antes de sair, deu-me a aula de código: “Não custa nada, é só dar aos pedais e olhar para a frente.” E abalou. A seguir, eu libertei-a do trinco da porta e fui para a rua experimentar, disposta a cumprir, dava aos pedais e olhava para a frente. Pensei que a descida da minha casa à estrada era boa e levei-a para lá em prestezas de afinador de pontaria. Um bocadinho mais à frente, não, um bocadinho mais atrás, aqui não que está um alto…etc. A mãe disse de passagem, como se não fosse importante, para aprenderes tens de te sentar. E sentei-me a constatar que chegava com os pés ao chão. É claro que mal dei aos pedais, caí. E voltei a cair. E depois, e depois, e depois….

À hora do almoço doíam-me as mãos de agarrar no guiador e tinha o artelho esquerdo ferido de bater com ele na roda pedaleira algumas vezes que era sempre, de cada vez que pedalava ele a adivinhar o golpe que não falhava, a arrancar mais um bocadinho. Tinham passado mais de três horas, a minha inteligência estava de rastos e temia que a simultaneidade de dar aos pedais e olhar para a frente me fosse impossível. Pensava que tinha que mudar o meu ponto de referência, a Rosa do ti Manel estava a anos luz de mim, mesmo com a 4ª classe em suspenso. Além disso, o meu astro já tinha uns riscos, de tanto cair. Depois de duas quedas em que fizemos corpo uma com a outra, tinha compreendido ser assaz nefasto à minha integridade física continuar. Eu não era de lata. E ela, não sei porquê, persistia em ser unha e carne comigo, caísse por cima, por baixo, a uma ponta ou a outra, aleijava. Nunca senti tanto bico, tanta ponta áspera, tanto peso e dureza a despedir. Portanto, decidi: se não aprendia a andar, chegando com os pés ao chão, aprenderia a não cair. Fui desde cedo uma optimista.

E a tarde não me melhorou. Ao contrário. Calcei meias para os artelhos não baterem na roda pedaleira e logo as rasguei bem como ao dito. Pobre. Cujo. Em sangue. Doíam-me mais as palmas das mãos. Se olhava para a frente, esquecia-me dos pedais, se dava aos pedais, esquecia-me de olhar. Resultado: caía sempre e não conseguia ir além de dois metros. As minhas irmãs olhavam-me estranhas, a duvidarem de que não estivesse brincando aos trambolhões. Nos intervalos de tudo, subia-me uma irritação e mandava-as ir para o outro lado do monte. Mas, mal subia para a bicicleta, bem as via a espreitar. Sérias. Curiosas do desfecho.

À noite, o meu pai fechou-me as contas quando desviou a zundape do caminho e me disse: vá monta-te lá para eu ver o que aprendeste. Nessa altura, já tinha um penso todo armadilhado de trapos grossos contra a parva da roda pedaleira, seguros com fita cola que descolava parvamente. O meu progenitor deu uma gargalhada quando me viu o artelho assim e gritou incrédulo, MAS COMO É QUE TU BATES COM O ARTELHO NA RODA PEDALEIRA?! Fiquei animadíssima. Nem os dois metros consegui. Incentivada, esqueci até o propósito de não cair atada à bicicleta. Desastre. Então, a Rosa – que eu não conhecia – agigantou-se. Uma heroína. Nem eu nem o meu pai sabíamos que existem várias formas de se ser inteligente, portanto… e pensas tu que és inteligente, ah, ah, ah…nem te digo mais nada, a Rosa aprendeu em três horas…

As minhas irmãs caladas, muito sérias. A mãe nem uma palavra sobre. Só o suave da voz, vem jantar que a mãe depois põe-te mercúrio nas feridas. E os olhos das minhas irmãs a arregalarem de pena.

E quando adormeci doíam-me os lados todos de mim.

(continua)


terça-feira, 8 de janeiro de 2013

EQUILÍBRIOS DIFÍCEIS 1

Aviso à navegação: não pretendo postar cultamente, ser séria, acrescentar. Este blogue serve tão só um dos meus prazeres: a escrita descomprometida. E é um bocadinho monolítico. Porque me esqueci de dizer na introdução, mas descendo delas, as tais pedras que estão para ali sozinhas por destino e condição, a desafiar a atmosfera. E como não sou bem, bem, uma pedra, o meu monolitismo desfaz-se em palavras. E pronto. Por outro lado, não morro se não escrevo e penso até que seria imortal se a morte dependesse em mim de amores inadiáveis. Mas, infelizmente para o eu que é mim, parece que não. Também é verdade que tanto escrevo sobre um livro que li como sobre uma ervinha que encontrei. Empenhadamente. E, se soubera pôr um slogan no blogue, que ainda não sei, seria "Assomos e Achamentos". Quer isto dizer que aqui me vou assomar às vezes com minhas manias e tiques e contar de meus abençoados achamentos. Certo, podem ser um nada a quem lê. Mas são meus parentes próximos, que me faço família do que me acontece e dá cabo do ritimo.

 A bicicleta é outro dos meus prazeres não menores - mau, mau, aí vão dois - Devo-lhe grandes bons momentos, uns por isto, outros por aquilo. Tenho uma, antiga e em esmalte, que olho diária porque sim e vale infinitos. Mas um prazer maior conta-se do princípio.

Quando fiz treze anos,  o andrógino da imagem a hesitar entre os dois géneros, era uma morena esgalgada e informe que felizmente não dava por tal.  Ora, por razões que aqui não cabem, ganhei nessas férias grandes a bicicleta mais linda do mundo. Mesmo. Verde e branca, com uma proteção das saias em malha de rede que achei o máximo. E uma campainha. A meus olhos, no mundo das coisas, foi beleza superlativa, no grau absoluto sintético. Íssima. Uma bicicleta não cabia na ousadia dos meus sonhos. Primeiro, o meu contentamento acautelou, duvidoso da fartura, e em seguida, é mesmo minha, é mesmo minha, e o coração incrédulo em rotunda exclamativa, não pode ser! a descompassar, aos saltos feito doido, parecia o cão quando o soltávamos. E eu a olhar a bicicleta e a querer segurá-lo, que quase me magoava as costelas na vontade de sair. Cheguei a pensar que teria de andar com ele na mão, o que não dava jeito nenhum, devia estar cheio de sangue e isso. Ou que me limitaria a engoli-lo na esperança que desse com o caminho interior e se deitasse de novo no lado esquerdo de mim. E quando assim divagava, suponho que com cara de atordoada, a mente pôs-me no lugar. Não há como a realidade para nos levar ao sítio. Era uma evidência: EU NÃO SABIA ANDAR DE BICICLETA. E aterrei sem pára-quedas. Foi então que o meu pai, a filha do ti Manel aprendeu a andar em três horas, não há gente mais burra do que aquela, nenhum filho foi capaz de fazer a 4ª classe (para o meu pai, a 4ª classe era a prova dos nove à inteligência humana). Se ela foi capaz de aprender, tu também aprendes.

Fiquei muito mais descansada. Talvez que em hora e meia eu conseguisse. Ou mesmo em três horas, como a Rosa do ti Manel….
(continua)