segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

"No Tempo da Escola"

Depois de uma barrela energética e mais branda que as maternas, madrinha Carmelita passou à satisfação da minha vaidade: enfiou-me o vestidinho de missas e passeios, uma nuvem franzida de nylon branco semeado de raminhos em rosa vivo; sobre ele ajeitou a neve de um casaco, terno tricot de minha mãe em ponto bago de arroz, que cruzava na frente e rematava nas laterais com alvos laços de fita. E era ver a atrapalhação da velhota, dedos grossos a unir as fitas para fazer a aselha, os olhos franzindo esforços por detrás dos óculos, eu já não tenho vista para isto, estou velha para estas coisas, a tua mãe tem cada ideia, para que são dois laços. E eu pavão. A impar. Depois mandou-me calçar os soquetes brancos e os sapatos de verniz enquanto ela se vestia. Fiquei na cozinha e calcei-me, um contentamento vibrante e desmedido no brilho dos sapatos, o orgulho suspenso da fivela que apertava e tudo. Julgava eu que estava despachada. Mas quando Carmelita se aprontou fiquei boquiaberta. Apareceu tão janota como nunca a tinha visto. O vestido preto assentava-lhe no corpo qual pele e ela tinha posto por cima uma gola clara de renda e na cabeça um chapeuzinho preto. Usava uma bengalinha fina na mão direita, provavelmente a do marido, e calçara sapatos pretos de presilha com um bocadinho de salto. Fiquei tão contente que a abracei e disse, vamos embora. Desejava sair de mão dada com ela e fazer inveja à aldeia inteira, mostrar a toda a gente como estava bonita e bem arranjada, fazer notar a sorte que eu tinha em passar ali as férias. Mas a velhota pegou-me na mão, sentou-me num banquinho baixo e sentenciou, vou-te fazer uns canudos que o cabelo escorrido não tem gracinha nenhuma. Exultei. Tanto os pedira em casa e minha mãe sem me fazer caso, o teu cabelo é muito liso, não dá para canudos. Portanto, ia a um casamento pela primeira vez, via uma noiva e testava-lhe a beleza, e levava canudos. Não podia haver melhor notícia. Enquanto o garfo aquecia no fogão a petróleo imaginei-me a ficar igual a  Lídia. Talvez mesmo mais bonita. Ansiava ver-me no espelho, a cabeça aos rolinhos certos.  
Breve ilusão. A madrinha bem aqueceu o garfo, bem molhou o cabelo com água e açúcar, bem porfiou. No cabelo doce e empastado nem um arzinho de ondulação. E o espelho devolveu-me uma imagem tão reles que quase desatei a chorar. Então, a madrinha tapou as cerimónias com o avental, entornou para uma bacia a água quente da panela e lavou-me de novo a cabeça mastigando ao ritmo das mãos, ó mas esta menina, que cabelo que ela tem que não dá mão nem por nada, se eu soubesse disto nem tinha experimentado a calda de açúcar. E eu de olhos bem fechados, cabeça mergulhada na bacia, a tentar não pingar o vestido das maravilhas e desditando-me, nunca, nunca vou ser nem um bocadinho parecida com a Lídia.

Resignada a levar-me de cabelo liso, a madrinha retirou-lhe a água maior limpando-me a cabeça, o meu rosto contra a surpresa grata da sua barriga lustrosa e aveludada,  penteou-me, agarrou numa malinha parecida com os meus sapatos e saímos. À luz do dia, esqueci as desgraças capilares e voltei à felicidade antiga de roupa e sapatos novos, a achar-me linda nos paramentos de festa. Mas no fim da rua já eu coxeava, os sapatos a apertarem-me os pés. Pensei em Lídia, ela já os teria atirado para a valeta, mas estava tão orgulhosa deles, queria chegar calçada junto da noiva, o que podia fazer?! Olhei para a madrinha que não se apresentava em melhor estado, mas era mais expedita e se virou para mim numa decisão, vamos mas é chamar o táxi, estamos as duas coxas. E era ver-nos à porta da mercearia todas empapoiladas e rodeadas de mirones, à espera do espada do senhor Laurentino, pessoa importante do meu mundo, sempre de camisa branca sob o casaco e a gravata, um bigodinho fino a branquejar sobre o lábio superior e que me tratava como nenhum homem antes, faça favor de subir, menina. E depois fechava-me a porta com cuidado a recomendar – como se precisasse – ponha os pézinhos em baixo para não sujar os estofos. Um céu aberto o táxi do Laurentino. E eu lá dentro só a cabecinha à vista, um espação entre mim e a madrinha que descansava as pernas e dizia apoiada à bengalinha, senhor Laurentino se calhar é melhor levar a gente já para a igreja. E ele em manobras habituadas e meio carinhosas, o amor pela máquina a sobressair-lhe do corpo, respondendo num arrojo falsamente servil, a senhora manda, D. Carmelita. E, cheio de importância, ligou-nos o rádio.  

domingo, 28 de fevereiro de 2016

No Tempo da Escola"

No desfiar de lembranças vim a saber que madrinha Carmelita não era, como eu pensava, uma velhota desvalida. Única sobrevivente de seis irmãos,  fora casada e tinha uma filha e um neto. O marido morrera ainda novo levado por “uma doença má” e a filha vivia no estrangeiro com o rebento. Eu herdara-lhe o quarto e os livros que líamos  dera-lhos o pai,  guarda-livros numa empresa da vila mais próxima; um senhor que até fazia a barba todos os dias e usava chapéu de aba mole, repisava a madrinha, uma dobra de orgulho na voz. E depois mostrou-me uma fotografia onde um jovem de bigode, alto e enchapelado, se deitava a olhar para nós encostado a uma incompreensível bengalinha. Conhecedora do meu estado perguntador, a madrinha informou que não era coxo, que a bengala naquele tempo condizia e era só para enfeite. Pensei que as pessoas antigas eram bem esquisitas se usavam bengala  sem precisão e selei o assunto. Por essa altura, a mente fervilhava-me de pensamentos etéreos, bolhas de sabão que esvaneciam sem chegar a preocupar-me. No entanto, quando à noite a saudade se instalava e a imagem de minha mãe infiltrava no sangue, perguntava-me como é que a filha de madrinha Carmelita aguentava viver longe dela, como é que a mãe era capaz de fingir que não tinha filha, e mais raciocínios desta natureza, de resposta incapaz. Uma tarde, a meio das confidências de outras eras, perguntei-lhe se a filha não a visitava. Silêncio.  Ouvia-se apenas o ofegar da terra à torrina. A velha, fechada em mutismo, perdia-se a olhar para nada. Incomodada, cheguei a pensar que não gostava da filha e se envergonhava de mo dizer. Mas veio o acrescento lacónico, não pode, nem conheço o meu neto, vê lá tu. Depois olhou-me simpática e mumurou, um dia, quando fores mais crescida, conto-te esta história, agora vamos ouvir a do livro. E baixou a cabeça muito interessada em acertar pontos numa bainha.


Certo domingo, acordei e ao entrar na cozinha saltou-me o ar novo e desencasquiado de madrinha Carmelita. A mulher cheirava a banho e sabonete, o cabelo ainda húmido modelando certezas de pente no esculpido das ondas. Ao ruído da porta, cumprimentou e, sorrateira, lançou-me o sorriso de quem esconde um segredo benévolo. Na mão deslizava-lhe um ferro pressuroso, e, de quando em vez, erguia-o à altura da boca e soprava-o junto às aberturas da base a espertar as brasas no sentido da chaminé, empurrando para longe da roupa os flocos de cinza que o arrefeciam.  Admirei-lhe os movimentos, maravilhada com a sabedoria feminina, a precisão de gestos, o jeito atento do corpo debruçado, o ferro ora deslizando ora insistindo de bico, a demorar-se numa prega mais funda ou a desamarrotar um viés. Em casa, ficava horas assim, olhando as mãos que desembrulhavam a roupa peça a peça, a sacudiam e viravam na mesa da cozinha, a passavam por inteiro até estar pronta a vestir ou ser pendurada; a maioria das peças era dobrada em destreza maquinal e perfeita, eu a adivinhar a forma como as mãos se impunham ao tecido, a tocá-lo em movimentos limpos e seguros, como se um amor desvelado se fosse distribuindo e acamando num tabuleiro, peça a peça. Na organização das roupas dobradas umas sobre as outras  pairava um repositório de gestos, de esforço, de varicosas dores de pernas e muita paciência amorosa.  Aproximei-me de Carmelita e notei-lhe o aroma a sabonete de alfazema enquanto ela corria o ferro pelo avesso de um vestido de veludo preto, brilhante como o pelo de um gato. Mal me cheguei, pousou-o no descanso e, enquanto me ajeitava o pequeno almoço, deu-me pressa aos maxilares e informou que íamos as duas a um casamento. À boa nova, senti o coração a expandir no peito e  o sangue a ganhar força nova.  Ia, finalmente, poder ver uma noiva. Delas, eu sabia apenas o que ouvira, “não há noivas feias”, e em mim não havia maior estranheza, matutava vezes sem conta no incógnito fenómeno que fazia todas as noivas bonitas. Em tempos diferentes e com diferentes pessoas, insistira na pergunta, mas não há mesmo noivas feias, e se for uma rapariga muito feia. Mas a resposta peremptória era inalterável, “no dia do casamento, todas as noivas são bonitas".  O que só acrescentava o meu desconcerto. 

sábado, 27 de fevereiro de 2016

"No Tempo da Escola"

Madrinha Carmelita não sabia uma letra, mas era ouvinte paciente e aqui e ali explicava-me palavras e expressões que eu lia sem entender. Talvez às vezes, mijasse de pé como garantia o Luís, não averiguei. Para fazer as necessidades fechava-se na barraca do quintal a que chamava “a casinha” e sentava-se no cagadoiro, um banco alto e sem fundo, assente em fortes ripas de madeira,  com um buraco por baixo cheio de porcaria malcheirosa e um inferno de moscas zumbidoras. Ao lado, a madrinha colocara os seus artigos de limpeza, uma saca de serapilheira repleta de papeis de jornal cortados em quadrado rigoroso. Apesar da novidade, eu rememorava o meu bacio cor de rosa e a contagiante liberdade de  cuecas abaixo que breve devinha colectiva, caso a urgência interior apanhasse um de nós a meio de jogos e brincadeiras; no caso de haver cocós, enquanto nos esmifrávamos atrás de uma moita, quem estava desobrigado  procurava nas imediações um papel ou um trapo sem sinais de uso, que servisse  aos acocorados que com frequência o dividiam entre si. Ciente destas peripécias, minha mãe colocava-me nos bolsos do bibe trapinhos que rasgava às rodilhas e acabavam a uso das bonecas das minhas companheiras que os miravam cúmplices e invejosas,  como se limparmo-nos a eles fosse delito grave, tão bonitos, são mal empregados para limpar o cu, ajuizavam muito sérias.  A minha paisagem desse tempo reduz-se a árvores enormes, o extraordinário da copa a roubar-me céu,  e campos verdes ou amarelos de seca que atravessávamos em fila indiana, orgulhosos da  vereda alta que traçávamos em ziguezague, o Luís na frente, desenhando elaboradas contorções de cobra. Na adultícia, a saudade levou-me a esses lugares despidos do gigantismo infantil: curtos pedaços de terra de cultura difícil e rala, com árvores caquéticas e  iguais a todas as outras.  Mas, mergulhando nesse habitáculo dos anos cinquenta-sessenta, sou levada a concluir que as aldeias não eram um mundo de limpeza. Tanta vez precisámos de nos limpar e só uma me lembro, por inexistência de papéis nos arredores, do recurso a longas e incómodas folhas de ervas.   
Porém, nos domínios da madrinha, se as vontades me chegavam, entrava na “casinha” de rompante e a prender a respiração, evitando baixar os olhos. Sentava-me com esforço no trono do cagadoiro, agitava as pernas com muita força para impedir ideias às moscas, e ensaiava uma posição artística esticando o tronco para colar o nariz  aos buracos mais próximos de mim na parede de ripas. Por exiguidade de corpo, a pose revelava-se indomável, se acertava o nariz desacertava o traseiro, e o inverso, de onde resultava conter a respiração o mais que conseguia. Saía agoniada e meio vestida, o elástico das cuecas a trouxe-mouxe, vómitos involuntários a virarem-me o estômago, o organismo numa revolta exigente que o ar puro evaporava.
Nas tardes encaloradas, a leitura possibilitou-nos um pleno inconsciente e foi campânula protectora, a isolar-nos no seu amplexo. O mistério de ler para alguém é que tudo devém plural. Deixam de existir o leitor a um lado e o ouvinte a outro, esse elo feito de palavras lidas e compreendidas torna-os  peça do mesmo mistério. Comunitárias, lemos O Pássaro Azul, A Pequena Sereia, O Pinóquio, O Touro Azul, A Bela Adormecida, A Gata Borralheira e outros contos que não recordo. Nessas horas pacientes, aprendemos destinos nunca imaginados, conversas de abóboras transformadas em coches por varinhas mágicas; sapatos de vidro que calçam sem partir; gente que acorda de um sono de cem anos com um beijo e continua a mesma de antes, jovem, penteada, bonita, sem uma teia de aranha, um verdete de musgo, um veio de bolor; um príncipe encantado em pássaro, a namorar à janela; madrastas terríveis e espelhos que falam; um grilo falante e desmancha prazeres que não entende uma criança nem por nada. Desassombradas, franqueámos o mundo de faz-de-conta.  À sombra de ler e ouvir ler, cresceu-nos o afecto e com ele a confiança. Habituámo-nos a contar coisas uma à outra, cada uma puxando pelas pessoas que mais falta lhe faziam. 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

De súbito, os meus olhos bateram-lhes na lombada. Eram livros diferentes dos da escola, uma fiada deles a aguardar mão que os tomasse. Fiquei atónita, só tinha visto os livros escolares. Agradou-me aquela companhia de papel, alinhada numa prateleira a meia altura da parede, olhando-me vagamente, como quem está e não está, e eu sem me sentir observada, nada constrangida. Levantei-me e confirmei que era baixa, podia tocar-lhes. Corri um dedo  à largura, a palpar-lhes o espesso, uns mais finos que outros e nenhum igual ao anterior. E eu sem ousar desmanchar-lhes a arrumação. Aflita de curiosidade. O que teriam dentro? Haveria figuras como no meu livro de leitura, a tia ata, e lá estava o nó; ui, e um joelho ferido e a sangrar, a calça rasgada; a rã, a romã, e ali figuravam elas. Senti a mesma comichão de leitura que me assolara quando, mal o abecedário dominado, pegava no livro e o lia de ponta a ponta, minha mãe branda, não leias mais que estragas a vista, a luz do candeeiro é fraca. A memória a puxar a candura do Luís, quando o meu pai vem muito bêbado e o deitamos logo, sento-me ao lume e leio o livro todo noite afora. Mas a imagem de Lídia. Lídia a fazer-me falta para infringir. A premência da  curiosidade que a mim tolhia e nela devinha acicate e impulso. Imaginei-nos sentadas na cama  folheando os livros, cabeças juntas, inquietas por descobrir o que diziam. Atentas. Ideava-lhe o desalinho dos caracóis rindo do gancho que escorregava, o ritmo prestes de virar folhas, a provocar-me com os dedinhos pequenos e ágeis, os olhos num soslaio, aprende, vê como se faz.
Quando madrinha Carmelita entrou a instar-me, vá anda ver o quintal, enchi-me de coragem e pedi-lhe se podia tirar um livro para ler. A velhota quedou muito séria, a olhar-me. E logo justifiquei arrependida da audácia, era só para ler o que têm escrito, mas não faz mal madrinha, eu brinco no quintal.  Ela retirou lentamente os óculos embaciados e vi-lhe os olhos piscos e afinal pequenos, rodeados por dois círculos de pele mais clara que lhe davam um ar esquisito. Pareceu-me que pensava em alguma coisa muito longe de nós duas e do quintal. Por fim, decidiu, se já sabes ler, vai escolher um, podes vir lê-lo cá fora se te apetecer, mas não estragues. Parti como um sopro e escolhi um livrinho azul claro com desenhos na capa: ao fundo, a sépia, estava desenhada uma torre de castelo encimada por uma janelinha gradeada. Em primeiro plano, pousado na janelita e prolongado a todo o comprimento da capa, um pássaro de longas penas. E em caligrafia escolar podia ler-se, O Pássaro Azul. Depois deste episódio, era ver-me de livro na mão, sentadinha no banco de madeira do quintal. À noite, a saudade alastrava por dentro de mim, apertava-me e torcia-me até doer. Então, mau grado gostos e novidades em casa da madrinha velha, chorava surdamente a ausência pungente de minha mãe. Mas os dias corriam rápidos e, na perseverança de horas a ler, breve deixei de soletrar. Estava muito contente por já saber ler como a outra gente e tinha ganas de mostrar o que sabia, mas não havia a quem. Entretanto, dava-me algum prazer pensar nos meus dois amigos a gaguejar palavras  e convencia-me que, mal saíssemos de férias, os vencia de uma penada.
            Por vezes, a madrinha vinha sentar-se comigo no quintal a dar uns pontos na roupa e não raro adormecia com a costura no regaço, os óculos a descair nariz abaixo por entre gotas de suor. Nessa tarde amodorrada, emendava a bainha a uma saia comprida enquanto eu entranhava no papel à descoberta das palavras. Era Julho e o quintal caiado transpirava luz e calor. À canícula, as couves derrubavam a orelha e ondas abafadiças  estremeciam o ar. Não se ouvia um som humano. À sombra da casa, nos intervalos da leitura, eu observava os movimentos da agulha presa nos dedos grossos entaramelados pela artrite e parecia-me milagre que a mulher não perdesse coisa tão fina e pequena. A um dado momento, a madrinha espetou a agulha no trabalho, espreitou-me com os olhos de égua enrugada e disse suave, eu gostava de ouvir ler outra vez essas histórias. Imbuí de prazer e vaidade. E foi assim que me tornei leitora aos sete anos. 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O Tempo de Ir à Escola"

No dia em que a madrinha velha veio buscar-me, minha mãe lavou-me em pormenor a preocupar-se com orelhas e pescoço, cortou-me as unhas, vestiu-me de domingo, abriu a risca ao meio com o pente, está quietinha senão fica a marrafa torta. Por fim, andou connosco até à paragem da carreira. Dessa vez não embarquei sem lágrimas e solucei parte da viagem. Enquanto isso, a velha coalhou a meu lado, o talego com os meus pertences adormecido no colo. Nem um reparo à minha triste figura, apenas a mão dela a procurar a minha no intervalo dos nossos corpos e a deixá-la por lá. Por via disso e de ser criança, os soluços foram espaçando e, cansada, recostei-me no assento a despedir o desgosto.
Aos sete anos ainda não o sabia mas já me despontava a neutralidade a ambientes físicos e pouca diferença encontrei na pobreza da aldeia vizinha. Quando descemos da camioneta da carreira, a cal encandeava na magreza escanzelada das casas baixas com portas e janelicos estreitos e desvidrados, a madeira comida de sol a descarnar aqui e ali. O povoado orientava-se pelo delgado de ruas opostas que desaguavam no largo da igreja, aterro de pedrisco fino.  Era ali que as crianças esfolavam joelhos e partiam cabeças umas às outras, se uma pedra esquinada lhes assentava os agudos nas zangas de vale tudo.  Ao lado de cada porta, em desafio de latas ferrugentas e penicos velhos, desabrochavam flores impávidas: rosas espinhudas e raquíticas em anseios de largueza e fundura; cravos pegados por poda  e roubados nos jardins – diz-se que flores roubadas pegam melhor - por onde passava a cobiça das mulheres; margaridas que pegavam de estaca e quase todos os portais exibiam; dálias vistosas e dessoradas, sem um pingo de aroma; gladíolos emproados e militares; farfalhudas papoilas de jardim. E por ali passeavam a enganar a fome gatos e cães vadios, crianças sujas e ranhosas, o pedrisco da igreja a treinar pontarias na vadiagem animal. Às portas,  sentados num moxo, alguns velhos ocupavam as mãos e faziam-se úteis. Entrançavam as réstias de cebola, faziam os molhos de alhos, atavam o poejo e o orégão em ramos, arranjavam e salgavam os pimentos. E a arritmia dos dedos anquilosados remoía a saudade do tempo em que o corpo lhes era leve. Recordavam horas sem canseira, descalços e a palmilhar quilómetros em poupança de solas, os sapatos atados um ao outro pelos atacadores e pendurados ao pescoço,  para calçá-los perto do recinto e poderem dançar com qualquer rapariga num baile de domingo. E depois desembocavam directos no local de  trabalho porque enregavam ao romper do sol.  Quase todos tinham por perto uma criança de mau andar, sentada num ameaço de manta suja ou agarrada às suas pernas, a cara pegajosa da chucha, um trapo a pingar cuspo, envolvendo um bocado de pão molhado em açúcar e atado em forma de bola com linha de coser. À conta desta estratégia, entretenimento de choro e fome, muita gente ficou com a dentição estragada. Mas tudo isto era vulgar e repetido, também acontecia na minha aldeia e aos sete anos o mundo era como era e não pensava que pudesse ser diferente.  
As surpresas vieram da madrinha Carmelita. A casa da velhota era um pouco maior que a minha, facto que não entendi, ela vivia sozinha, para que queria uma casa com três divisões? Pasmei para os naperons, a claridade das janelas em todas as divisões e a madeira corrida nos quartos, onde apetecia andar descalça. Mas o que mais gostei foi saber que tinha um quarto só para mim. Entrámos e reparei nos armários e outra mobília que nunca tinha visto, e numa cama com almofadas e colcha. A velha sorriu ao meu ar agradado e deixou-me sozinha. Para tomares confiança, disse ela a fechar a porta. Estendi-me na cama que senti macia por comparação com a minha onde as camisas de milho resmungavam folhudas revoltas às minhas piruetas nocturnas e me castigavam o corpo a espetar-me carolos nas costelas, eu queixinhas, mãe está aqui um pau; e ela acudia, pegava-me ao colo e depositava-me aos pés da cama. Depois desmanchava-a parcialmente e com mãos de mãe encontrava o carolo malvado que retirava antes de voltar a deitar-me. Mexi-me de novo e nada de resmalho de folhas. Antes uma espécie de cálida maciez. Levantei-me e espreitei sob os lençóis, no lugar onde minha mãe punha a mão a mexer as palhas, mas o colchão estava fechado, cosido com linha a condizer. Pensei que talvez gostasse de viver ali uns tempos e deixei-me cair sobre a cama a tentar não amarrotar demasiado a colcha, pensando como gostaria de contar a Lídia daquele colchão e da casa que me parecia tão grande.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

A treze de Julho terminava a escola e o tempo voraz arrastava-nos para outro mundo. Esquecíamos a mala num canto de casa, a professora evaporava e começávamos três meses de diferença. Fora do parentesco escolar e destituídos do seu istmo relacional, devínhamos estranhos uns aos outros. Se o acaso nos cruzava na mercearia, dávamos tímidos adeuses ou aproximávamo-nos a medo, as mães a empurrar-nos, vai brincar, deixa-me as saias. E o corpo reticente, dedos fincados no bordo das tulhas, o empregado de olhos na alfarroba partida, mãozinhas à frente, mãozinhas à frente.
Férias era o tempo em que as crianças, espevitadas pela pressa dos adultos, cresciam sem brandura  e amanheciam cedo. Nessas madrugadas de Verão, enfiávamos a roupa no escuro atrapalhando botões estremunhados, engolíamos à pressa uns goles de “café-de-pé”, dentávamos uma côdea dura e saíamos para o mundo a clarear. Estar de férias era ter lugar de destino  na prateleira da vida:  uns frequentavam a escola paga da menina Ermelinda que os entretinha o inteiro do dia por um preço irrisório,  enquanto os pais trabalhavam; outros seguiam para casa de familiares, avós, tias, parentes, de onde regressavam à tardinha quando já havia voz em casa; uma percentagem bastante razoável de garotas, era cativa do género, tomava conta de irmãos mais novos, lavava, varria e limpava, o mundo familiar a impor-lhe alíneas exigentes e a fazer força para ignorar-lhes a idade, as mãos pequenas e a vontade de brincar. Mas eu, Lídia e Luís jogámos noutros campos. Enquanto pais e irmãos trabalhavam, os meus amigos iam ficar sozinhos em casa. Ela  hasteava bem alto a bandeira de fiscalização de uma tia,  antevendo liberdades irrestritas, a tia tinha seis filhos e tanto afazer que só daria por ela se a casa ardesse e notasse os rolos de fumo;  Luís ficava entregue à vizinha do lado, uma velha encardida e mal cheirosa que brigava com a mãe dele semana sim semana não e nem de si tomava conta. Em contrapartida, minha mãe fizera orelhas moucas aos rogos de me deixar em situação idêntica. Portanto, o destino apresentava-se nebuloso. Estava-me destinada a casa da madrinha-velha que residia numa aldeia próxima e por lá me quedaria até terminar a contrata de meus pais. Madrinha Carmelita via muito mal apesar dos óculos redondos de tartaruga que lhe aumentavam os olhos e as rugas. Se a fixávamos, parecia uma égua envelhecida, olhos muito ampliados e pestanas de metro. E de tal modo o seu rosto assustava os bebés e as crianças pequenas que, em vez do papão ou do velho do saco, algumas mães ameaçavam maldosas, olha que chamo a Carmelita. A velha tinha uma expressão séria e eu impressionava na bengala trôpega e nas escaras semeadas pelo rosto, braços e pernas, mas não a temia. Quando conversámos sobre as novidades para férias o Luís disse meio pensativo, essa velha mija de pé, nunca viste? E eu nunca vira. Nem experimentara. Portanto resolvi-me.  Molhei combinação e cuecas, as tristes pernas a escorrer de alto a baixo. Com medo e vergonha de minha mãe, vi-me forçada a aguentar o desconforto até secar. Mas quando contei a peça, o Luís sabichão, parva, não vês que ela não usa cuecas e abre as pernas. E a Lídia a ajudar, as velhas fazem quase todas assim, és uma atada não vês nada, a gente sabe porque as espreita. Comecei a entender que pensávamos diferente porque vivíamos diferente as mesmas coisas, eu não detinha qualquer interesse por velhas a fazer chichi - termo que soltava a ironia pesada dos meus amigos - e achava falta de educação ir espreitá-las. Mas reconheci que sabia muito menos que eles.
Mau grado a despedida difícil de minha mãe, o abandono dos  amigos, a eczema de outro lugar, o receio de viver com uma pessoa de que conhecia bocadinhos  em hora de chá com fatias douradas, as nossas primeiras férias grandes foram surpreendentes.

Ao comprimento dos dias de calor, vinha-me a imagem de minha mãe e julgo que foi nessa altura que aprendi a tristeza doce da saudade solúvel. Sem inveja, imaginava os meus dois amigos, cada um em sua casa a satisfazer apetites  de liberdade solitária. Entretanto, pouco a pouco, fui descobrindo madrinha Carmelita. E a velhota  era bem mais do que “a velha que mija de pé”. 

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

Apressei-me a dar-lhe o saco que tinha ido buscar à valeta, mas Lídia sentou-se rancorosa na beira do valado e disse de olhos baixos, não me apetece ir à escola, vão vocês. E quando perguntei o que diríamos à professora ignorou-nos catanda vidros e pequenos nadas no valado. Olhámos várias vezes para trás mas já nos virara costas  concentrada nas mãozinhas pequenas que absorviam no muro de terra. Entrámos na escola e contámos à professora o que sabíamos e onde a deixáramos. E ela, esperem aqui só um bocadinho que vou lá buscá-la, coitadinha. Façam o nome três vezes com letra bem redondinha. E saiu apressada. Então aconteceu-me o de sempre, enquanto as minhas mãos deslizavam no papel a copiar o nome, a expressão “anda de barriga” passeava-se a um lado e a outro de mim e desinquietava-me na falta de lugar. Mas quando Lídia entrou pela mão da professora, esqueci tudo. Sentou-se a meu lado e sussurrou, a professora convidou-me a ir com ela logo à tarde, diz que durmo lá e me traz amanhã para a escola. Abismada perguntei, e a tua mãe? Mas ela, sem fazer caso à pergunta, acrescentou muito depressa e a entrelaçar a mão na minha, eu disse que só ia se tu fosses e ela disse que estava bem. Encolhi com a surpresa inesperada e saiu-me a medo, mas a minha mãe não sabe, de certeza não posso ir. Mas Lídia olhou-me nos olhos e, queres ir ou não?, e ao meu aceno de aquiescência acrescentou decidida, vou falar com a senhora. Depois da sua tomada de posição a situação fluiu: driblámos os ses de minha mãe que a mãe dela pouco se importou, vestimos outra roupa por baixo das batas, tive de assistir ao surgir dos canudos enrolados num garfo aquecido e à tardinha – tinhamos escola só no período da tarde – sentámo-nos as duas muito orgulhosas no banco traseiro do carro, tímidas e amedrontadas por aquele marido tão diferente dos homens da aldeia. Eu olhava a minha amiga tão bonita como no primeiro dia de escola, a cabeça envolta em realeza e o vestuário sem graça escondido na brancura da bata nova. Quanto mais a mirava melhor entendia o pedido da professora para levar os canudos e a bata. 
Passámos as duas vinte quatro horas de sonho, atordoadas de novidade, das refeições às divisões da casa. A nossa vista encantou no mobiliário, bibelots e pequenos pormenores. Mas o maravilhoso foi descobrirmos um mundo de pacífica cumplicidade entre aqueles dois, sem gritos ou mau modo, sem lambadas e sovas, sem a exasperação que corria em nossas casas e ainda desconhecíamos estar relacionada à leveza da carteira. Durante as nossas vinte e quatro horas no principado, e em que fui contrapeso e mais assisti que participei, a professora despiu-a e deu-lhe banho amorosamente, lavou e passou toda a roupa que trouxera vestida, beijou-a vezes sem conta interrompendo as nossas brincadeiras, carregou-a no colo e mimou-a a adivinhar-lhe gostos e preferências com um cuidado tão extremo e meticuloso como eu nem sabia que existisse. Em alguns momentos, senti-me tão do outro lado da porta desse amor assolapado que entristecia na certeza de não poder ir para casa, a desejar a calma não arrebatada de minha mãe. Mas, nos poucos momentos a sós, Lídia dava-me a mão com força a murmurar, ainda bem que vieste, não vês que ela pensa que sou um bebé, leva o tempo comigo ao colo, que chatice. Eu sorria contrafeita e em silêncio. Julgava-me sem graça, fixa na certeza de que nenhum garfo, por mais quente, conseguiria fazer-me surgir o sortilégio dos canudos. Invejosa e destronada de atenção. Mas no dia seguinte, suprema glória, chegámos à escola com um balão na mão e uma data de bolachas de chocolate para o lanche. E as vinte e quatro horas com a professora deram matéria para uma semana de falatório entre a criançada e muito mais em nossas casas. Mas se eu referia esse dia, Lídia sem me olhar, um tom altaneiro de contenda, ela convidou-me foi a mim e tu foste porque eu quis. Verdade que eu sabia e sentira. Era certo eu ser melhor aluna e que a professora nos gabava geminadas e fez da minha amiga o centro da classe. Mas a vida tem um curso onde ser centro é nada. Ou é um momento. Nesse primeiro ano de escola Lídia viveu a sua eternidade de céu limpo enquanto eu vegetava mansamente, rendida à sua beleza de criança-bebé, boquinha que se esganiçava em asneiras de carroceiro, se a vida lhe trocava as voltas.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

Hoje há livros que explicam tudo, verdades escritas e  ilustradas com desenhos. E há conversas entre pais e filhos. Mas nós só nos tínhamos uns aos outros e contávamos cada descoberta na convicção de verdade intransponível. O mundo adulto era-nos misterioso quanto baste. E escutar uma conversa de pouco nos servia, estranhávamos metade do conteúdo e    não podíamos dar um pio, pedir uma explicação, sem um tabefe bem assente ou a expulsão imediata. Assim, o mais frequente era deixarmos os adultos no seu planeta e rumarmos ao nosso que resplandecia de descobertas pequenas e lugares ignotos de braços abertos. Era neste mundo de ignorância e imaginação partilhadas que o nosso conhecimento crescia. Nesse tempo, intrigava-me sobremaneira o facto de haver uma cegonha que vinha de Paris – já a observara na farmácia - de fralda no bico a carregar um bebé em pêlo. O farmacêutico tinha-me garantido que Paris era muito longe e pouco ligou aos meus mas. Além disso, bem notei a falta de gosto de minha mãe que parecia ter zanga à cidade e à cegonha, em vez de ficar-lhe grata por não ter deixado cair a minha irmã no caminho, é que bastaria abrir o bico e lá ia ela. Por outro lado, eu que tanto gostava de as observar, não descortinara um bebé no bico de nenhuma. Um dia tinha abordado o Luís mas ele riu e disse, os bebés não vêm de Paris. É claro que não acreditei e lhe mostrei que o farmacêutico sabia muito mais que ele, tinha bata branca vestida e tudo, usava óculos e era um bom homem, ria-se para nós. O Luís virou-me uns olhos sérios e abanou a cabeça, não vêm de Paris, se não acreditas, pergunta à Lídia. Pensei que havia coisas mais importantes que as cegonhas e os bebés, mas na primeira oportunidade a sós perguntei mesmo. Ela parou, olhou-me meia baralhada, cerrou os lábios e franziu a testa num esforço de pensamento e respondeu, eu acho que estão dentro das mães mas não sei como é que é. Depois encolheu os ombros a terminar o assunto e ignorou o meu desconcerto cheio de interrogações, propondo antes uma brincadeira com as bonecas. E em casa, minha mãe foi lacónica e não confirmou nem desmentiu as teorias deles. Desisti de perguntar sobre o assunto.
 Mas a vida proporciona as ocasiões. Uma manhã, Lídia não me apareceu à porta e depois de muito olhar o caminho resolvi-me a ir para a escola, o Luís já ao portão e a chamar-me, em claro sinal de atraso. Julgámos os dois que estivesse doente e corremos até à escola, os lápis a sacolejarem dentro das malas. Apareceu depois da copia e do ditado, esguedelhada e sem bata. Dirigiu-se à secretária, murmurou alguma coisa à professora e veio sentar-se a meu lado sem um olhar, muito concentrada a tirar as coisas do saco, ignorando a minha cusca inquietação. Ao recreio, puxou-me de parte, pegou-me pela mão e arrastou-me até ao canto do pátio. Depois, com olhos graves, fez-me jurar que não contaria a ninguém o que ia ouvir. Pensei que sendo tão novinha não podia ter grandes segredos e, depois de instruída no preceito,  jurei com toda a solenidade. Lídia aproximou a boca do meu ouvido e bichanou, a minha irmã fugiu. E à minha pergunta desajeitada, fugiu como?, respondeu num encolher de ombros, não sei, foi esta noite,  fugiu com o namorado e agora a minha mãe está para lá a chorar. E encerrou o assunto com um, chiu, ela não quer que eu conte!, o indicador vertical a meio da boca e  a apanhar o nariz.

 Aquela novidade de namorados fugitivos e que eu imaginava bem longe, cansados e com fome, acompanhou-me o dia inteiro sem atinar com o motivo da fuga.  Por outro lado, sentia o peso da promessa feita e nem a minha mãe podia perguntar.  Mas na manhã seguinte entrevi um fio de claridade quando o Luís se virou para ela a rir, tão, agora  já dormes mais à larga...Lídia pôs a sua cara briguenta e perguntou quem lhe tinha contado e ele, sei lá, a minha mãe, os meus irmãos, ou foi na taberna, toda a gente sabe. E acrescentou mais baixo, a debruçar-se sobre ela, dizem que a tua irmã está de barriga. Eu não estava  a entender a conversa e comentei livre de promessas, eles já devem ir muito longe mesmo, se calhar nunca mais os vemos. E o garoto a rir-se, ui, nem sabes a lonjura, foram até à casa da mãe dele que é aquela ali no cabeço, ao pé da linha do comboio. Sem tempo para me refazer do espanto, reparei que Lídia atirava o saco da escola para a valeta e, com ar de gata assanhada, se agarrava aos braços do  Luís e desatava a pontapeá-lo nas canelas, gritando e chorando de raiva, quem é que tá de barriga, vá diz lá outra vez que eu agarro já numa pedra e atiro-ta à cabeça. Dizes outra vez que a minha irmã tá de barriga e nunca mais te falo. Mais alto e forte que ela o garoto desprendeu-se, afastou-a de si queixando-se das nódoas negras nas pernas e acrescentou, tá bem, não digo mais nada, não precisavas era de me bater. 

The Room

 Vi “The Room”. A entrar na sua verdade aos poucos. Como de hábito. Primeiro julguei que aquela garota estivesse fugida, escondida da polícia por prática de homicídio ou crime de igual calibre. Em seguida, compreendi que estava prisioneira e só depois me sobreveio a extensão da desgraça. É presa de um bruto qualquer, um desaparafusado sexual que a enganou aos dezassete anos dizendo-lhe ter um cão doente e que a conserva com o filho dos dois, dentro de um quarto miserável que serve a tudo, numa barraca do seu quintal. Nada que a realidade não tenha já mostrado e até com avanço de malvadez, o que é bem triste.  Foi justamente ontem que passou na TV “O Livro Negro”, um dos muitos filmes sobre o descalabro nazi. Da primeira vez que vi a fita, gravou-se-me o momento em que assistimos ao desgosto de uma mulher exaurida. Era a hora certa para bisar na sétima arte. Confirmo, a jovem detém a melhor interpretação que conheço para um desgosto sem alento. E hoje, “The Room”. Humano masoquismo. Só pode.
Acontece que Brie Larson concorre ao prémio de melhor actriz e queria avaliar o naipe que defronta a imparável Cate Blanchete. Tem uma boa prestação, a garota. Pinta-nos o amor maternal que fosforece preocupação e ternura imaginativa no desgraçado exíguo da divisão onde vive com o filho de cinco anos, sofrendo as sevícias do monstro com aspecto de homem normal e inteiramente nas suas mãos. Assistimos à força redentora do amor materno que, no retorno do tempo normal e à semelhança do que sucede com o corpo no período pós stress, se vê exangue e quase sossobra . Há muita desgraça para assistir. E uma criança a prender-nos. Grande parte da narrativa pertence-lhe, o que ajuda a desconcertar a aura de desgraça e violência psicológica. A ingenuidade natural como que repõe alguma ordem no eclodir de sentimentos suscitado por situação tão abjecta, mais aberrante por ser real. E depois, o fim não é traumático, resume-se ao direito, para alguns tão suado, de habitar no mundo. 
Portanto, é de utilidade pública vermos filmes desta natureza. Que nos levam a deduzir que a nossa vida é, de longe, preferível às do écran. Como me servi de dose dupla, não saio a perder. Concedo: sou feliz, tenho uma vida desafogada, pertenço aos bem aventurados.

Que a paz esteja convosco. E o Senhor vos acompanhe.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

A verdade é que o nosso mundo era quase exclusivamente da lavra das mães. Os pais eram pessoas de quem não gostávamos, tínhamos medo e até terror deles. Pai era força bruta que sempre nos dobra a autoridade na família. O seu estatuto era ser implacável e desconhecia os termos esquecer, perdoar, desculpar. O nosso era mundo castigador e descomprimia na violência física, de eficácia obtida e comprovada em experiência ancestral. Obrigavam-nos à vassalagem - pedir desculpa ou perdão - e não desculpavam, fechados na mudez de um rancor que não entendíamos, as nossas brigas aconteciam para resolver rancores, tudo passava após um “ensaio de murros” infantis. Mas não havia tal fenómeno no mundo adulto.  Ao chamamento dos pais tínhamos de acudir prestes, eles encontravam-nos no fim do mundo se  preciso fosse e, em caso de fuga, podiam rachar-nos ao meio se quisessem, ameaça que muitos gritavam a espumar. A arbitrariedade dos progenitores era total, mas não pensávamos nela. Era natural. Comparativamente às outras crianças, apercebi-me da sorte que tinha. O meu pai ainda não me batera, o que deixava os colegas de boca aberta, e, como todos os outros pais, vivia fora de casa, no trabalho ou na taberna. Para mim, era um rapaz com um cheiro diferente da minha mãe, mais activo talvez, mas não desagradável; a sua figura magra parecia-me altíssima e pouco nos frequentávamos um ao outro; estava sempre a montar-se na bicicleta a pedal para ir a algum lugar; tinha um colo inóspito para onde me requisitava em serviço utilitário e raro, em geral, para descobrir alguma coisa sem perguntar a minha mãe. Ao invés dela que transcendia o papel, o meu pai recusava-o involuntário e muitas vezes me chamava o nome de uma prima a sugerir, anda cá ao tio. Ainda vivia desfasado: durante a semana era chefe de família e no dia de lazer sobrava-lhe na diversão o desportivismo de arremedar os solteiros. Considerava-o visita no gineceu que eu e minha mãe habitávamos, a sua ternura reinando calada ou a cantar-me canções em voz baixa e melodiosa; delas me sobrou o verso de uma, solicitada amiúde e talvez premonitória “foi a camélia que caiu ao rio e depois morreu, nunca mais se viu”. A minha mãe contava histórias como ninguém.  
Breve me dei conta da fortuna, eu tinha uma mãe diferente das outras. Quando Lídia e Luís comentavam com naturalidade os maus tratos dos pais e eu escandalizava, e a tua mãe não fez nada?, eles, não quis saber, quando calha ela também bate igual e às vezes ele chega-me com mais força porque ela faz queixa. Eu dava graças por ser a mais velha, olhava a minha mana ainda no berço e pensava que nunca seria capaz de agir como os irmãos mais velhos dos meus colegas que na ausência dos pais lhes copiavam o gesto e moíam os mais novos de pancada. E já nessa altura estava segura: a minha mãe jamais faria queixas ou seria capaz de assistir uma sova injusta sem se mover. 
Mas a verdade é que, aos domingos, bebedeiras azedas engalfinhavam os homens  e não era raro saírem dois da taberna em roldão, a esmurrar-se pelo chão de terra e que os meus dois amigos se aproximavam  do círculo de assistentes que os seguira numa morbidez que nunca entendi. Que havia vezes em que até as mulheres se derrubavam pelo chão da mercearia, o caixeiro de lápis atrás da orelha a separá-las, braços a ordenar o matagal de cabelos devastados por ventos de ódio, os lenços da cabeça um esfregão repisado, e ele, então, então... Indiferentes à bandeira branca, as beligerantes cresciam numa exaltação em contundência de punhal, cuspindo uma à outra palavrões e ofensas, às vezes um sopapo desastrado no intermediário que até o lápis lhe voava e ouvíamos-lhe o baque no chão de cimento a rebolar pelo esquinado, ou o som amortecido se caía dentro da tulha da alfarroba ou do milho, os ingredientes a acordar, que é lá isso. E ele a exibir o sinal vermelho, esquivando-se a uma mão pesada e capaz de voltar para trás do balcão a rectificar o peso do quilo de açúcar amarelo,  parem lá com isso senão ainda chamo aqui a guarda e vão as duas presas. A estas palavras gritadas, elas separavam-se e seguiam para casa cabisbaixas e descompostas, esquecidas das mercearias, a resmonear sentenças de morte e secretamente envergonhadas.
Era assim a autoridade do nosso mundo , espumava como garrafa de champanhe. E entornava desmedida e quezilenta mal havia um toque na rolha. A maioria das conquistas fazia-se à custa de fúrias maldosas, murros, puxões de cabelos, pauladas, canivetes que se abriam e podiam cortar. A escola primária trouxe-nos o poder do grupo e situou-nos.  Naquele ano, a professora foi um oásis de compreensão e entendimento, o tempo de descanso da criançada. Não houve ninguém na minha sala que desgostasse da escola. E os alunos da sala ao lado lançavam-nos invejas anzoladas, quem dera termos a mesma professora, a nossa é velha, bate com força e nunca se ri.

"O Tempo de ir à Escola"

Logo no segundo dia acrescentámos companhia e  marchámos para a escola acompanhadas do  Luís do barbeiro. Era um garoto calmo, bem disposto e palreiro que vim a descobrir ser meu vizinho. Durante os trajectos, e à medida que ganhávamos confiança uns com os outros e com a escola, trazíamos à conversa os bicos dos lápis afiados a canivete pelos pais ou pelos irmãos; o despique versando a letra mais redondinha e apurada no abecedário; as nossas vitórias sobre o olhar da professora a passear nos trabalhos de casa que a Lídia descurava e eu ou o Luís lhe arremedávamos à pressa antes da entrada, para manter o incólume aos olhos da mestra que toda se derramava para ela, mesmo vazia de canudos;  e, sobretudo, falávamos  da vida familiar.
Por vezes ganhava-os no meio escolar, mas eles batiam-me em quase todas frentes caseiras de novidade: tinham mais irmãos, dormiam enlatados como sardinhas, cada cama com pelo menos três pessoas, facto que me provocava ilimitada impressão incitando experiências com as almofadas da cama de meus pais a fingir gente, e que mais entorpeciam o meu entendimento. Destas experiências resultava compaixão ao desbarato, parecia-me que o sono deles era como estar preso, o corpo sempre a encontrar barreiras. Além disso, era difícil imaginar-me deitada com uma pessoa que tinha os pés onde eu punha a almofada. Também me dei conta que as sovas campeavam  a um ritmo que  me condoía o espanto. Ciente do desconcerto que provocava, Lídia contava-mas em pormenor de palavrões e pancada e como que se ufanava da desgraça. Arregaçava a manga e mostrava as negras no braço, deu-me um apertão que até ficaram os dedos aqui marcados. E se eu chegava a mão, não carregues que isto dói, ouviste. Ao despique, o Luís subia os calções e nas coxas muito brancas vergões roxos e cruzados esverdeavam pernas acima. Nós duas penalizadas e ele, o meu pai bate com força e bêbado é do pior, ontem foi mesmo com aquele pau que tem atrás da porta. Eu imaginava a cena e quase chorava, as imagens a violentar-me, como é que tu te sentas agora, o que é que fizeste para ele te bater tanto. O garoto encolhia os ombros à primeira metade da resposta e, quando vem com o vinho não é preciso fazer nada, tenho é que lhe sair da frente, mas se me chama...e continuava a andar e olhar em frente muito sério. Mais tarde compreendi que nem sempre a violência tem um motivo próximo, pode ser um hábito que se apanha como um trejeito, ou o resultado da bebida que desperta a besta insatisfeita, ou apenas o lastro da miséria, purga de sobrevivência. Nessa altura, apenas pensava que o meu pai que não tinha paus atrás da porta e, graças a Deus, usava suspensórios a segurar as calças.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

No fim da vereda, junto ao portão da escola, brilhava um carro preto mais pequeno que a carrinha do Luís da mercearia. Maravilhados, os rapazes rodearam-no em círculo de respeito. Muitos de nós ainda não se tinham sentado num automóvel. Portanto, qualquer proprietário de veículo de quatro rodas nos subia na consideração. Entre a saia de minha mãe e a parede de crianças, eu entrevia um senhor barbeado e penteado e um braço de mulher. Correu célere a estupefacção, a professora é outra. Escondi-me e agarrei com mais força as ramagens, mas a minha mãe, suavemente, abriu-me o enclavinhado de dedos enquanto ouvia a porta do carro fechar e o braço desaparecia. Então os garotos correram em cacho para junto de nós e esperaram. Ouvi uns passos regulares e diferentes, recuei ainda mais dentro da saia e a minha mãe impeliu-me para o amontoado infantil, vai, filha, agora fazes o que a senhora professora mandar. Ouvi-a dizer, bom dia, minha senhora!, e vi-lhe as costas a desaparecer. Tínhamos iniciado o nosso processo de despedidas: sem lágrimas ou som. Mas o meu rosto deve ter dado alarme porque alguém me pegou pela mão 
 - Anda cá, dá a mão a esta menina tão bonita, cheia de caracóis; já viste, ela está contente por entrar na escola.
e levou a minha mão até à mão estendida da canudinhos. Fiquei ali quieta de mão dada, mas a canudinhos espevitou
 - Sou a Lídia, como é que tu te chamas?
 E eu
 - Onde é que está a professora?
 Ela a estremecer os canudos de cima abaixo
- Era aquela senhora que te pegou na mão – e estranhando -,  não a viste? Usa meias de vidro e sapatos de salto alto – e logo a inchar de orgulho -.  Eu fui esperá-la ao carro e ela disse que sou muito bonita. Olha, vi uma coisa: o homem deu-lhe um beijo na boca. – e a insistir sem transição -  Como é que tu te chamas?
Mas eu estava rendida à mão e à voz que me tinham levado. Desconhecia se era loira ou morena, bonita ou feia, de bom ou mau feitio, mas soube que ia gostar daquela mulher. E quando mal me percatei, a professora sorria na nossa frente e dizia
- Os pares de hoje vão ser de ano inteiro – a canudinhos deu-me um apertão nos dedos.
Depois a mestra olhou para nós duas e apontou-nos aos outros
- Estas duas meninas ficam sempre à frente na forma; cuidado com os empurrões que elas são muito pequeninas e podem cair.
- Sim, minha senhora. - trovejaram os garotos; e, entre cochichos, ouviram-se uns risos baixos.
- O resto falamos lá dentro. Agora limpam os pés e podem entrar. - e desviou o corpo da porta.

A professora sentou-nos na primeira carteira da fila do meio e, para minha alegria,  ficámos parceiras. Breve entendi que se eu era a menina de minha mãe, Lídia era a menina da professora. Tornámo-nos inseparáveis. A minha mãe sem que eu entendesse, são corda e caldeiro. Manhãzinha, ela passava em minha casa e seguíamos juntas para a escola e na volta fazíamos igual. Foram sobretudo  estes percursos com ela que me instruíram de mundo. Aprendia umas coisas por perguntá-las, outras pelas suas observações casuais. Por exemplo, ao segundo ou terceiro dia de escola perguntou-me porque dava sempre um beijo a minha mãe quando chegava e me despedia. E quando respondi, porque sim, não pareceu satisfeita. Voltou-me os caracóis despenteados todos descaídos para os olhos e inquiriu interessada, tu gostas? Fiquei sem jeito, nunca tinha pensado no assunto, achava que era igual em todo o lado. Respondi-lhe nesse sentido e acrescentei que à deita e também ao levantar, repetia. Intrigada, perguntei-lhe como era em sua casa. E ela, não é nada. A minha mãe só bate e ralha com a gente. Não há cá beijos. E acrescentou mais baixo, e o meu pai bate pouco, mas é sempre com o cinto, o malvado. 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

Conheci-a no país da infância, aquele lugar imune às derivas climáticas e ao rodar das estações, pedaço de tempo em que  o mundo inteiro cabe no que os olhos alcançam.  Era um sete de Outubro qualquer e estávamos as duas na porta da escola.  Eu atordoava de novidade e timidez, siamesa de minha mãe, no tormento da separação que chegaria fatal. Ela, parecendo indiferente à minha pessoa, absorvia no seu show  particular, saltinho aqui e  ali, a exibir os caracóis que a mãe desabrida lhe arrumava a espaços, atirando em voz de lata ferrugenta, pára quieta gaiata, desmanchas o cabelo todo, tou aqui tou-te a assentar a mão. Por mim, embasbacava nos caracóis alinhados e enrolados em canudos um após outro, iguais aos dos reis que o meu tio mostrava nos livros e que eu, desconhecendo a existência de cabeleiras, admitia serem parte da sua diferença específica. Era óbvio que os reis tinham cabelo branco comprido e aos canudos acompanhado de  sangue azul igual ao da caneta de tinta permanente que a minha tia guardava na gaveta do guarda-loiça.  Mas aquela garota era muito mais bonita que eles. De início, julguei-a uma princesa de pele branca e  boquinha de romã, a oscilar os canudinhos a um lado e a outro em sincronia monárquica. Mas depois observei as nossas mães: a minha esperava calma, imersa na sua natureza silenciosa a que jamais  ouvi um grito. Nessa manhã, usava a saia preta de ramagens sobre uma blusa clara que ajustava com o cinto elástico; tinha alisado a permanente em respeito pela risca ao lado, de forma que os caracóis castanhos penduravam sobre as orelhas, duas molas compridas a sujeitá-los. A minha mãe era jovem, magra, de cheiro limpo e doce, tinha voz maviosa e eu sabia de fonte segura que gostava de mim. A mãe dela era brusca, velha e quando se mexia cheirava mal. Trazia um lenço escuro amarrado à cabeça e atado atrás com pontas que penduravam para as costas e não lhe vi um fio de cabelo; usava saia até aos pés e um xaile preto traçado sobre o peito com dois ou três alfinetes de ama pendurados e parecia-me que estava descalça, facto que me intrigou. Não consegui descobrir se vestia blusa. No rosto largo havia uma zanga reiterada com o mundo, o grito da voz era serrote a arranhar na lata e pensei que a mulher não devia saber dar beijos ou fazer festas. Porém, quando assuntei minha mãe logo ela se apressou, está caladinha, falamos depois lá em casa. Portanto, desisti da ideia de que a minha companheira fosse princesa de verdade. À força de perguntas mil, minha mãe contara-me que os pais da princesas eram os reis, que tinham tudo que queriam, dinheiro, castelos, cavalos atrelados a umas carrocinhas tapadas e com janelas onde se passeavam e a que chamavam coches; as senhoras usavam saiotes, ignota peça de roupa interior , e vestidos bonitos e compridos, que, coisa para mim incompreensível, lhes bordavam a ouro. Ora a velha não era uma aia, eu já ouvira a criança  chamar-lhe mãe. Portanto, alijada a última esperança, resignei-me a acompanhar na escola a menina mais bonita do mundo, mas sem coroa nem coches.
Entretanto, os garotos que já frequentavam a escola no ano anterior iam chegando sem novidade. Davam uma mirada aos caloiros e desvaneciam também com a franguinha, enfileirando para lhe tocar os caracóis que a mãe vigiava de mau modo, a resmungar, já veha e havia de me vir um pingarelho destes.  Os mais velhos admiravam-na em molde escolar, mexendo-lhe nos cabelos em troca de pratinhas pequenas, bocadinhos de lanche, mostras e saberes de casa de banho, avanços numa corrida. E também se exibiam para nós e para as nossas mães em corridas de velocidade à volta do edifício, no jogo da apanhada, a saltar à corda que pesava nos pulsos e dera liberdade a um caldeiro de poço. Todos se alvoroçavam com  os novatos, onde é que moras, já tens os livros, compraste a pedra e a pena, queres ir com a gente à saída da escola, moramos para os teus lados, vem lá com a gente e deixamos-te espreitar as rãs no poço do meu avô. E um ou outro aluno mais abonado puxava de uma caixa com uma dúzia de lápis de cor Viarco, desenfiava a tampa de cartão e com um toque de braço apareciam os doze à espreita, coloridos e afiados. Acolhiam-nos exclamativas frases e olhos. Logo surgiam pedidos insolventes, deixas-me pintar com o azulinho claro  e o cor de laranja, dou-te a minha carica de laranjada, uma castanha crua, este berlinde...
Contempladora do novo mundo, encolhia-me cada vez mais e, quando todas as brincadeiras pararam súbitas, antevendo o desfecho, desejei o ninho. Ouvi distintamente, Vem aí a professora!

Não fazia ideia do que fosse uma professora, nunca tinha visto nenhuma. Portanto, mirrei o mais que pude,  a desejar uma osmose que me perdesse nas ramagens rodadas da saia de minha mãe. Olhei em frente e a lindeza dos canudos ia, mão dada com as mais expeditas, esperar a mestra.  Invejei-lhe a audácia.

Parabéns

A minha mãe faz hoje 82 anos. Ainda era manhã quando colhi dois lírios e os rodeei  de frésias amarelas e roxas, perfume de campainhas  que teimou florir-me ao rés da porta. De seguida, entremeei algumas folhas verdes de espargo e cameleira silvestre e dispus tudo em ramo oloroso. E julgo que ficou ao nosso gosto meio campestre e algo canhestro, as flores ponta-acima, ponta-abaixo. Um bouquet a modos que alegre, orvalhado da chuva matinal, pingentes irisados e verticais a pendurar no brilho das pétalas.
 Cheguei de flores na mão e ela ali, a recebê-las feita rapariga a sorrir. Não com 39 anos. E muito menos com 80. Uma rapariga que se vê no profundo dos olhos que o é. Alindada num colarzinho barato e no pudico pregador a fechar a linha do decote. Tem no macio da face um sorriso de dentes pequenos e alinhados e pinta os olhos com ilusões. E fixou-me tal qual, na perenidade  imortal dos 20 anos. Podia ser minha filha. Serena e a reluzir confiança no futuro que lhe fugiu. Nunca discutimos. Para quê?! Tão curto é o tempo que nos junta que seria loucura consumi-lo a agastar-nos. Gostava de ter ficado mais um pouco na sua casa fria e clean, mas chamavam-me os compromissos de acolá e acoli. Mirei-a docemente, a convidá-la de cabeça. Mas ela, não filha, fico aqui no meu lugar, obrigada pela lembrança. E isto tudo sem desmanchar o sorriso de rapariga, sem se desviar um milímetro de ter vinte anos aos oitenta. Minha querida mãe! Então tratei de humedecer as flores e poisá-las ao rés do seu claro sorriso. Abracei-a e ela junto ao meu ouvido, a repetir, deixa-me chata, mas sem uma aragem de movimento, os seus ombros no nicho dos meus braços, tão frágeis e estreitos como sempre os conheci.  
E depois vim-me embora devagarinho a voltar-me para trás muita vez, ainda assim não me chamasse ou me quisesse para um recado qualquer.

            Porém, mal entrei no carro e me sentei, ela ali, de pendura, a puxar a saia abaixo do joelho e logo abotoando um botão de casa larga no casaco lavadiço, um tom de troça benfazeja, vamos filha, ainda temos de passar no super.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

No Princípio era o Verbo...

        Ontem o dia assolou de frieza e quedei-me por casa, o espírito em devaneio por entre fogos acesos. À tardinha, depois de passaricar aqui e ali, as pernas aborreciam o lazer e a mente acudia em solicitude nervosa apelando à mudança. Vesti um  casaco e saí. No exterior, o ar pareceu-me mais morno e uns oblíquos de sol despediam amarelos doentes que o cão aproveitava, o focinho brilhando aos pequenos de sol, corpo em oferta preguiçosa. Cruzei o portão e ficou a seguir-me todo olhos fiéis, o pedido mudo diluído na íris, “volta”.
Sem particular interesse pelo caminho a tomar, segui em frente. Em frente é a forma mais linear de sabermos que nos afastamos, será também por isso que existe a expressão “fuga para a frente”. Na verdade, obliterada a logística do mundo redondo,  ir em frente é animador, dá a ilusão de mudança.  Mas pode ter sido um acaso. Que não foi primeiro, já tinha cruzado outras vezes  aquele trilho repleto de poças de água e quase deserto. Acertei os meus olhos pelo declínio do sol e, pensando que estariam no seu posto, estuguei o passo. Andei umas centenas de metros, virei uma esquina campestre já a acinzentar, e, junto aos eucaliptos, o meu olhar ziguezagueou pelo valado. Estavam sentadas juntinhas como namoro pegado. Logo o meu passo abrandou sem decisão haver. Na sua frente, passei devagar e cumprimentei desejando, naquele ápice, captar do quadro quanto podia sem interferir no encanto das duas. Conversavam ligeiramente viradas uma para a outra, dois ou três dedos de intervalo entre elas e enquanto uma falava a acenar com a mão a outra ia assentindo de cabeça. Quando passei, levantaram a cabeça e sorriram-me na confiança de ter havido outras vezes. De seguida, responderam à saudação e logo reataram conversa enquanto eu lesmava vereda fora. Já as observei em momentos diversos, quando chegam de caminho oposto; enquanto conversam; em rituais de despedida, uma a levantar-se primeiro do valado, alisando a saia nas traseiras. Certo dia atrasado de corpo e espírito, encontrei só uma a catar lenha caminho fora, pára aqui, pára ali. Acompanhámo-nos por um bocadinho, eu a esperá-la na beira do caminho enquanto partia paus e descobria acendalhas naturais. A noite começava a cair e, assim sozinha, nem a reconheci. Mas quando ela, sabe, a minha prima vive além naquele monte, a apontar para o indefinido que a noite estendia, compreendi quem era. Então, contei-lhe como gostava de as encontrar, a reparar-lhe a coincidência de horários. E ela feliz na lembrança da parente, a gente está sozinha o dia inteiro, ela ainda tem marido mas é muito doente e não pode fazer nada, nem até aqui chega, veja a senhora como ele está das pernas – e depois de uns passos em silêncio, como quem conclui -. as mulheres precisam de falar umas com as outras, é outra coisa. Olhe, este bocadinho sentadas no muro, a meio caminho das nossas casas, é um desafogo. E depois apontou um dedo orgulhoso a uma vivenda por entre laranjeiras, eu vivo lá atrás numa casinha, esta vivenda é da minha filha. Até amanhã se Deus quiser . E atalhou sem mais em direcção ao branco da vivenda a desmaiar por entre gigantes sombrios que eu sabia serem diurnas  laranjeiras impando contentamento em frutos solares.

 E ontem. Ontem mesmo. Depois de vê-las. Acudiste-me à lembrança. Não apenas tu. As minhas amigas. Voltei a casa no anteparo do escuro, o focinho do  cão uma mancha desimportante, mas ainda o contentamento dos olhos  a dilatar. Então fui revolver os álbuns de fotografias antigas. Mas não estás. Só me existes – tu e outras personagens – na memória. Guardei os álbuns a pensar que tenho de dar-te vida. Urges. Vou baptizar-te com a água das palavras. Mesmo que corram para nenhum lugar.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Carol

Andei que tempos a pensar no filme desconhecendo-lhe o conteúdo, mas crendo o contrário. Assistira à mostra numa sala de cinema e convenci-me que versava a relação mãe-filha. Ora, Cate Blanchett é mais valia, actriz exemplar e fascinante, à moda antiga, bem escolhida para dínamo de um filme sobre os anos 50. E a outra personagem feminina parece-se estranhamente com Audrey Hepburn, o mesmo ar de garota ingénua e sonhadora, rostinho miúdo, olhos grandes e, ainda que não do castanho profundo de Audrey, com a mesma frontal fixidez, franjinha curta e figura delicada. Pensei que ambas mereciam o risco.
            E desgostei. Falta ao filme aquele cunho de verdade plástica e emotiva que toda se esparrama no desempenho e na história de “The danish girl”. Certo, não é o mesmo problema. A realidade não está aos gritos, é toda encenada, servida quase a frio. Pois, mas não é só isso. Carol dá-nos uma visão muito estereotipada e pouco real da homossexualidade feminina. De como era ser lésbica no meio do século XX. O filme desenvolve-se por conflito de três qualidades de amor: marital, maternal e lésbico. Acontece que sobretudo os dois últimos não parecem convincentes. Digo eu, na mera perspectiva de observadora que nada entendo de filmes, música, realização e pormenores técnicos pasto de experts. Carol é alta burguesia e move-se em ademanes de lady homossexual com conhecimento do marido que continua a a amá-la. A dado passo, o beber excessivo dele é atirado (e ilustrado) como uma espécie de desculpa da senhora, sempre em seu pedestal, para o afastamento físico. O que nos deixa quase a simpatizar com ele. Porque não sabemos, em definitivo, se beber não é a base que o ajuda a suportar a situação difícil a ambos. Pelo visto, ela satisfazia-se sexualmente e ele não. Afinal, a lady tinha/tivera um caso duradouro com a melhor amiga, continuavam a encontrar-se Parecem naturais a proposta de separação e o ciúme masculino misto de raiva e frustração. A futura partner amorosa, a que a fita desenvolve, é empregada de loja. E ali se conhecem até evoluírem para a cena concreta – de cama - que me lembrou a vez em que um garoto bebeu vários copos de vinho e depois eu o vi sair aos ziguezagues e vomitar roxo mal chegou à rua. Náusea.
            E o amor maternal também falha. Quantas mulheres do século passado - e mesmo deste -, sob proibição de visitar a filha até à conclusão do processo de divórcio em que ambos requeriam custódia da criança, arriscavam começar entretanto uma relação proibida e que, a ser descoberta, faria pender a balança para o lado paterno. Muito poucas. E os motivos estavam à vista: o processo não ia durar assim tanto. Como não durou. Mas Carol não fica tão devastada como qualquer mãe normal, pergunto-me se será pela distância educada que a aristocracia mantém em relação aos factos.  E vai, romanticamente, espairecer com a sua conquista enquanto espera a audiência no tribunal. Ora também na relação entre as duas mulheres há qualquer coisa de estranho e desigual que pouco nos faz pensar em amor. Há um domínio claro de Carol, um cumular de atenções que nos desvia do amor, quase parece um processo de sedução banal, um fetiche. À cena de cama falta magia, sinceridade, mas concedo, pode ser a náusea a impedir-me a clareza.
            E depois há um remate que julgo mauzinho e que pouco convence. Um desprender para que voltes, a que falta sentido e onde a primeira ex é causa eficiente. Como se realizador ou argumentista ou quem seja, queira dar a entender o papel da escolha, propondo, “se vieres vens pelo teu pé, portanto agora é cada uma à sua vida”. Depois, na primeira reunião do processo de divorcio, por dignidade e amor à criança (diz ela), Carol abdica voluntariamente  da custódia da filha. Afirma que também para poder realizar a sua natureza.
Mas continua faltando alguma coisa. No final, quando segundo parece as duas são livres de alma e corpo, o chamado parte de Carol. E fica tudo bem apesar de um ou dois momentos de hesitação da garota.
Isto não é nada, menina Cate Blanchett! Estás bem em qualquer lugar, mas como é que entraste nesta farsa do século XXI toda Lauren Bacall a contracenar com a Audrey disfarçada. Então?!... Assim não vale. As lésbicas mereciam melhor. E tu. E eu. Mas talvez nem tenhas direito a ralhete. Talvez quem realizou (ou quem escreveu) seja como eu, espontaneamente toldado do juízo e no afã de querer incluir muito sentimento não se tenha debruçado verdadeiramente sobre nenhum.

Olha, não me pareceu consistente, queres o quê.