segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Mistérios de "Fazer Anos"

A infância palmilha-nos a existência e vai destinando aqui e ali. Depois dos vinte, quando a decisão passou a pertencer-me por inteiro, a graça de haver aniversários esvaiu, escorreu como água entre os dedos, movida pelo desábito nos festejos. Para disfarçar o desânimo, instituí um princípio: passar o dia dos meus anos com o mar. Propósito que cumpro há mais de três décadas, salvo uma ou outra excepção.  Contudo, entre os vinte e os quarenta ainda me assaltava a leve esperança de uma festa-surpresa, reunião de amigos e família mais chegada. Que, naturalmente, não aconteceu; ninguém me adivinhou o sonho.
 Hoje,  fazer caminho até ao mar já não substitui o desânimo; é alienação saudável e desejada, ritual que me descansa a alma cansando o corpo. Nas voltas do caminho, perdi o anelo de presentes e a festa-surpresa de outrora tem estridências de palermice barulhenta e indesejada. Envelheci. Mas continuo a celebrar a alegria de mais um começo. E, mau grado os meus esquecimentos negligentes, arranho-me  na indiferença dos mais próximos.
Entretanto, os anos galgaram uns sobre os outros. Alguns saltaram com mais arte, que isso de 365 dias é calendário. Quem não teve horas que duraram vidas, minutos que ameaçaram a eternidade, semanas que voaram...que atire a primeira pedra.

Mas este ano alguém me fez um bolo carinhoso e o trouxe até minha casa como se um cristal lapidado; não descurou o doce de ovos, concentrado de pingos luminosos apurados em lume brando, doçura lenta a escorrer bolo abaixo; acobertou as nozes partidas em risonhas metades de cara patusca; completou com velas e enfeites de aniversário ao rigor e gosto infantil. E montou tudo à minha vista. Ali. Num cuidado fraterno de dedos embebidos em ternura de tanto ano. Éramos só nós a cantar parabéns e bater palmas (cantei e bati palmas a mim, o que bem vistas as coisas, é estranho). E não sei explicar, mas aquele bolo soube-me ao aniversário que tanto desejei em miúda.  Era ele e mais nenhum. 

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Mistérios de "Fazer Anos"

Vieram mais anos. Cresci.  Cumpri o sonho do Magistério. E, no alvor dos dezoito, minha mãe, vamos festejar os teus anos em casa da tua madrinha. Minha mãe comida de cancro, macilenta, a deitar fora tudo que forcejava por engolir, arrastando um trambolho inchado onde as meias não subiam. E ela num sprint final, consumindo-se em cada gesto de manutenção em casa e na quinta: as crianças, as roupas, as refeições, a escola a horas, a lida; os porcos, as galinhas, os coelhos, o burro....O que é que fica do trabalho das mulheres quando elas se vão?! Nada. Zero. Vendem-se os animais e distribuem-se os filhos, as roupas e as canseiras que eram suas. E vive-se. Porque, apesar do que muita gente pensa, não fomos talhados para a morte, ela acontece-nos. A prova é que só existimos enquanto vivos.
A novidade de outra festa de anos não me alegrou. Respondi que não valia a pena. Mas ela virou-me aquele olhar comprido e sem fundo que lhe chegara com a doença e,entre a ternura e a tristeza balbuciou, não voltas a ter dezoito anos filha; e nessas palavras ouvi, da próxima vez já cá não estou. E esse facto iniludível é que me importava demais. O aniversário dos dezoito anos aparecia-me irrisório, quase um estorvo porque iria cansá-la, quem sabe, retirá-la de mim um pouco mais cedo; celebração idiota, falha de sentido.  Porém, minha mãe queria ainda agradar-nos: dar-me nova festa de anos; levar à feira - onde não voltara depois da minha infância tenra - os meus manos mais novos. Anuí. Fiz um bolo e fomos os cinco na carreira. Mal saímos de casa, talvez por maldade pura, os relógios quase pararam e gastámos um conta gotas de horas a disfarçar a denodada tristeza que insistia em força e nos rasgava os propósitos mais firmes. Que podem existir almoços e lanches pesarosos, apesar dos bolos certos e de sabor requintado. Depois do almoço que não reteve, minha mãe deitou-se a descansar para aguentar a feira que era logo ali,  do outro lado da rua. E à tarde, nós na primeira fila de barracas a comprar um entretém para cada um. Paguei às pressas a notar-lhe, a mãe ficava com a madrinha, eu podia bem trazê-los sozinha. E ela a segurar-se para não cair, não, eu hoje tinha que vir, filha. As ciganas a despacharem-me  condoídas, olhando-a apoiada na banca, ó santinha, vocemecê está carregadinha de doença. Nós cinco de regresso, eu temerosa de não conseguirmos chegar a casa da madrinha, um olho nos garotos que seguiam ordeiros, imersos na dádiva, siderados de encanto nos brinquedos baratos.
Não tenho memória de apagar velas, de sabor ou qualidade de bolos, da ementa do almoço ou do lanche, de alguma prenda que por certo recebi. Daquelas horas frágeis me ficou esta cinza de tristeza a lembrar a alegria que fingimos mal, o desmando do cancro a impôr-se, o beijo no rosto de só ossos e olhos, um corpo que estreitei e desaparecia dos meus braços havia anos, cada vez mais, cada vez mais. E tanto sofrimento incomum.
À noitinha, um táxi foi pôr-nos a casa, a minha madrinha peremptória, eu pago o táxi, vão de táxi sim senhora. E só os meus irmãos voltaram como foram: crianças e contentes.

Mas, pelas três da tarde, eu tinha feito dezoito anos. Por certo frente a um bolo de velas e com fundo cantado de parabéns.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Mistérios de "Fazer Anos"

Ao lanche, as minhas irmãs e primo animaram as hostes. Felizes. Contentes de estarem pela primeira vez numa festa de anos, o primo todo pipi com uma camisa nova. Apeteciam os papo-secos com manteiga e o refresco, o pudim instantâneo e uma fatia de bolo azedo. Eu, esperançando na cobertura de chocolate; eles, ignorantes, a desejarem parti-lo. Cantaram-me os parabéns. Apaguei as velas. Tive de partir o bolo. E mortificámos à primeira dentada. Ao invés da minha amiga, os garotos mais novos desataram as matracas e arrematavam o bolo sem peias, a cuspi-lo em papa para dentro das taças vazias do pudim. Envergonhei. 
Depressa esquecemos o desaire e fomos para a rua que, manhãzinha, tinha varrido inteira. Com um pau, traçámos os campos e jogámos ao ringue, objecto precioso porque em borracha verdadeira, eu toda importante para os gaiatos da escola, apalpa lá, apalpa lá; e eles depois do acto, num respeito todo novo, pois não, não é plástico, este bate sem doer e agarra-se tão bem - e volteavam-no entre as mãos a concluir -; macio que nem esponja. E o orgulho expandia e subia-me ao ser.  Esta relíquia viera-me às mãos numa actividade da minha vida de Cruzada, via concurso religioso.
Há males que vêm por bem. Nessa tarde, a falta de pontaria foi-me providencial e contribuíu para o êxito do jogo;  mal se notou a diferença de idades.

Ao jantar, fiz questão de beber pelo copo que a minha amiga ofertara, a espanejar-me na inveja dos miúdos. Eles de mão estendida, deixa-me experimentar, deixa-me experimentar, pego só um bocadinho. E eu a desviá-los decisiva, não. Eles  franzidos de amuo, as mãos paradas, sem gesto, garganeira. A taça era alta e oblonga e repousava sobre o complemento - um pratinho pequeno -, uma linha dourada a contornar-lhes o rebordo. Num dos lados do vaso, espiralava um ramo de flores em amarelo e violeta suave; no outro, brilhava a palavra Amizade, floreada e diagonal, inscrita em coração dourado. Linda. Linda. No dia seguinte, a vaidade do conjunto ofuscava no semi vazio da cristaleira. Rei entre plebeus. E quanta vez passei e me suspendi a olhá-lo gratamente, procurando força na dinâmica do vidro, nas flores que  tão bem casavam, na palavra em harpa. Que a gente quando sofre precisa de beleza no caminho. 

Mistérios de "Fazer Anos"

Ora, há ideias que falsamente nos abandonam. Encenam a retirada, mas demoram-se nos bastidores; e por ali ficam  emudecidas, trabalhar em secretismo de teia. Que vai crescendo no segredo do público que também somos. Um dia, irrompem pletóricas. Invadem-nos. Exigem. E nós, que dizemos fazer-nos livres e autónomos, cedemos. Deixamo-nos levar. Próximos da irracionalidade.
Portanto, quando a puberdade me apanhou e perdi toda a graça e proporção, desatei a desejar a festa de anos com a mesma convicção com que antes a enxotara. Lamurienta por sistema – defeito que conservo -, queixava-me de não ter tido um bolo de anos, não passar em festa o aniversário, não retribuir os convites das minhas poucas amigas, não receber prendas de anos. Cantilena que por certo fez mossa em minha mãe, pessoa que eu julgava olimpicamente insensível a estes pesares. Em vésperas de fazer treze anos, surgiu o anúncio, podes convidar duas ou três amigas e festejar os teus anos. Num rompante, enchi-a de beijos e abraços e começámos a pensar no lanche.
Ora, na minha única e primeira festa de anos, tudo correu mal. Não tínhamos electricidade na aldeia e o calor apertou desde cedo. E o meu bolo de anos desacertou: não cresceu e apresentava um inexplicável sabor a azedo; já o fizera vezes sem conta, volumoso de aspecto e sabor. Com os últimos ovos da capoeira, tentei outro que persistiu no raquitismo. Então, esqueci a idade e abri num desconsolo de imprecações que nem sabia a quem dirigir e, à falta de outro receptor, alvejei sem dó a minha mãe inocente. Mais parecia que um diabo se soltara em mim, à vista de outro que me contrariava. Que é que iam pensar as minhas colegas.
O meu pai, cedo desapareceu e o dia foi ganhando horas de calor e modôrra. Das minhas três convidadas, compareceu uma. Éramos nós duas com o calor e um bolo minguado: a massa encolhida dentro da forma mais parecia uma hóstia de chocolate que um bolo. Não pudemos tomar banho no tanque que gastara a manhã inteira a esfregar e  escorraçar de lismos e outros sargaços, a poder de esfregão de arame, vassouras e pá. E que o meu pai enchera de água fresca com o aviso, só entram lá dentro com os pés bem limpos, não quero o fundo cheio de terra.
Portanto, o meu sonho de vestir o fato de banho de minha prima, esboroou. Cheia de reparos sobre a raridade, levara-mo a casa de véspera, olha bem a cor, não é encarnado, é cereja – e a implantar-me a verdade no fundo dos olhos –. É uma cor linda. E aqui - apontava um ligeiro franzido a meio do peito aramado -, tem um lacinho branco que é uma graça. E um bocadinho de saia e  de perna - e esticava a saia breve sobre o términus em calção.

Não sei a razão, mas o certo é que não vi até hoje coisa mais retro e bonita que aquele fato de banho. Quando o experimentei, o calção sobrava nas minhas pernas de guita e o lacinho branco perdia-se encarquilhado na tábua encovada do peito. Factos a que pouco liguei, achei-me um máximo. Não reparei nesses pormenores senão porque sim, não achei que me desfigurassem, nem assinalei as pilosidades que despontavam a todo o vapor por tudo quanto era sítio. Pelo contrário, ensaiei umas poses ao espelho e encontrei-me divinal. De modos que foi mesmo um grande desgosto quando a minha amiga desceu do automóvel só com um embrulhinho pequeno cheio de laçarotes, avançando, não posso tomar banho. E pôs aquele olhar das garotas que, nas aulas de ginástica, se sentavam todas importantes num banquinho e, irmã, hoje não posso fazer ginástica. Compreendi que me restava mirar-me ao espelho mais duas ou três vezes, antes de entregar o produto. E disse adeus ao banho no tanque, arrancado custosamente a meu pai, e em que eu entrava sensacional. 

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Mistérios de "Fazer Anos"

Vi-a descer do automóvel – vimos todas, que a festa não começou sem a titi -,  pernas a perder de vista, enfiadas em salto agulha. Na rua do monte, os pés rodeavam a largura da regueira nascida por conta da matança dos porcos onde estagnava o sangue misturado na água, coalhadas a acastanhar aqui e ali, um cheiro acre que subia do veio escuro de terra empapada. E os pés temerosos, piso ou não. Lá em cima, o rosto franzido gritava repugnâncias enquanto o agrado das varejeiras esverdeava em volta do nylon esticado das meias, zunindo na aflição dos tornozelos. Beijou a sobrinha num encosto de face que me varou de subtileza, a estranheza das minhas tias alheias à cópia, no hábito  de abraços apertados e beijoquice à solta, então que é isso, estás zangada com a tia. Eu feita basbaque, defendida na âncora da porta, agarrada à aspereza dobrada da rede de pesca que a guardava de insectos. Eu tão perto do salto agulha que lhe sentia a irritação a encrespar à medida da lama nos gorgomilos, que nojice, olha para onde ela me trouxe, eu sou lá destes ambientes.  E depois nós quatro viradas a uma mesa com um bolo branquinho de neve, semeado de pérolas prateadas, a garridice de quatro velinhas floridas a altear expectativas. Reféns do bolo, olhos cativos no gosto só adivinhado, e ela impaciente, seca, esperem. E abriu a mala de mão num clique de finura. A máquina fotográfica - surgida da malinha em nada semelhante aos cestinhos plásticos das tias -, era um estranho objecto que nos tirava o retrato e para que sorríamos um tempão, até ao acender e apagar de uma luzinha. De máquina em punho, a soberba titi, nem um fio de cabelo a escapar-se da banana, contrapunha-se esfíngica ao aconchego buliçoso das minhas tias, os caça-rapazes a encaracolar na face risonha. Assustadas de novidade, logo julgámos que as exigências, ponham-se direitas, olhem para mim, riam, eram ordens cujo incumprimento daria prisão. Foi assim que legámos à posteridade três crianças-robot, hirtas e plastificadas, rodeando a naturalidade risonha da aniversariante.  Nesse dia, aprendi o ritual: acender as velas uma a uma, cantar ternamente a versão mais simples de “parabéns a você”,  bater as palmas no final e receber da aniversariante uma fatia de bolo. Depois, a minha amiga mordeu as velas que a mãe guardou. Perguntei se sabiam bem e ela, sabe a vela, não presta. Eu, por que é que as mordeste; ela, não sei, foi  a mamã que mandou. A mãe sorridente, a embrulhá-las num papelinho colorido, mordeste com força, deixaste as marcas dos dentes de leite, assim é que é - e num remate, a fixar-nos temerária -. Para dar sorte.
 Surpresa das surpresas, o bolo de laranja de minha mãe era melhor que aquele bolo nevado que no interior exibia, contornando a brancura, uma cinta escura de mau sabor. Aflita com a minha fatia, enfiei-a disfarçadamente no bolso do bibe, a amiudá-la em fanicos, polegar-indicador, polegar-indicador. Também as pérolas me desiludiram, não eram de prata, mas de açúcar e apesar de me divertir arrasá-las à dentada –  uma espécie de infracção gustativa –, depressa me fartei de doçura tão supérflua. Aquelas bolinhas diminutas não chegavam aos calcanhares dos torrões de açúcar amarelo que o meu avô, num sorriso de conluio,  furtava para os dois do açucareiro da avó, maravilha de loiça das Caldas com um ratinho matreiro na pega da tampa. Assistia-lhe aos dedos trôpegos a mexer a colher em busca de torrões jeitosos e na gradação certa de dureza - derreterem ao contacto da língua -, enquanto me sorria, dedo sobre o nariz, secretíssimo. Seguia-se o "Abre a boca e fecha os olhos". E eu obediente. Depois abria-os e meu avô  já mastigava divertido, é bom não é? Eu acenava de boca cheia, o açúcar um líquido escuro a invadir-me as entranhas. Prazer. Se minha avó calhava de nos apanhar, sorria para o lado e depois virava-nos cara séria e emitia um resmungo de conveniência, já viram isto, o velho é mais maluco que a gaiata. E nós concêntricos, num riso baixo. Talvez felizes. Mas se ela passava perto, apanhava-lhe o avental e a outra mão avançava a festejá-la tão de manso como nunca vi em alguém. A mão nodosa demorava-se entre a gola da blusa e o pescoço como se pertencesse ao lugar. Minha avó repuxava a roupa sem vontade de partir, ora esta, o velho tá maluco, vai mas é regar o jardim. E ia à sua vida. De certeza contente. Face a este angélico viver, as bolas prateadas de um bolo desenxabido nada podiam. 

Pela tardinha, o regresso feito dínamo, havia de azocrinar a paciência de minha mãe a contar e recontar novidades da festa de anos. Entretanto, ela virava-me o bolso do avesso a catar as migalhas para a palma da mão, olha para este trabalho, agora tenho de te lavar o bibe, tens aí uma nódoa de gordura. 
Não sei como, mas, então, a divisória era clara,  festas de anos não me pertenciam.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Mistérios de "Fazer anos"

O raciocínio infantil, por mais que os adultos tentem penetrá-lo, joeirá-lo agitando a bandeira de  lógica própria, guarda, por amostragem e real explanação, alguma surpresa. Ou será apenas, boicotada a inocência do mundo simples, estranheza de quem cresceu e perdeu a sua “barriga de imprevisto”. Ora, a originalidade inesperada das crianças instiga afectos, move a infância recôndita de cada homem, faz nascer a paciência terna. É em demanda desse espírito que rememoramos a nossa originária organização de mundo e sorrimos beatíficos aos elos simples que construímos em espontaneidade tão vincada que mais nos parece havê-los importado, feitos e acabados, do ventre materno.  Para as crianças, o mundo é como o conhecem e tem a sua explicação. Os porquês que as engordam e consomem não pretendem mudar o conhecido, mas entender corpos estranhos que invadiram a placenta mundana.
Os homens preocupam-se com o tempo porque sabem da morte; zelam pelo presente pensando no futuro. Mas as crianças são como Deus: eterno presente. A seus olhos, os velhos foram sempre velhos; pais, primos, tios e demais gente são imutáveis. Verdadeiramente, só elas crescem e fazem anos. Os outros, cada um em sua idade, são adereço, compõem–lhe o quadro. Talvez hoje as crianças sejam diferentes e saibam, por experiência, que todas as pessoas têm um dia de aniversário. Mas, aceite o facto, continuamos comparsas inalteráveis do seu mundo seguro. Como as árvores, as casas, os animais domésticos. Cenário activo, é o que somos. São como Deus, elas. Só nelas, os anos não nos alteram. Amam em nós o invisível.
Também habitei este mundo de figurantes em que só eu fazia anos; e só um de cada vez. Apetecia-me ter muitos anos, apreciava-me deveras com números que julgava grandes, como quarenta e sete, e me dariam outra autoridade se me perguntassem, quantos anos tens. Mas ninguém me deixava ter quarenta e sete anos. Riam-se. Arreliava-me darem-me uns anos pequenos e de contar pelos dedos, a minha mãe a esticar uns e encolher outros, a ensinar-me a habilidade: vá, com este dedo seguras o outro, e punha-me o polegar em gancho sobre o indicador.  
A princípio, não me apercebi de haver um dia de fazer anos. De repente, sem eu entender como, diziam-me que era mais velha. Tinha mais um ano. Intrigava-me sobremaneira que os meus pais tivessem tanta certeza, agora tens três; agora tens quatro; agora tens cinco e é uma mão inteira de dedos. Como é que eles sabiam?! Para mim, não havia mal em ter quatro muito tempo, eu gostava do quatro que se escrevia uma cadeira ao contrário. Não percebia para que servia uma cadeira ao contrário, mas gostava dele. Perguntava a minha mãe, e não podemos pôr a cadeira direita? E ela, com um sorriso dentro da negativa, desimaginava-me de números que fossem cadeiras em posição de sentar. Eu, sentido estético muito virado à utilidade, mas ficava mais bonito, alguém podia sentar-se...e deitava-me a imaginar e a fazer uns gatafunhos com o quatro na posição que era certa para mim e onde punha uma travessa a ligar as pernas da cadeira, porque  as travessas faziam-me jeito aos pés. Haver um número que é uma cadeira de pernas para o ar ainda hoje me entusiasma. Dada a qualidade dos meus entusiasmos, é claro que a matemática a sério me continua marginal.
Há uma primeira vez para tudo. Um dia, fui convidada para os anos de uma amiga e esclareci vários mistérios sobre aniversários. E ganhei outros. Que na infância é assim mesmo, troca por troca. O primeiro, foi haver festas de anos. Em mim, os anos aumentavam um a um, sem atropelos e sem festa. O segundo, foi haver gente que tinha tias com máquinas fotográficas. As minhas tias só tinham romances da Corín Tellado e uns cestinhos cor de rosa com um ramito de flores bem a meio, com que eu me pavoneava quase a arrastá-los mal as apanhava distraídas. Elas sôfregas, numa corrida de mão em riste, dá cá isso à tia, não se brinca com a mala da tia. Mas a tia da Nide, que só mais tarde soube chamar-se Leonilde, era uma senhora fina: pintava os lábios de vermelho vivo, usava fato de saia justa, e calçava sapatos de salto alto. 

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Fitas à Vista do Écran

Quando vou ao cinema, as fitas “a estrear brevemente” aguçam-me a curiosidade. Observo os excertos de filme considerando que poderei, eventualmente, vir a assistir um mais veemente, que me acerte. Acresce que vê-los me orienta acerca da cinefilia, preferências do público, preocupações de realizadores, actores e actrizes do momento. Há apresentações que me suscitam verdadeira pena, antevendo não poder ver a película. E outras cuja mediocridade me embaraça. Não que goste apenas de filmes profundos. Os filmes, como os livros, têm dias e horas. São matéria que merece e deve respeito. Porém, em ambos os casos há exemplares irrisórios, perda de tempo do leitor e do amante de cinema. Mas há filmes leves e de qualidade, bons para ver à sexta à noite e sempre que uma pessoa entristece ou derruba de cansaço e lhe apetece vegetar pela imagem.
Neste ínterim do que vem a seguir, calhou-me ver a apresentação de “Viver depois de ti”. Título romântico para tema tétrico: um muito apresentável e jovem tetraplégico que quer morrer. Bom, mas tem por assistente na doença uma garota extraordinária de bonita, portadora de boa disposição a todo o pano e que talvez lhe dê a volta (interessa manter acesa a curiosidade e levar o público às salas). Julguei o filme interessante por fugir à realidade da deficiência. Quiçá seja uma historinha mesmo romântica e meio lamecha, que, ainda que termine em morte, é um hino à vida – a garota é esfusiante. Decidida a vê-lo, fui procurar a data de estreia (só dia 11, que pena). E encontro na net que o filme, mesmo antes de estrear, já está envolto em polémica. Ora bolas. E porquê?! Ora, por um sem número de motivos: o actor é saudável e não é convincente, o tratamento do tema é demasiado leve, a ideia de querer morrer é um mau exemplo para outros tetraplégicos e doentes em geral…argumenta-se que os tetraplégicos são um exemplo de esforço e deviam ser mais apoiados e darem-lhes condições de saúde mais amplas…e um vendaval de razões deste e daquele, uns que são tetraplégicos e outros só simpatizantes.
Os argumentos têm peso e valem. Mas, ó gente, isto é um filme. Quem é que disse que os filmes têm de ser reais?! Contudo, há filmes para todos os gostos. Mais e menos fiéis à realidade. E, sobre a decisão de morte dos tetraplégicos, há visões bem diversas; é só procurar. Ora esta, deixem-me ver o filme tal como está, se faz favor, foi assim mesmo que ele me agradou. Sem o peso de “Mar adentro”. E de outros. Com gente que consegue ser alegre e sonhar mesmo sem se mexer. É ficção. Pois muito bem. Há quem ande farto de realidade, venha a ficção. Não é moralizante? Paciência. Querem moral a sério, estudem o catecismo, ainda que ele tenha mais religião que outra coisa, já aviso.
No entanto, houve algo que li e ainda remoo. Se todos nós, saudáveis medianos, em algum momento - em vários - já desejámos  morrer, ou pelo menos não nos importávamos, por que diabo um tetraplégico não o pode desejar? Tem por acaso uma vida assim tão boa?! Acho mesmo a coisa mais natural dado o estado em que se encontra. Se existe quem o não deseje, óptimo para ele. Mas quem somos nós para obrigar alguém a manter um padecimento de tal natureza?!
Uma das coisas que me irrita nos americanos é esta ridícula veia moralizante que esquece as guerras que inventam e começam por seu único interesse ou porque lhes dá na veneta. Decidem e destroem países, milhões de vidas que depois abandonam em condições calamitosas e insustentáveis. E desatam a criticar um filme. Armam em mete nojo a negar o direito que cada um tem a decidir sobre a sua vida quando ela deixa de o ser. Há cada uma.

Bom. Este bruaá também pode ser uma propaganda bem montada. Tudo é possível.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Fitas à Vista do Écran

Bom, mas eu gatafunhava sobre filmes.  E o meu amor por eles. Assim, sem mais nem menos. Veio-me da colecção cinema naquelas poucas imagens que tinha cada livro e que eu nem desconfiava serem fotos de filme. As mulheres eram lindas, nunca tinha visto nada assim e lembro-me de perguntar a minha mãe se eram bonecas e ela que não. Eu dubitativa, e mexem..., a minha mãe, sorriso a despontar, são pessoas como nós, comem, dormem, falam, andam. E eu agastada da má sorte de não ter nascido nenhuma na aldeia, são de Lisboa? E minha mãe, não filha, são todas estrangeiras. A beleza não queria nada connosco. Não era a minha aldeia que estava errada, era Portugal inteiro cheio de mulheres de xaile traçado e dentes podres, aos gritos pelos filhos, a levar pancada dos maridos quando calhava e chorando a má sorte debruçadas no tanque de roupa, mãos raivosas a enxotá-la juntamente com sabão e sujidade, rosetas de sangue pisado aos gritos na palidez do rosto. À interrogação muda das outras, elas de olhos no chão, a fecharem decotes e desarregaçarem mangas, não foi nada, isto passa. E quando se debruçavam para corar um lençol, um ai a sumir-se na garganta, a blusa escapava da saia e logo a pele num desmentido, olhem p'ra isto. As outras arregalavam e desviavam a vista compadecidas, fingindo a normalidade que não havia, a gente estende-te isso que está bom sol, deixa, vai jogar-te ao resto. E rentes à terra, entredentes, murmuravam para o verde do chão, fingindo desenrugar uma prega, cabrão, olha o que ele lhe fez com as botas cardadas, a rapariga nem se pode mexer. Aquilo não é um homem, é uma besta, merecia era um tiro nos cornos.
E tudo isto acontecia enquanto desancavam nódoas a bater a roupa na pedra a e a esfregá-la, milimétricas, peça a peça.  Mãos que iam e vinham do alguidar para o tanque, do tanque para o alguidar até que este vazio; tanques de água que enchiam a pulso; um caldeiro monocórdico que descia aos caídos a batucar nos tijolos da parede, impactava na água em gorgolejos atrevidos e afundava inerte para subir em braçadas, opado e cambaleante, pingos fundos a cantarem no tambor de água escura. Depois, os dois braços içavam-no, uma mão na asa outra no fundo, e despejavam com alma. Eu, pescoço esticado,  ansiosa das gotículas a respingar-me  frescura. A brandura de minha mãe, chega-te para lá que te molhas toda. Punha o balde no bordo do tanque e sacudia as mãos a juntar os dedos e abri-los frente ao meu rosto. Negava-se sorrindo e o meu amor dilatava. Estendia os braços e abraçava-lhe bocados da saia, gosto tanto da mãe. Esponja quase invisível, eu absorvia por ali, entretida a brincar no tanquezinho que fora bebedouro de burros e vacas. Talvez por assistir sem freio a esse mundo feminino, na minha cabeça as maravilhosas mulheres dos filmes passaram como eles, depressa.  Que as de xaile traçado e nódoas negras são eternas.
E veio isto a propósito de um auditório com bons filmes onde elas não páram e só entram para ver o Titanic. E entram como são: raras. Já não usam xaile nem terão dentes podres. Só as nódoas negras. De tanto feitio, as nódoas negras.
Entretanto, fico por aqui que me desapeteceu falar de filmes.

Amanhã é que há cinema. Sorry, atraso da bobine.