domingo, 11 de outubro de 2015

Um Agosto em Itália

Noites de Ravena

Se lhe franquearmos a entrada, a noite feiticeira exerce-se sobre nós, em mutação de olhos e mente. Pondero se os feitiços nocturnos emergem por mera falta de luz ou se a noite é antes a liberdade possível, tempo de pausa no quotidiano que transborda horas esquartejadas até ao tutano. Tempo de dormir sonhando, haja ou não lembrança; e de sonho sem dormir, o pensamento a espairecer nos longes irreais. Este é o tempo. O timing identitário e a uso de todos os homens, esboço matricial da imagem de cada um. Não é apenas regeneração, o necessário repouso celular do corpo; nem a semi-morte que entrava todos os sistemas de um ser vivo. É também a laboração emergente de um campo de irresponsabilidade, malha aberta onde anzolam os compromissos diurnos, tempo de o pensamento mais sisudo desvincar. Ora, se a eclosão do desejo nas almas violentas desperta maus instintos, ideias torpes e o desassossego do mal em sua força de gume, a par flutua o sonho que reúne e congrega homens empenhados em alijar invejas, raivas, vaidades. Convenço-me que, sem a telúrica dominação desta força, a espécie já teria estourado. Mas é melhor voltar às noites italianas, meu intento primeiro e de que me desvio usando filosofia de bolso que me ocorre a descaso. Sorry.
A noite é em qualquer lugar o mistério escuro que arrebata e transfigura. Em Itália apenas conheci as noites de Ravena. Duas. Bom, foi pouco. Mas valeu.
Nas duas vezes em que nos armámos em “Gandas malucos” oscilámos entre a Piazza del Popolo e a Piazza San Francesco porque aí corriam ventos culturais que nos pareceram de feição. Garanto, não eram as mesmas praças. Todo o espaço me parecia outro, vivaço e desinibido, um certo ar risonho. Ambas tinham um quê de vagar entornado nos passeantes. E, nas esplanadas, turistas colavam às cadeiras, sorvendo o espírito de alegre e descomprometida vizinhança de pernas e braços. Havia um ror de ciclistas que cirandava por todo o lado – em Ravena bicicletam novos, velhos e de meia idade; turistas e ravenenses. As bicicletas chegavam e partiam sem ruído, pedais eufóricos a rebrilhar (desconfio que alguns velocípedes traziam um grãozinho na asa, tal o contentamento que os percorria). Bicicletas airosas de serem novas. Bicicletas airosas de serem velhas. Airosas sempre e a eclipsar os condutores. E depois ficámos a tentar ouvir o jazz – que nem era mau – e em seguida fomos espreitar San Francesco e por lá nos quedámos. Era uma conferência ao ar livre, “La Grammatica del cuore” centenas de pessoas a assistir, umas sentadas e outras tantas de pé. Ouvimos um médico e um poeta. E o primeiro batia o segundo aos pontos. Teria uns cinquenta anos e passaria por actor. Porém, de conversa,  pertencia ao mundo das letras tal o à vontade com que dissertava sobre autores (italianos e não) e citava – de cor – excertos e poemas. Pareceu-nos admirável na medida em que as citações apareciam em conversa com os parceiros de mesa mercê de oportuna argúcia. E por ali estivemos de encanto, até ao fim. Posto isto, voltámos ao jazz e gastámos um bocadinho a pedir desculpa que os rapazes sabiam o que faziam. Depois, rumámos ao ninho, gratos a deuses e homens.        

Na segunda noite, confirmámos a qualidade dos espectáculos quando, nas mesmas praças, ouvimos – San Francesco -  uma banda a ressuscitar com alma grandes êxitos dos anos sessenta. Dei por mim, leque afobado  cantarolando entre a multidão à cunha, sentada por todo o sítio, um muro de pessoas lá atrás, em pé e nas bicicletas.  As pedras dos muros em volta da praça (onde é que elas estariam de dia) a escaldar pernas, incomodidades de suor abrindo poros insuspeitos, uma mão que corre a perder-se no decote e a certificação molhada dos dedos,  não era um bicharoco. E fomos terminar o sarau na Piazza del Popolo com um trio feminino: piano, violino e voz. As garotas eram lindas e havia arte na música. Mas a cantora, muito diva e italianíssima de figura, não era dona de voz alada. Que pena!

domingo, 4 de outubro de 2015

Indelével

Bem sei Mãe, a minha estúpida timidez nem sequer criou coragem para estender por ti o braço na paragem do autocarro quando já mal te arrastavas. Que eu corria na tua frente como pedias e chegava primeiro; mas não fazia o sinal e o autocarro passava, o motorista intrigado a olhar-me e eu sem um aceno. Palavra que ainda hoje não entendo o meu braço de chumbo ou como o meu amor era vencido, enredado na estupidez envergonhada.
 Deixei-nos para depois e a vida cerceou a concretização das promessas. Afinal, nunca te dei o braço nem saí contigo em viagem; não te comprei um doce, um agrado, um acaso feliz (eram de aquisição os teus acasos) onde os teus olhos se prendessem em assomos de amor grato. Não sei o que poderia acordar a tua atenção de passeio. Desconheço os teus sonhos mesmo teus, os anseios de raiz que calaste, quem sabe, até perante ti mesma. Ignoro o que pensarias da filosofia e dos filósofos, das teorias difíceis em que se enredaram para explicar um mundo que para ti nunca houve.
Julgo que não sou a filha que criaste, às vezes segui com os pássaros e o vôo alterou-me. Mas, qualquer que seja a plumagem, acredito no teu amor: repara, estou de pés juntos e olhos fechados.
Se agora viesses, Mãe, conhecias-me? Diz que me sabias até debaixo de água, diz que mudar a penugem não me roubou de ti. Diz-me como o Zeca na canção que era tão do teu gosto, “e embora seja ladrão, aquele que tem a mãe, lá tem no meio da luta ternos afagos de alguém”. Não que algum dia tenha abrigado a dúvida. Não. Mas aos humanos faz falta ouvir o que se sabe. É a necessidade dos sublinhados. Do bold. É intrínseco, somos assim mesmo. Para o bem. O mal. E além dele.
Bem sei, o meu egoísmo cerceou-te. Desconheço as tuas cores preferidas, sei que não usavas vermelhos, laranjas, amarelos e as cores suaves te atraíam; que detestavas o negro. Mas não sei, por exemplo, como seria a nossa casa se o teu gosto, ao menos por uma vez, tivesse contado. Como teria sido se…
Mas não se. E por isso somos quem somos. Desculpa não ter vislumbrado que te apagavas sem um som, o teu amor por nós a fazer-nos natural seres apenas “A Mãe”. Desculpa. Fui incapaz de te pôr fora do papel, não enxerguei a mulher senão em brevidades de relâmpago.

Porém, quanto desmedes e transbordas do pouco em que te encerrei.