quarta-feira, 29 de maio de 2013

PAI

Aproxima-se a data em que o meu pai faz oitenta anos. O meu pai. Que enviuvou ainda não tinha trinta e nove. Que, apesar dos meus insistentes e juvenis case-se, pai, cristalizou num estado a que não posso chamar civil. Porque, se o pai de Mia Couto vive em Poesia, o meu vive em viuvez. E não vejo por que razão há-de a qualidade do estado diferir. Cada um deles assume o completo de si dentro de uma condição que não escolheu, mas lhe coube. O meu pai, contrariando mesmo um lado da sua natureza. O pai de Mia nasceu assim, poeta inteiro; ao meu a vida deu-lhe a condição, retirando-lhe a única mulher que teve e por dezoito anos amou mal, o exercício dos sentimentos em permanente conflito.  No pai de Mia, provavelmente, os sentimentos fluíam, eram navegáveis, Mia Couto é de uma ternura que foi bebida em alguém. Ao meu, embargavam, que nunca antes os sentira. O que pretendo dizer é que viver em viuvez me parece mais áspero que viver em Poesia. E menos bonito. O estado de viuvez planta-nos logo homens de bigodes pesarosos, a pendurar tétricos sobre a boca; diria mesmo que a nublá-la, não beijas, desexistes. Por isso, viúvo é estado transitório. Os viúvos não querem enviuvar por muito tempo, ainda que viúvos, dizem-se homens sozinhos. Mas o meu pai encarnou a viuvez. Com toda a força. Rijamente. Tão jovem!
Hoje, foi a primeira vez que pensei no meu pai como homem viúvo. Levei quarenta e um anos a encasquetar esta evidência. Vá lá, vá lá. E, se amanhã perguntar aos meus irmãos, já pensaram que o pai é viúvo? Três pares de olhos miram-me em estranheza, a achar que piorei. Mas depois, pensando melhor, concluem, pois é. E “pois é”, não significa apenas assentimento. “Pois é” tem dentro o redondo da admiração e a alegria sub-reptícia de uma descoberta.  As palavras nunca querem dizer apenas o que querem dizer; sobretudo se as enchemos de outros ingredientes, como é o caso. Por isso, não pode espantar-nos que alguém responda “sim” e quem perguntou inquira, “o que queres dizer com isso?”. Escrevendo isto, parece até que o mundo palavroso nos desentende uns dos outros. E não. Os meus irmãos e eu sabemos exactamente o que significa “pois é”. E isto é um dos bonitos da mediação pela palavra em quem se sabe com o coração.
Mas voltemos à viuvez que no meu pai nunca foi bigoduda nem triste. Ele vestiu-a e, com naturalidade, fez-se a ela.  Fez-lhe peito, afeiçoou-a de tal modo que deixou de notar-se. Não se diz dele que é viúvo, mas que é o seu nome.
 E, no entanto, meu querido pai, atravessaste sozinho, que não te conheço amigos. Sem uma queixa. Connosco a tiracolo.
E que hoje nos tenhamos uns aos outros sem nuvens é uma graça. Que em parte te devemos.

OBRIGADA

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Palermices


Quando crianças, somos crédulos superlativos. Tudo que nos contem, com pouca ou muita convicção, passa como água. Porém, com o correr dos anos, tornamo-nos menos confiantes: existe aquilo em que não acreditamos, mas quantas vezes gostaríamos de; o que se nos atravessa na garganta a travar-nos o respirar da vida e que decidimos engolir ou deitar fora; e o que aceitamos sem contestar. Em cada homem, a proporção destes três factores é arbitrária, no sentido de puramente pessoal, e decorre da convergência entre a natural apetência do indivíduo e um esforço da sua vontade.
A minha credulidade infantil raiava o absurdo. Basta lembrar as muitas vezes que envergonhei publicamente a minha mãe por me deitar a discorrer sobre assuntos dos mais velhos a que ela, perigosamente, respondia em casa com mentiras simples em que eu acreditava piamente. Talvez por terem rodas e se moverem, ou por qualquer outra obtusa razão, os comboios e os autocarros levavam-me o pensamento para esses temas. É que bastava pôr lá os pés. Ora, o pensamento infantil é de alto som, portanto, imagino que o embaraço de minha mãe fosse proporcional à diversão dos vizinhos próximos, enquanto eu confrontava a sua explicação com a realidade, ou o pouco que dela sabia.
Agora que os anos passaram, poderia afirmar que alguma coisa dessa crença inaudita nos outros me atravessa a vida a contragosto. No entanto, o que se me entranhou não pode chamar-se apenas confiança nos outros. É qualquer coisa mais infantil. E que me vem, quem sabe, daquela mãe envergonhada que não respondia às minhas invectivas públicas, de inadvertido descaro. Habituei o espírito a fazer as suas respostas. Sumariamente, é isto que não consigo perder.
Pode alguém acrescentar ser desejável essa construção do espírito. Seria desejável. Seria. Se o meu espírito tivesse crescido. Mas o palerma ainda hoje copia as respostas simples e asnientas da minha mãe. Resultado: sou uma mulher madura com a alma de trancinhas e laços na ponta. Convenhamos: fica mal.
Por exemplo, fui dar um passeio com uma colega. Quando passeio, se me cabe dirigi-lo, não sei porquê, mesmo que vá ao acaso, acabo sempre em cima de uma ponte a olhar uma linha de comboio. E também hoje. Enquanto eu hipnotizava no paralelismo dos carris, a minha colega tirava fotos. Eis senão quando surge um comboio e apita. A colega contente, apitou para nós. E eu convicta, como se tivesse tirado o curso de maquinista e soubesse tudo sobre comboios, não, não, os comboios apitam sempre que passam numa ponte. Ela suspeitosa, a olhar-me nos olhos, em inflexão prolongada, ai é?! - e de imediato -  Olha, além à frente há outra ponte, vamos ver se apita… Pusemo-nos à escuta. E só o marulhar profundo do vento nos pinheiros em seu manso jeito de búzio, um grilito histérico aos nossos pés e o som do comboio a esvanecer para lá da ponte, e já não ele mesmo, só uma tira cinzenta a rastejar na lonjura. Ela triunfante,  um  assomo de vaidade caseira, era para nós, vês, vês... E eu ainda sem atingir, a olhar o amarelo perplexo do  ramo de flores, mas quando vou de bicicleta até à outra ponte, o comboio apita sempre…

domingo, 5 de maio de 2013

Mães e Filhas


Hoje é Dia da Mãe e, supostamente crescida, sou isso também. Quotidiana, uso perto a foto em que uma ternura inomeada me abraça. Se a olho, – tanta vez a olho – sempre as palavras de Eugénio a corporizar desvelos de amor “como se tivesse medo que tropeçasses numa gota de água”; e agradeço a coincidência do sentir com o ser, naquele gesto fixado por feliz objetiva. Próximo, em fraterna amizade, um poema escrito na primária, que me é presença embevecida. Anjos a cuidar-me a existência. Que leio e contemplo se azedo com a vida, se ela me surpreende em negativos desinteressantes, se indeciso ou me engano a escolher, o mundo em escuridão no pleno do dia.
Contudo, mais me lembro hoje de ser filha. O coração dispõe-te mansamente ao alcance da saudade. Dentro dela. Não já a saudade ingente dos primeiros anos. Não aquela quase impossibilidade de vida. Não a mordaça de tristeza que desatava as lágrimas. O Tempo retirou espinhos; primeiro os mais agudos e depois, pouco a pouco, limpou a haste em que vicejas. E hoje, pego-te em confiança. Sem sangue. E retomo o hábito antigo de escrever-te. Não, mãe. Já não escondo as cartas na tua mala. A tua mala. Com o teu cheiro meio doce, os teus papéis, a marca dos teus dedos, pássaros aflitos a segurá-la. Que, imagino, estará ainda guardada no guarda-vestidos vazio do tudo que era teu. Onde continuam, fechadas, as minhas cartas. O pai conservou anos o teu vestido das cornucópias, eu a abrir a porta e mergulhar os dedos no macio. E imagino que lhe tenha sido companhia. Mas um dia abri o guarda-vestidos e só a mala. E não se descreve o desânimo incrédulo da minha mão no puxador, os dedos todos, e agora? Corri a perguntar à tia e ela, o teu pai não o queria, deu-mo, mas não fui capaz de o vestir. Dei-o a uma mulher que não era daqui, não aguento ver alguém com ele. Rodopiou e  foi à sua vida. Fiquei em silêncio. Ofendida. Sabia-me a traição e desamor que nem a pergunta, queres?
Tínhamos comprado o tecido juntas, ido as duas à primeira prova. Uma costureira jovem e solteira agachada a marcar-te a bainha com uma almofada de alfinetes no braço, um relógio que em vez de ponteiros um feixe de lanças enchapeladas, todas muito finas e senhoras do seu ângulo, os alfinetes a empertigar, olá como estão. Entretanto, as unhas ovaladas e compridas, gotas de sangue a rodar-te as pernas, num sorriso agradado, esta senhora tem um espírito tão jovem que me deixa admirada, é tão diferente das outras senhoras. E eu a inchar de orgulho. Mais tarde, na vila, escolhi e comprei os botões e fui entregá-los na costureira. E um dia fui de bicicleta buscar-te o vestido e pagar o feitio. E ficaste linda dentro dele.
Mas as gentes pensam apagar as pessoas fazendo desaparecer tudo delas. Queimam. Dão. Vendem.
Não ficou nada, Mãe. Só tu. Mesmo.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Primeiro de Maio


Em 1975 tive o privilégio de gozar o meu Primeiro de Maio, Dia do Trabalhador, sabendo o concreto do seu significado. Houvera já um, imediatamente a seguir ao Dia Um da Nossa Liberdade, o  25 de Abril de 1974. Nesse tempo, interna numa instituição religiosa – não, não era um colégio –, pouco soube do que se passou nas ruas. A instituição funcionava num antigo convento, paredes com mais de meio metro de espessura que o ruído não atravessava, janelas muito altas e com grades. E a vida lá dentro era desligada de exterioridades políticas, sociais ou de outra natureza. Suponho que a origem do edifício e as ressonâncias do desprendido de mundo a que se votavam as monjas de outrora, inspirassem o nosso lidar intramuros. Então, eu frequentava o Magistério Primário. Mas, ao passar o descomunal pesadíssimo da porta – se, de serviço à portaria, custava-me empurrá-la -, enquanto atravessava a largueza da portaria, o meu eu atrofiava em frio e silêncio. E breve fenecia. No primeiro claustro, já eu replantada, o relógio certo com o novo meridiano. Outra. Ali, existiam “as meninas”, a que pertencia; e “as irmãs”, uma delas minha colega na turma e meu algoz em casa. Não se pense que era uma sofredora. Não. Desapercebida daquela espécie de inveja que me votava, convivemos normalmente e só há alguns anos soube das suas infundadas represálias.
Regra maestra da instituição: As meninas obedeciam; as irmãs ordenavam. E todas as horas eram cheias de tarefas, o ócio grego banido. A minha memória desse Primeiro de Maio é uma foto.
 As meninas só viam TV às tardes de fim-de-semana; ainda assim, se nos filmes acontecia um beijo, logo a irmã directora se apressava a levantar, atravessada na imagem, as garotas todas, oh!!! Pelo que, deixei de ir à sala da televisão. Como boa trabalhadora, terei passado esse provável dia em estudo e preparação do estágio.
Ora, no dia seguinte, fui à papelaria a compras e fiquei uns dez minutos embasbacada frente à montra lateral, numa foto do melhor fotógrafo da cidade. Havia uma profusão delas. Cirandei os olhos, mas aquela, em tamanho natural, era um extraordinário retrato a preto e branco. Representava um soldado com a farda de honra, completamente descomposto pela bebedeira. Estava todo entornado no papel, a arma de lado, também torta. Um cravo, enfiado no cano da arma, baloiçava na haste partida, cabeça para baixo,  súplica vermelha, quase afónica, tirem-me daqui que o sangue me sobe à cabeça. O rosto do soldado, imune a pedidos de cravos, fitava-nos desconjuntado, expressão de boçalidade etílica, a camisa fora das calças, botas sujas, um atacador a arrastar. Enchia a montra. Fiquei ali. A olhá-lo. Coração apertado. Em espanto e pena. A cogitar se ele saberia que o momento tinha sido fixado por uma objectiva e se encontrava exposto ao juízo da cidade. Intimamente, a avaliar se teria o fotógrafo o direito de fazer o que fez. Depois, um casal que parou também a olhar, viu-a de outro ângulo, o da liberdade de expressão, do aligeirar das normas, “se fosse antes do dia 25 de Abril este fulano já estava preso de certeza, ou nem teria tal atitude”. A foto tinha a data de 1 de Maio de 1974. Admito, a minha alma de clausura ficou indecisa sobre os efeitos da liberdade.
                Mas, em 75 eu gozava já de um estatuto diferente. Tacteava uma amizade que até hoje conservo, ainda que não com o mesmo ardor e intimidade, e com ela percorria ruas e praças. Na cidade, que se espreguiçava ao sol, todo o comércio encerrado. E as pessoas enchiam as ruas, a transbordar o calor que tinham dentro. Cumprimentavam-se. Desconhecidos, davam-se pequenos nadas. Em todas as praças, as canções, ditas “de intervenção”, sobrevoavam conversas de grupo e esgueiravam-se por ruas estreitas a entrar nas casas de janelas abertas e mesas postas para quem.
Muitos jovens, sentados em cacho nas escadas, rescendiam alegria e liberdade. Eles, barba e guitarra; elas, saias ciganas e longos cabelos. Todos com ar marítimo. Como se fossem búzios, conchas, cavalos-marinhos deixados em montículo na areia. Passeei a cidade inteira contente do ambiente, a invejar os rapazes e raparigas que nos degraus das igrejas estavam à conversa, como se mais nada houvera; pensei no que lhes daria essa aura descontraída de serem si mesmos e no dia livre que vivíamos todos. Ou se só a meus olhos eram assim. E ainda, se eu própria teria em quem passava o mesmo jeito de regato a ser tempo apaziguado. E nunca soube. Desconhecemos quem os outros vêem,  não sabemos quem parecemos. Com algum esforço, saberemos um pouco de quem somos. Tenho a certeza que, se me encontrasse na rua, desconhecia-me.
                E hoje, o Primeiro de Maio é nada do que foi. Que é triste o meu povo e tristes são as ruas do nosso desvelo. Desistimos do coração de Abril, deixámos talvez de treiná-lo. E está exangue. Que vândalos vilipendiaram Abril? Em que corpo de mentira ajustámos as dobras da verdade e a amarrámos?!
É urgente re-habitar Abril.