terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Princípios fora do Verbo

A senhora Natividade levantava-se ainda a noite colava ao vulto das coisas, insinuada por dentro de arbustos e arvoredo, a cravejá-los de susto. Nessas horas roubadas ao sono, cirandava pela cozinha numa azáfama de lumes, pequenos-almoços de faca e garfo e lancheiras do dia todo. Ali se cruzavam cheiros e, se alguém  batesse, ficaria com a ideia de um restaurante a girar na sua órbita. Mas ninguém batia tão cedo e Natividade desencardia a manhã ao ritmo do corpo, puxava-a de dentro da noite até a claridade ser tanta que não houvesse volta atrás.
Talvez que por vezes o marido se demorasse a olhá-la em combinação admirando-lhe os redondos de ser mulher. Talvez uma rendinha singela no decote sobre a brancura da pele virgem de sol. Mas custava pensá-la feminina, coquete. Natividade nascera composta e generala, o avental escuro sobre o pardacento da saia comprida, cabelo esticado no carrapito que dois ganchos de tartaruga repuxavam. Imaginá-la remelosa ou despenteada desfazia-lhe o rigor da figura acutângula, e a voz de gritar sentido não desmaiava ternuras por filhos e netos. E menos se desfaria por outras condições.
Quando batiam as nove e a escola começava, Natividade já não tinha ninguém em casa, as camas estavam feitas e a loiça lavada, os animais tratados e o grão ou o feijão do almoço da cantina já fervia no caldeirão. A professora vinha receosa do cheiro a fumo, estendia as mãos ao calor e deixava-se ficar quieta, a distância do crepitar. Entretanto, uma Natividade afogueada e de braços ao léu até ao cotovelo, reinava: mexia o caldo e acrescentava-o a entornar água fervente de uma panela auxiliar; de seguida, rodava em volta do fogo a alimentá-lo daqui e dali e a pô-lo por igual. Por vezes, a professora deitava para o caldeiro as suas desditas de mulher de família aperreada e Natividade mexia tudo junto, um braço sobre os olhos a proteger-se do quente que lhe humedecia o rosto vermelho, a colher de pau numa fona. Nesses dias,  as crianças diziam que o almoço sabia melhor. Ela olhava a professora miúda nos saltos altos e pensava que o desgosto fervera e apurara sobre o brasido. A professora em voz baixa, ainda bem que conversámos Natividade, estou mais aliviada; e ela para si, mas eu nem abri a boca. Natividade desconhecia o prazer de ser escutada, não se dava conta do bem que fazia à professora. Mas a mestra saia aliviada. Possuída de alma nova, desaparecia no interior da escola e  enchia o quadro de gatafunhos que Natividade não entendia. E as horas fugiam enquanto os gaiatos aprendiam a ler, escrever e contar e ela labutava no almoço.
Mas, quando o caldeiro ronronava em lume mortiço, a refeição a ganhar sabor em demoras de brasas a esmorecer, Natividade permitia-se um enlevo antes do pôr das mesas. Pousava a colher, ajeitava o braseiro sob a panela e saía a visitar as suas flores. Dava-lhe os bons dias, media o crescimento e os rebentos novos, verificava eficácias na rega da véspera, endireitava um tronco que arrumara a um brinco de princesa. Nessa hora, os olhos deixavam cair a lixa e eram mel, ternuras debruçadas e explosivas até para os malmequeres de palha e a sua inteira aspereza de pétalas. E quem passasse na estrada e se atardasse invisível, que ela não apreciava que lhe palpassem as fraquezas, assistia-lhe a doçura das mãos a tactear como cegas retintas a corola das bocas de lobo, a maciez dos veludos, ou o nácar das rosas de santa Teresinha.
Passou pela figueira carregada e atentou nalguns figos, um pingo de mel a coalhar dependurado. Pensou que, finalmente, estavam no ponto, bons para a apanha. Parou no muro verde de arbustos e estava passando a mão na verdura a desculpar-se pela garotada que lhe chupava os rapazinhos, quando uma mulher gorda, saia muito  ampla e redonda, parou a olhá-la, uma garotita enfezada pela mão, lembra-se de mim? – e sem transição – Moro na Caseta Roubada – apontando a miúda – esta é a minha mais nova, chama-se Luisilda. E uns olhinhos vivaços e azuis, uma boquinha de riso aberto, o nariz ranhoso. Natividade olhou-a e, não queres uns figos? Os olhitos azuis reanimados. A mãe às cotoveladas, vai lá buscar, vá… E Natividade a colher os primeiros frutos, mão estendida à fome, anda cá, come aqui sentadinha enquanto eu converso com a tua mãe. E enquanto a garota os devorava, ela fiel ao seu ser natural, um olho na velocidade da mastigação, pois é…pois é…

À tardinha, na hora da rega, o ti João admirado, então os figos? E ela num desprendimento, passou aí aquela da Caseta Roubada com a miúda cheia de fome e olha, dei-lhos. Aquilo é uma desgraça pegada. Mas por que é que estas mulheres têm filhos?! Mal se segurava nas pernas, aquele corno, Deus me perdoe. Levou a miúda à vila e nem assim. A desgraçada só cheirava a aguardente e não dizia coisa com coisa. Malvado vinho.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Fenómenos

Ainda hoje, se leio uma notícia do Entroncamento, vem-me a nostalgia dos fenómenos que dantes se narravam, ocorrências inéditas a que eu dava a competente imagem. O Entroncamento acompanhou-me a meninice, cresceu-me no imaginário e fê-lo crescer. As minhas tia-avós e avós propriamente ditas contribuíam para o aparato acrescentando sem cessar a lista, num diz-que-diz em que eu cria piamente, duvidando apenas do espaço para tanta desnatura e construindo mentalmente um lugar de conto horrível onde a cada esquina espreitava um portento único e disforme. Por muito insignificante que a localidade seja, a meus olhos há-de ter uma beleza toda outra da desproporção que criei baseada no linguajar das velhas que me fizeram a infância.
Pareceria fatal, mas nunca sonhei com o Entroncamento. Ali nasciam pessoas com duas cabeças; homens com quatro braços e que para mim nunca tinham sido crianças; gigantes que não cabiam nas casas e era uma maçada para a família acomodá-los, a subir paredes e telhado à medida que iam crescendo; maçãs do tamanho de melancias. E um nunca acabar de outros seres descomunais vindos do reino vegetal, que me faziam desconfiar do solo. Não contentes com as desgraças que contavam – os fenómenos humanos eram todos deformidade –, elas, a voz a apequenar-se, compraziam-se em comentários de pena e dor d'alma, dirigidos sobretudo às coitadinhas das mães e empregavam num ai todos os aleijões. Era assim, sem qualquer intenção, que as mulheres resolviam o problema da falta de espaço no Entroncamento: o circo levava-os. Para mim, estavam encerrados nos carros e roulotes, proibidos de espreitar às janelinhas para não assustar as pessoas. E inventava uma história de escravatura à medida da enormidade de tendas, palco e bancadas, de inspiração Enid Blyton, “Os cinco e o circo”, onde havia um homem  mau carácter.
Mas o que verdadeiramente me desapontava era o aziago dos fenómenos a embicarem, universais, para o epicentro. O Entroncamento, segundo as minhas fontes bisborreicas, saía sempre no jornal e o nosso lugarejo reduzido a um “nunca por nunca ser”. Não me soava justo. Resmunguei esta queixa para os outros garotos, mas não lhe pegaram e quando pedi que se lembrassem de alguma coisa anómala remataram e deram nó, “vamos jogar às escondidas, ficas tu a contar”. Em função do desinteresse e ingratidão  geral, desisti de encontrar fenómenos e trazer à ribalta a nossa terrinha pequena.
Porém, quando tinha uns treze anos, fui, em visita de estudo, a Lagos. Pela primeira vez, observei um fenómeno da categoria dos que as velhotas contavam. No museu, completamente embebido em formol, branco de ácido e dentro de um frasco, um vitelinho com duas cabeças. Adiantei que seria do Entroncamento, mas as professoras e as minhas colegas apenas riram. Quando inquiri a professora de Ciências sobre as razões do formol ela retorquiu que quase sempre, nos casos de deformação profunda, os animais nascem mortos ou morrem logo após e conservam-nos assim durante anos e anos. O meu mundo fenoménico vacilou profundamente: fenómenos mortos nem eu sabia que existissem. O drama da realidade factual de qualquer fenómeno, desmontado sob o meu nariz, fez-me entender a sua violência física; uma violência que podia arrebatar a vida. Da violência psicológica, sabia nada. Mas nesse momento, abençoei o meu lugarejo vulgar, repleto de gente e factos comuns.

Então, “a mulher que voou” era imprevista. Mas todas as histórias começam pelo princípio. E o princípio é a infância. O da mulher voadora foi, indubitavelmente, esse.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A neve cai em estrela...ou será em flor?!

Chegou-me assim, enregelada dos frios, branca de cal. Olhei numa incompreensão os seus cabelos de arabesco, desalinhados na definição do rosto. Estendi a mão, toquei-a na vontade de um abraço protector, do alinhamento impossível dos fios transidos a escorrer-lhe a pele. Então, na ponta dos dedos, senti a retracção involuntária, o calor morno a esmaecer na lisura do seu toque macio. Moldei-lhe a face com a mão, lentamente, num gesto quase grato pela enigmática presença. Observei-a longamente, atento, buscando familiaridades, o coração sincopado, a desejá-la e repeli-la em cada batimento. Fechada em ignaro mutismo, ressumava uma frieza talvez desdenhosa. Mirei-lhe a altura dos saltos, a elegância de capa, a harmonia singela das linhas. Linda, sim. Mas tão unicamente frágil! Se eu quisesse destruía-te, pensei. De seguida, emendei o tempo da acção, se eu quiser amarfanho-te o ego; se me apetecer, elimino a tua clara distinção. E logo depois, a reparar-lhe o jeito cândido, de entrecortada novidade, não sou capaz, não consigo erguer muros altos entre nós; são paredes de palavras, desaparecem sem rasgão. A reconhecer o meu estatuto falso, a minha força fraca, se tu abres um sol, desmancho-me. Derreto.
Sentei-me na sensação de quem está no hall, em espera ansiosa, antevendo nada. Entretive-me a imaginar-lhe o fogo interno, qualquer lume que, sem queimar, lhe alimentasse as combustões e aquecesse o sangue. Persisti na imagem, tinha que ter sangue e órgãos internos e circulações e coração. A sua palidez escondia vísceras, sentimentos, pequenos tiques quotidianos. Nela cabiam palavras inóquas e sagazes, as ternuras da seda, mas também o risco da unha no vidro. Reparei-a mais uma vez e já me convidava, chegada, quem sabe, do seu lado familiar. Ou talvez eu lhe tivesse lançado uma ponte e assim a fizesse próxima. Talvez.
Então, numa angústia incerta, tomei-a a mãos ambas e perscrutei-lhe o rosto. Ficámos assim, frente a frente. Eu a buscar-lhe  a alma absolutamente impenetrável.  Ela, impassível e paciente, no mesmo desafio mudo da chegada e que agora me surgia diferente: toma-me, aceita-me. Eu meio débil, quase a capitular ao desconhecido. A saber que é em mim que a rasgarei. A despi-la da capa e procurar-lhe o incognoscível da presença adivinhada.

Depois, tapei-a brandamente, o envelope agasalhando pudores. E saí para o incrível do dia, a meditar na humanidade de S. Tomé, acredito se.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

"Andar à bossa e ao ganhoto"


As coisas que a gente encontra por este Alentejo de Deus! Bom, neste caso é apenas nos meus dossiers de memórias. Memórias de projectos tecidos em conjunto entusiasta. É bom relembrar verdades que não passam, onde estamos hoje como ontem. Inteiros.

Dantes, em todo o Portugal, mulheres e crianças “iam à lenha” No Alentejo, “ia-se à bossa e ao ganhoto”. “Andar ao ganhoto”, ao contrário do que o dicionário indica (rebento frágil de figueira, podado geralmente no inverno), ou, quem sabe, por causa disso, quer dizer “apanhar pequenos pedaços de lenha”. Talvez já não precisemos de “andar à bossa” (apanhar lenha miúda e pequenos ramos); talvez todo o calor, ou quase todo, seja hoje instantâneo e imediato, eléctrico, postiço, sem ter por dentro o esforço de procurar por pinhais e montados a lenha deixada para trás e que alimentava lumes caseiros. Porque não se acendia a lareira. Fazia-se o lume. E é verdade que fazer o lume não é acender a lareira. Há todo um trabalho concentrado na expressão “fazer o lume”, um tempo que é das mãos e do cuidado. Porque o lume não há. Faz-se. Valor da força artesanal que é também arte. Se todos sabemos acender uma lareira, nem todos sabemos “fazer lume”. Um lume exige ter andado à bossa com critério, ter trazido um feixe de lenha à cabeça e umas pinhas de braçado. E chegar exausto, mas feliz do calor que há-de ser e se trouxe para casa. Lume é lenha partida por nós, ganhoto a ganhoto, uma arte de misturar e dar a cada tronquinho pequeno o seu lugar. O lume só “pega” se for construído como se de casa se trate.

Haja quem procure os ganhotos de acender os lumes do nosso contentamento. 

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Cartas para Olívia

Olívia


            És tão, mas tão previsível!!! J)
            Ligaste a agradecer a prenda. Nem tanto para agradeceres, mais para auscultação de preferências. Queres pagar. Logo tu, que nunca me deste nada. E agora desejas retribuir. Mas pontos dados de coração não se retribuem senão com a mesma moeda. O caminho para ti já nem existia. Nunca existiu senão em mim mesma. Tu deixavas-te ir, embalavas na minha amizade.
            E não. Não quero um presépio. Disse-to. Um Menino Jesus de muito ano faz-me os natais da vida. Sorriu-me de uma montra, no Porto. E logo senti que sem ele não saberia o caminho de volta. É o meu tudo de presépio. Parece-me mal acrescentá-lo, queres o quê?! É um Menino autossuficiente na sua manjedoura de palhas penteadas e risca ao meio, o rostinho rosado a sorrir ternamente a quem chega – que o ponho logo na mesa de entrada.
Necessito apenas dessa figura etérea, mãozinhas de refego e manicura perfeita a entreabrir. Se tenho saudade de haver natal, desembrulho-o e desvaneço na sua perfeição de porcelana. Há nele uma infância delicada, um abandono confiado que comove e ajuda a continuar.

Que o Novo Ano te sorria.