sábado, 25 de abril de 2015

Às Portas de Abril

Em obediência à secura de eucalipto, os acompanhantes vão chegando à sala de espera. Onde desesperam, cronométricos. Mundo sinuoso, este: sem os doentes e à medida que os ponteiros do relógio se distendem num compasso de vagar e passinhos de bebé, a preocupação cede à curiosidade. Olha-se em volta e o panorama é de retalho: ali uma senhora desdobra, a apontar para o fundo de papel azul, as instruções de uma toalha em croché com passarinhos; mais além, um homem ressona sobre a barriga, queixo enterrado no peito. Na fila de cadeiras a meio da sala, três ciganos destilam elegâncias de cavalo árabe. Espreguiçam-se de braços ao alto e escancaram-se a bocejar até à epiglote, incapazes de quietude. Quando entram os palhaços, riem os três com muito mais graça e naturalidade que os pobres de nariz de morango. E, quer o lado masculino quer o feminino, passeia-se flexível, no andar quase felino que lhes pertence e faz a inveja de qualquer modelo de passerelle. Num dos cantos da sala, uma senhora de salto muito alto e meia a condizer, cabelo preso com ganchos invisíveis e uma possível revoada de laca, monta um par de olhos escandalizados quando o cigano mais jovem sai a pingar da casa de banho, nu da cintura para cima; ela, baton em linha agastada, a desaprovação pelo corpo a contrair, não me digam que ele tomou banho ali; e o moço alheio, como se em casa, a sacudir a camisola antes de a vestir, caracóis a escorrer - diriam os brasileiros que bem devagarzinho -, o corpo moreno a reluzir de gotículas, estriados bem definidos. E depois, embaraça os braços molhados nas mangas, a esforçá-los até surgirem vitoriosos na ponta do punho e senta-se sem reparo à atenção que o marcou. A meio da sala, as máquinas, a incentivo de moedas, cospem sumos, cafés, batatas fritas…E sobre os nomes anunciados ao micro, a intermitência musical, quase sempre de mau gosto, de telemóveis insistentes. O mundo dos telemóveis raia o obsceno. Porque a vontade portuguesa de exposição chega a ser delirante. Magoa esta vaidade com defeito que sobressai nas conversas em alta voz ou em voz alta, apetece mandá-los exibir-se na rua, dar-lhes um piparote de boas maneiras. A dada altura, os ciganos agarram os filhos com leveza e vão embora. Ficou fazendo falta no lugar aquela naturalidade empática.

Hoje faz anos um dia feliz. Contudo, para ouvir as Canções de Abril, para recordar que a canção é uma arma, tive de recorrer à RTP Memória. No meio de desenxabidos discursos  lacaios de interesses menores e onde poucos deram vivas ao povo português, ninguém lembrou a genuína alegria de há 41 anos  e que devia repetir-se hoje. Mesmo que diferente, devia. 
A "Grândola" comove. Que a tenho por uma canção tão triste como verdadeira.

Às Portas de Abril

E se a vida humana fosse expurgada da temporalidade? A resposta mais comum é que nos assemelharíamos a deuses. Somos assim, pretenciosos de raiz. Não pensamos que poderíamos ser couves lombardas, cães, gatos, animais selvagens e ferozes. Ou seres inanimados, objectos que alguém manuseie de apetite ou movido por necessidade e dever. Não. Talvez por aspiração congénita, limitamo-nos a caminhos ascendentes: deuses, intemporalidade, poderes infinitos. Porém, para subtrair a temporalidade, bastaria a falta de consciência. Kant continua tão razoável como então: tudo nos existe na mente.
O homem é na verdade um ser complexo e estranhamente irrazoável: temporal, vive como se eterno. E muitos – muitíssimos e desde tempos imemoriais –  assumem que a subtracção do tempo no pós morte os muda em semideuses. O que, bem vistas as coisas, é mania de grandeza e sinal de diferença. A admissão da dualidade platónica subentende que, sem o homem, a realidade (de qualquer dos mundos) elide.
Por vezes, o acaso faz tremer esta estrutura de sentido. Nos momentos em que se confronta com a sua mesma temporalidade – a morte que sempre o acompanhou -, o homem duvida desta arquitectura, misto de razão e imaginário, que o configura. Por excesso de realidade, as situações-limite dissolvem o sentido. É este excesso que avassala e absorve a construção de sentido, a aniquila. E não sei se morrer não é apenas chocar com o muro e a vitória dele.

Vem isto a propósito de um dia de catorze horas numa urgência. Catorze horas a ver entrar sobretudo velhos, folhas murchas a desfalecer entre lençóis e soro, sem voz, sem cor, sem outro movimento que um bater de pálpebras a ranger resignação, as mãos em concha, ao abandono, ossos recurvados de doença e anos, garras inermes. Dá vontade de ir buscá-las a esse movimento involutivo e preencher de carne os espaços entre os ossos. Alisá-las. Fazê-las regressar ao tempo da utilidade. Catorze horas guardadas por seguranças hercúleos e couraçados, eucalípticos. São espécimes imunes à compaixão, dextros em proibições paulatinas, que separam familiares de doentes como quem deita mão a peúgas sem préstimo e as atira ao caixote, olhos sempre mais além, a saltar cuidados, preocupações, avisos de, é diabético, o senhor doutor que lhe veja o dedo do pé; ou, ainda não comeu nada hoje e já lá vão oito horas na maca, veja lá se precisa de alguma coisa. Quem, na distracção do segurança, ouse espreitar o corredor das urgências, vê as macas em proliferação promíscua, umas atrás das outras, contíguas. Em cada uma há um caso grave, uma vida assustada de sofrimento e fascinada de morte. No exterior, um ou dois familiares de coração na boca. Ali, anda-se a poder de fé e espera-se que uma equipa de médicos competentes receba o doente. Passarão sempre – no caso dos idosos com problemas – cerca de oito horas até chegar uma notícia mais concreta e unívoca: fica ou parte, é mais ou menos grave; há ou não necessidade de intervenção cirúrgica. Até lá, a informação é quase nula.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

As Violentas Mãos da Vida

Mas os projectos que fazemos, por mais assisados, dependem da realidade.  Que os transforma, esboroa ou dá concretude. Entrei no terreiro a enterrar a timidez no fundo dos bolsos onde ninguém podia adivinhar o frio dos meus dedos suados. Na tentativa de cumprir propósitos,  parei a habituar os olhos e observar os pares que rodopiavam, aqui e ali, um a esgueirar-se para a zona mais sombria. Sentadas em tábuas corridas assentes em séries de dois tijolos empilhados que não raro desmoronavam entre gritinhos e rabos no chão, as matronas conversavam de olho nas filhas, ou guardavam em distracção garotas vesgas e sem graça que nenhum rapaz desafiava. De mãos no regaço e casaquinho pelas costas, as esquecidas aguentavam-se à vergonha de não serem puxadas por ninguém, a tentarem olvidar o desinteresse do sexo oposto que as derrotava a cada música, antevendo a chacota que as aguardava no dia seguinte. A Isaurinha a engolir o vexame quando o Roberto encaminhou na sua direcção e ela já a sorrir e a levantar-se, mas ele sobranceiro, adiantando-se a desafiar a Madalena. E a mãe a dar de ombros e a compor-lhe a gola da blusinha, pindérico, vais ver que fez por querer, o nojento; deixa lá filha, aquilo é gente que não merece o que come.
Com olhos habituados, revi o cenário em pormenor demorado, sem encontrar o objecto da minha cobiça. No entanto, a presença da Felícia da loja, sentada e sorridente, indiciava a proximidade da filha. Curioso, esperei nova música e resolvi puxar o sorriso grato da Isaurinha que se levantou a desabotoar o casaquinho, nos olhos da mãe um lampejo de gratidão. Isaurinha era uma mocetona peituda, cabelo e olhos de azeviche inocente, meio poucochinha, que os pais teimavam em casar e ninguém queria para nora. Era a mais nova de quatro irmãs e a única encalhada, como a falta de siso da mãe apregoava. Desde a escola primária que era amigo da Isaurinha, garota de poucas falas e sorriso permanente a quem sempre admirei a solícita ajuda a caídos e indefesos. Que, no mais, limitava-se a uns riscos ininteligíveis e pouco a escola lhe fez.
Ao fim de umas voltas, ela olhou-me na permanência do seu meio sorriso e adiantou, ela saiu com o filho do feitor. A Isaurinha que não sabia ler nem contar, lia- me, como sempre, coração e vontade. Apertei com ternura a mão que enlaçava a minha e olhei-a no fundo dos olhos. Mas a garota já tinha afivelado o seu sorriso de muro e foi assim que dançámos até deixá-la de novo junto à mãe, recolhendo um  sumido obrigada. E depois, já sentada, ficaram-lhe só as mãos a mover-se a tacto, ocupadas com o abotoar do casaco. E era como se, cumprido o papel, eu tivesse deixado de existir.
Dirigia-me para a noite  circunspecta quando cruzei com a loirinha e o filho do feitor que entravam, ele gingão e ela envaidecida da atenção. Olhei-a melhor a despedir-me, e sei que nos entendemos. O orgulho tufava no seu vestidinho de festa. Bonita, sim. Álacre. Iludida. Mas eu apenas sabia da minha desilusão. Não antevi que o filho do feitor estudava na vila e em breve trocaria a aldeia pela cidade, antes me cruzei desprotegido com um rival armado. A minha mocidade ferida e impreparada desconhecia que a vida e os desejos de cada um são, por vezes, isso mesmo: os namoros também servem escaladas sociais, por isso, as garotas da aldeia desarmam perante os filhos dos feitores como eles face às filhas dos patrões. Porém, não é fácil ordenar uma balança de pratos assim desiguais e a vida põe cobro à disparidade destes encontros quase momentâneos, sem que exista uma megera proibitiva, um pai tirano que deserda e expropria, ou sequer uma impossibilidade traçada por ser humano retorcido. Desejei-lhe sorte e, misturado com o movimento geral,  abandonei recinto e intenções mal o tocador encetou nova modinha.

Quando saí, olhos habituados à luz, mergulhei atarantado no breu e logo um braço estendido e uma mão a agarrar-me a manga do casaco. Parei sem te ver, a esforçar os olhos para dois vultos difusos. E uma voz clara, a tua, o senhor é que e o filho do padeiro? Eu desinteressado a assentir e tu de novo, a gente atrasou mas viemos de longe e precisamos do pão para a semana. Devo ter parado interrogativo, porque acrescentaste, já fomos lá a casa mas o seu pai diz que trouxe a chave da padaria na algibeira. Levei a mão involuntária ao bolso e senti a forma da chave sob o tecido. E lá seguimos os três, eu a sentir-me miserável. Quando separei os pães e me disseram onde estava aquartelado o rancho, resolvi-me a acompanhá-las. Duas mulheres sozinhas e carregadas, no meio de um pinhal denso como o que tinham de atravessar, eram  perigosas. Para elas mesmas. Para a carga que na altura apetecia a muita gente. Que a miséria não subtrai uma migalha ao vizinho que deixa a porta aberta, mas, surgindo a oportunidade de surripiar a qualquer desconhecido um pão que mate fome a muita boca, não a perde. Os códigos de honra não são universais. Talvez nada o seja. Mas isto digo eu hoje sob a chuva forte que inunda as ruas a escorrer.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

As Violentas Mãos da Vida

Mas no ângulo do espelho já não há nada e o teu canto é só um canto. Num ritual de purificação, o pai queimou-te o catre, a esconjurar sofrimentos incorruptíveis. E herdei a pouca roupa que tinhas. O dinheiro é escasso e tanta vez não chega para a compra do trigo, semanas existem em que vamos buscá-lo, diários. Em época de boas contas, uma vez por semana, a carroça abastece na moagem da vila mais próxima.  Mas, se os clientes não podem honrar os compromissos, a farinha é comprada a conta-gotas, o tempo de carroça extorquido às horas de sono. Nesta era de apertos e pobreza miserável, quase ninguém conhece desafogo. Por aqui, abonado, só o feitor, proprietário cioso da única  charrete da aldeia. E de certeza o doutor da Herdade do Lameirão que passa por nós no seu carro comprido com chofer e os homens a arredarem para a berma, a meterem-se nas valetas e a descobrirem-se, chapéu na mão, bom dia, senhor doutor. E ele passa recostado em finuras de conforto, a olhar em frente, um aceno de cabeça imperceptível para quem está. Nem sabemos se pertence mais à aldeia se a Lisboa, terra que imaginamos bonita e onde se demora que tempos, decerto na casa que por lá tem. Há quem diga à boca pequena que o doutor manda na pide e sai muita vez da aldeia para um almoço com Salazar. Mas ninguém sabe se isto é verdade ou não passa de um bate boca.
Espreito a noite lá fora e assalta-me a vontade de desistir de danças e ir passear no escuro. Na aldeia, a noite usa o véu pesado das viúvas, não se vê um palmo à frente do nariz. Lua nova, sem electricidade. Encolho os ombros e miro-me de novo no espelho. O meu pai balbucia com olhos de satisfação, se a tua mãe te visse... Não respondo. A minha mãe! Falaram-me dela. Como se o coração guarde lugar a palavras vazias de figura! Mas qual é a criança que entende a mãe de que não tem memória e que tomou remédio dos ratos para desistir. Que a entregou a colo de avó e pai austero, ignorantes do irrestrito da ternura, ele sem hábito de cuidar filhos em curta idade. A sua figura não me é importante.  A avó ainda ecoa, alongando olhos ao passado, o teu pai só te deu colo aos três anos. 
Olho-o sem rancor, admiro o seu modo comedido. Enterrar mulher e filho é obra. Acredito quando ele, “ela matou-se porque estava doente da cabeça”, sem acrescentos. Terá razão o meu pai,  alijar a culpa enfraquece o desgosto, torna-o perecível.  Dou-lhe uma palmada no ombro, um até logo rápido e vou no encalço do padeiro mais novo, meu colega de folia. E ele fica sozinho. Imagino que feliz por mim. Agora, no meio dos uivos de vento, só hoje, pai, me acudiu a ideia de que a solidão também te moía. Te moeu anos a fio e tu sem uma palavra, uma interjeição sequer. Como o filósofo, pensavas noutra coisa. 

Sigo rua abaixo a assobiar o sinal combinado, não quero enfrentar a penúria desconjuntada da casa de duas divisões, a miséria familiar envergonha-nos a todos. Mal a porta entreabre, surge escancarada no rosto faminto de velhos e novos; nos andrajos rotos, atolados em remendos a cair das linhas; na sujidade artesanal da mesa de tábua escurecida de nódoas onde nem uma cadeira pontua, os cacos sujos das refeições com restos entornados a esmo. Faz-me mal a curiosidade ranhosa e encardida de crianças que não viram pente, acocoradas pelo chão de terra. Olha-se em volta e a miséria galgou, das vigas abauladas de anos às paredes nuas e a descaliçar, rachadas de veios escuros, tudo pede esmola. Por via da situação e sem altura que permita arrefecer o ar, o verão  aquece a casa como um forno, e pelo rigor do  inverno o vento traça caminhos a encanar nos buracos das telhas velhas, uma ou outra partida e com goteiras que um balde apara, incerto. O meu amigo padeiro prefere as noites insones e trabalhosas na padaria, à frieza ou calor esburacados do sono caseiro a padecer de poucas tarimbas para muita gente.  
Chego à porta e nem sinal dele. Estendo uma mão contrariada, mas o correr de um ferrolho antecipa-se e logo o rosto enche o postigo pequeno, não posso ir, tenho anginas. E muito rápido, num mexer de lábios quase inaudível, não tenho sapatos, o meu irmão foi namorar e calçou-os. Assinto mudamente, desejo as melhoras em voz alta e desando dali acompanhado pelo fechar do postigo, um dedo  de desalento no ferrolho envergonhado. Olho os meus sapatos, só tenho este par que herdei de ti, Antoninho.  Na aldeia, por fogo, há  um par de sapatos de que os irmãos negoceiam vez, e esta verdade comum é tão incómoda que vive escondida de uns e outros. Mas já distingo o acordéon do Manuel Praça a embalar preocupações numa modinha conhecida. Sigo ao encontro da música a firmar-me na decisão, hoje tiro a loirinha para dançar. Pago a entrada ao João tractorista, aproveito a boleia e entro com dois ou três rapazes que vieram dos foros e ajeitam cabelos esbaforidos depois da viagem de bicicleta.

Horizonte

De Évora tenho memória escura, a igualar o dia de hoje, tão triste de luz. Uma cidade soalheira que em mim é eterno sombreado. Porém, não se pense que foi tempo apenas de tristeza. Nada disso, ainda mantenho duas amizades alegres que ali encontrei, perdidas no rigor das estações. E há eborenses que conheci e conservo intactos em seu valor natural. Fez-me bem conhecê-los, aumentaram a minha fé nos homens e mais nos alentejanos verdadeiros. Para com eles, os amigos e conhecidos que me foram companhia,  bem o sinto, sou devedora.
Porém, o cimento dos anos e a corrida das estações não obliteraram o sabor amargo da cidade, a tristeza que só a fonia  “Évora” ainda me causa. Alguma coisa muito séria perdi no meio daquelas pedras. Ou ganhei. Porque o ar das cidades nos afecta e transforma na medida do que nelas vivemos. E há em cada uma o seu próprio ser. Existe o ar das cidades com praia, cheirando a férias e sempre mais leve e prazenteiro; o das cidades quotidianas que cheira a pão enchidos e hortaliça e, por vezes, a esgoto e a azedo; o das cidades monumentais com cheiro de  história e um leve traço de mofo; e etc. Quanto a Évora, reconheço: respirá-la durante três anos, impactou-me. Podia ter sido o meu melhor tempo, afinal vivi ali entre os dezassete e os vinte. Os meus avós diriam sonhadores, uma idade tão bonita! E sim, era uma idade bonita. Nesse tempo, também eu era bonitinha. Ainda que doente. Ou talvez mais por causa disso. Tinha um olhar com morte dentro. E, ao contrário do que se possa pensar, não era feio de todo.
Por vezes, vou a Évora. Poucas vezes e só quando tem de ser. Mas, ao contrário da cidade que me causa algum mau estar, o caminho agrada-me demais. Antes de Montemor-o-Novo, o verde primaveril cola-se em suavidade que arredonda pelas colinas e não há nada mais bonito que este perder de vista do horizonte alentejano com suas capelinhas em cada monte, aqui e ali casas idílicas e brancas arrumadas umas às outras em pose fotográfica (sei, é só por fora, lá dentro existem os dramas e alegrias que todos conhecemos). E o firmamento é maior, mais próximo e ímpar de cor. Nesses momentos, juro, apetece-me o caminho e fustigo-me mentalmente, invectivando-me pelas saídas que não faço e prometendo passar com mais frequência. E,até nessas alturas de devaneio, tenho certeza que prometo em vão. Hoje foi assim, os meus olhos luxuosos a olharem até Évora e a cidade irreal, envolta em espesso manto de névoa que a escurecia. Lembro-me de ter pensado que podia vir chuva. Chegada à urbe, crio sempre a ideia tola de que me fico pelos caminhos dado não ultrapassar as muralhas. É uma desculpa para não a encontrar, cara a cara. Pode até ser uma fuga. O médico para mim, dê um passeio pela cidade. E a minha negativa espontânea, afastando a sugestão como mosca incómoda que pousou onde não deve.
 Regressei debaixo de chuva grossa, um nevoeiro aquoso a levantar da estrada a ilusão de estarmos sós. Nós e a água sobre a fita escura e brilhante.
Pensando nas voltas da vida. E quanto a greve de metro e mais um ou outro factor podem caminhar ao invés da vontade.
Viver também inclui o improgramado.
Haverá outras vezes? Pois é. Mas não a mesma vez. Nunca mais a mesma. Porque o irremediável é o continuum da vida. Nenhum dos nossos minutos volta. Nenhunzinho.

E eu que queria ver e ouvir Dulce Maria Cardoso!... 

terça-feira, 14 de abril de 2015

Cama de Lodo

Fui ver-te de novo. De novo, não me parece fiel. Porque não há nada novo na situação ou em ti, antes é como se eu nunca tenha partido. Como se mergulhe de cabeça num mundo povoado por olhos abstractos, encostados à parede, a pares, em toda a volta da sala. Os teus olhos ao lado da televisão, também em abstracção errante. Reparo que cortaste o cabelo e perdeste aquele meio ar de seres tu, que te morava no rabo de cavalo. Que nos olhos não és tu nunca. Não moras nos teus olhos. Para onde terás ido, santo Deus?! Conto-te bagatelas de quando éramos crianças e nem repetes o meu fim de frase. Estás pálida, a blusa descai-te num ombro, tenho vontade de a ajeitar. Crio a convicção de que continuarias imutável se estiveras nua, planas no limbo. Mostro-te o embrulhinho do baton e num gesto que foste buscar ao passado abres a caixa, retiras a tampa dourada e rodas o invólucro até surgir a aguçar o vermelho escuro nacarado, “ ó D. Antónia, agora vou-me pintar”, dizes meia incrédula. A D. Antónia deve preferir o anonimato, não responde. Ou, quem sabe, nem existe. Pergunto se gostas da cor. E tu, um monossílabo de assentimento, já a fechar a caixa e a colocar o baton entre a roupa interior de que, desta vez, gostaste. E arrumas o assunto. Escolhi-to em cuidados dobrados de desábito, um vermelho a condizer-te no rosto. Mas os teus olhos abstractos na mesma.

Na visita seguinte, cheguei com o relógio que te prometera e finalmente encontrei. E animaste um pouco a olhar a bracelete de tamanho único, aguçando pormenores, é um relógio de ouro. Desisti de desconvencer-te quando teimaste em ouro branco. Mal o ataste no pulso lembrou-se-te o almoço e encaminhaste feita formiguinha para a sala de refeições onde a empregada contou que quase não comes. Olho-te as costas, dou uma corridinha e acompanho-te à sala, tu a apresentares-me, é a minha prima. E depois, como é hábito, esqueces-me. Saio a saber-me completa inútil. Espreito-te de rosto encostado na janela e nem debicas a comida. Estás serena no teu lugar, esquecida de mim e de tudo, o passado não te existe ou é muito nebuloso. Pergunto-me se serás assim ou a medicação te faz a cabeça. Quando inquiri se tens saudades do exterior, a cabeça um não rotundo e proferiste, “agora esta é a minha casa”. Disseste a frase agarrada a ela, com o abandono de criança que reconhece o lugar de pertença e não imagina que possa ser diverso. 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

As Violentas Mãos da Vida

No princípio da nossa história – minha e tua, riso de fonte - trago debaixo de olho a loirinha da Felícia da loja que me desdenhou olho no olho, escarninha, que vou morrer como o mano e não vale a pena começar comigo. Verdade granítica que não me pesou. Sou jovem, a doença dá os primeiros passos e tenho fé no tempo e na medicina. Além disso, a densidade do presente não incentiva projecções. Hei-de dobrar aquela garota a meu jeito; e, se não aconteça, encontro outra. Neste momento, alijo preocupações e estou prestes a sair de casa. Penteio-me ao espelho, a palma da mão oleosa a rasar o cabelo e logo a brilhantina do meu pai fixa ondas que ajeito a pente, a mudá-lo da mão esquerda para a direita que no espelho vejo trocadas. Como será que os outros me vêem, fará diferença que eu observe o simétrico de mim?! Tento imaginar-me com tudo que está do lado direito posto no esquerdo, mas perco-me na reconstituição. Olho-me melhor, avalio que peso pode ter, por exemplo, a simetria do risco no cabelo - a risca que vejo à direita está na verdade à esquerda. Parece-me ainda ouvir-te lá atrás, deixa-te dessas coisas de esquerda e direita, estás à altura de qualquer garota; cuida mas é de não esquecer os passos de dança que te ensinei. Espalho o resto do brilho na parte de trás da cabeça e, a esculpir o penteado, encaminho a dedo lustroso alguns cabelos fugidios. Depois, miro a obra. Sorrio-me. Preparo este corpo prometido à morte para um baile de rua. Fiz isto tanta vez e também tu me olhavas, Antoninho. Isento de invejas, um sorriso embevecido bailando na doença e o estribilho, vai devagar com o andor, ainda és muito novo.

Como agora, lavava as mãos e vestia o casaco que partilhava contigo. Depois, dava-te um aceno de despedida porque na nossa família e na aldeia inteira os homens não se beijam nem se afagam, dão-se grandes palmadas nas costas, riem uns dos outros e de quem calha, pagam-se copos de vinho e, em situações de ausência comprida, se a saudade lhes estrangula o coração, encadeiam em abraços tão íntimos e demorados que podem até chorar lá dentro, cabeça baixa, que ninguém dá conta. Os abraços masculinos são assim, fortes e comoventes. Só um amor fundo ou uma grande dor pode levar dois homens a um abraço. E tu, a quem eu tanto abracei em todos os estilos que um abraço pode ter - eras doente e eu uma criança quase -, no canto do espelho, em tua pose de irmão mais velho, não te esqueças, antes de dormir vens à minha cama. Eu fingindo, e se dormes?, tu num trejeito, não sei já como se dorme. Vem. Conta-me como foi. Diz-me se a Joana esteve. E eu saía com a ideia de que íamos os dois e que dançavas e ouvias comigo. Mas depois, empurrado pela escassez de tempo livre e pela febre de juventude e princípio de tudo, esquecia-te. E só me existias quando te fazias lembrado, eu a entrar em bicos de pés e tu, psst, psst. Então sentava-me a teu lado e comentava os pares, as brigas de homens e rapazes, os mexericos, a Joana quase sempre sentada ou a dançar com crianças, as raparigas com quem bailara e como, o tocador e as modas que tocava, as conversas das velhas que gostavas que te reproduzisse na íntegra. E eu a fazer-te a vontade e a imitar a ti Silvina peixeira, toda escamuda, lenço na cabeça de abas viradas à minhota e a quem só faltava a canastra, repuxando ao peito o xaile preto cruzado, escamas alçadas aqui e ali, uma enfiada de alfinetes-de-ama que ninguém explicava porquê tantos, de olho nas filhas, o corno da minha Ermelinda anda outra beiz de dança cum aquele esgroubiado do Sebastion. Se les beijo os dois nobamente, bai a toque de caixa pra casa e num torna aos balhos. Raio de cachopa! E ajeitava o rabo na dureza do banco corrido, a destilar um cheirete a peixe recozido de suor que afastava vizinhanças. Em volta das saias compridas, uma data de gatos aos miados que enxotava a pontapé das velhas socas de madeira, a rosnar, bichos dum cabrão bão-se cozer; daqui a pâuco deix'um c'as tripas de foura. A ti Silvina era a tua preferida. Por ser do Minho e ter língua afiada. E porque vestia à mulher do Norte. Dizias rindo que nem pelo casamento com o Josué peixeiro tinha lavado os pés e que era um milagre que lhes tivessem nascido duas raparigas em  vez de duas sardas. Fiel à profissão, a mulher ia para todo o lugar como andava de porta em porta, suprimindo apenas os instrumentos da arte: canastra e corneta . 
Era assim, entre risos e imitações, que respondia as tuas perguntas. Passado um bocado de prosa, já tu me parecias contente e entrosado no ambiente, quem nos ouvisse julgaria termos estado os dois no baile. A maioria das vezes, não me deitava, arrumava o moxo das visitas na parede lateral da tua cama, vestia a farda e, seguia para a padaria a dar o nó no avental - bastava atravessar o teu quarto e abrir a porta de comunicação -, a voz do pai atrás de mim, tal não é esta falta de juízo ham?! Antes de sair, virava-me para trás, dedo no trinco, o quico na outra mão, e o teu sorriso grato a perseguir-me a figura era de longe preferível ao repouso que faltava. 

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Mataram a Cotovia

Gostei de ler “Mataram a Cotovia”. É uma história bonita, boa de ler e, claramente, um livro bom. Desta vez o meu feeling foi certeiro e não me arrependo do volume que preteri em vez deste. É certo, fiquei a desconhecê-lo, mas sei que não podia agradar-me mais. Contada pela voz de uma criança, esta obra dá-nos o mundo e a ambiência de princípio do século XX, no tom meio encantado da infância. Com seus porquês e medos, suas recusas instintivas e adesões inatas, seus maravilhamentos pegados às pequenas coisas... e um ninho de confiança e carinho onde se pode crescer à vontade. Ali se sente muito amor. Curiosamente, o trio principal teria tudo para gerar problemas entre si. Mas sucede o contrário. A morte da mãe, que a narradora nem lembra, une o clã para a vida e para a morte, como se os filhos, mesmo que indistintamente, sejam uma extensão do pai e sintam quando periga (ainda que ele o esconda) ou os necessita. E, como em todas as histórias de infância, há uma casa misteriosa, com uma personagem única, que ninguém vê mas todos sabem que existe no seu interior. E, na medida do crescimento, há a evolução do medo infantil acerca dela, suspenso até ao inesperado final.
Devo dizer que uma noite de venturoso acaso vi o filme baseado neste livro e que em português terá um nome bastante diferente que nem sei qual seja. Apanhei-o já tinha começado e só fiquei a olhar porque a imagem que vi primeiro foi a de uma garota de cabeça para baixo, pendurada numa árvore pelos pés, com as saias à cabeça. Exactamente  como eu me pendurava na nossa figueira, a concorrer com os meus primos para ver quem aguentava mais tempo; quando nos largávamos – por vezes, sem tempo para içar as mãos e fazer uma aterragem disciplinada, não aguentávamos e caíamos redondos no chão -  estávamos vermelhos como um tomate porque, dizíamos cheios de orgulho palerma, o sangue nos subia à cabeça. Para maior identidade, a fulana que no filme saia de casa e repreendia a garota parecia tão zangada como a minha mãe de cada vez que me apanhava naquele despropósito (a Calpúrnia elevava mais a voz, nunca ouvi a minha mãe gritar). Portanto, simpatizei de imediato. E depois sentei-me porque o filme era contado e não tenho armas para resistir a quem me conte o que for. No cinema ou na vida. Serei um sultão de Xerazade no feminino, mas a verdade é que não sei lutar contra uma boa história. E foi assim que vi o filme até ao fim e gostei qb.
Porém, o livro é outra coisa. Sem a possibilidade de vê-las, as personagens tornam-se poderosas. Oh! Não pela qualidade do meu imaginário, não é isso. Mas porque quem escreve tem de emprestar densidade ao personagem, personificá-lo de tal modo que se torne em realidade o que é apenas letra e papel. E creio que a autora, que só escreveu esta obra e logo ganhou um pulitzer com ela, fez um pleno. Sente-se a gente naquela cidadezinha, num determinado bairro, a descobrir as idiossincrasias de cada morador. E creio que todos acabamos simpáticos com aquele pai exemplar e sem defeito que se note, mas apontado um pouco como louco pela maioria (é apenas assisado e honesto, um bom educador). E gostamos de Calpúrnia a empregada preta (sei, agora não se diz preto porque é supostamente racista, diz-se de cor) e o preconceito é ali tratado primorosamente. E receio bem que de forma realista. Aliás, o enredo do livro pára nele para mostrar o quanto abunda dentro de cada um de nós. Ou seja, há mesmo uma personagem má, vingativa, um “não presta” carregadinho de defeitos. 
Sendo contado por uma garota, o livro é de uma profundidade simples que não aligeira fundura por isso. Antes se torna mais tocante a forma como Scout (a garota) vai descobrindo as coisas e consegue que nós leitores entremos nelas. Porque é ela quem, naturalmente, resolve algumas das situações mais embaraçosas – e até de perigo – que surgem.
E depois há aquele amor que se respira: do pai pelos filhos e o inverso. E entre os dois irmãos que são corda e caldeiro. E dos três por Calpúrnia. E parece-me isto fundamental para os olhos e mente  que têm: vêem e agem diferente dos demais.

É evidente que poderia continuar a desdobrar o livro e suas personagens (falta muita gente). Mas nada é comparável a ler:). E não se pode estragar a surpresa que salta das páginas.

As Violentas Mãos da Vida

Enquanto os braços te obedeceram, leste tudo que aparecia. Gastavas nos livros as tardes em que os outros rapazes davam largas ao corrupio de juventude e hormonas, em corridas de bicicleta e passeios de carroça, na procura de raparigas que mães peremptórias guardavam em aspereza de cardo. Depois, a progressiva imobilidade das tuas mãos deformadas mudou-nos, a mim e à Joana, em leitores. E tanta vez não nos ouvias – afirmavas não conseguir entender-nos, a força da dor uma intempérie que todo te arrastava. A dor e o seu império. Que nos esmagava, nos punha a rastejar de impotência, eu irado contra os desígnios de um deus ininteligível, maligno, encarniçado contra nós. Por ti, teria ficado de joelhos, humilhava-me perante quem fosse. Que inútil, eu. Inútil de mim, Antoninho, a prestar vassalagem à doença.
 Em teu tempo, foras o melhor aluno da classe, o nosso pai orgulhoso, é um ás para as contas, e a ler? Lê tão bem como o padre na missa. A professora, silhueta baixinha e nervosa, cinco réis de gente que vos apavorava de régua em punho, a observar-te, este miúdo tem qualquer coisa nas pernas, noto-lhe um andar estranho. Angélica, Angélica, tão geniosa como preditiva. Partiu de régua e mau génio no ano seguinte à tua quarta classe, Antoninho, não te viu crescer por entre o amassar e o levedar do pão, fazeres-te homem no meio de gente sabida que te apoquentava de dichotes e incentivados conselhos sobre as fêmeas enquanto tirava o pão do forno, a cara de pimento vermelho a escorrer, o brasido um inferno com dono. E a doença serena dentro de ti, à espera do momento, a enganar-te com a saúde fácil e à vista. Começaste namoro com a Joana e, ao invés de mim, fizeste a tropa. E a maleita lá dentro, feita toupeira, a minar. A professora desconheceu-te o padecer, não te viu os ossos a deformar e sair da pele, os padeiros numa aflição, a virarem o pescoço, dói só de olhar. E nenhum remédio. Os pobres nascem e morrem como as árvores: no seu lugar. Esgotam o cálice a desbordar que ninguém afasta. A miséria de ser pobre é garantia de sofrimento até que o coração ou algum órgão rebente por entre as orações e os terços das mulheres que não adiantam nem atrasam. E mais nos valera sermos árvore ceifada por trepidação de motosserra agreste.
Este filme será também meu. Ao contrário de tanta gente, sei o futuro que me pertence. Vê tu, meu encanto, espera-me um final isento de romantismo. Calcula de onde me vem a boa disposição que invejavas, não sei como consegues essa alegria toda. Mas é cedo, nós dois, amor, ainda nem começámos. Somos um ao outro incógnitos, Ignoto Mare, como na aventura das descobertas. Porque foste e ainda és a minha ilha perdida na bruma.

terça-feira, 7 de abril de 2015

As Violentas Mãos da Vida

Mas não foi assim. Cresci na aldeia, era o filho do padeiro e não te sabia. Vivemos desconhecidos no mesmo lugar pequeno. Hoje, soa-me a sacrilégio que fôssemos contíguos e não te tenha adivinhado. Desculpa esfarrapada, a doença. Porém, é verdade que ela me restringia. Por vezes, tomava-me a juventude, morava-me na mente a encolher-me o pensamento em lavagens de temperatura infernal. Os médicos em sucessão, é gota. E depois a olharem-me sem palavras, antevendo a minha ignorância. Na cabeça deles,  eu ouvia “gota” e um nome apenas, um nome de doença ignota e quedavam-se a medir o como de me anunciarem o futuro. Desconhecendo que lhe sabia o caminho e o sem nome do sofrimento, ignorantes de que a vida me dera de bandeja a experiência de corpo inteiro e sem futuro, até ao fim. Até ao fim, Antoninho, que nenhum hospital te chamou a si e só nós te assistimos a dor lancinante. Até ao Fim é o nome de um livro de Vergílio Ferreira, um real retrato da velhice que nos devora desde o berço e, com os anos, nos retira de sermos nós e até de sermos pessoas, a perdermo-nos, a perdermo-nos. Mas tu não envelheceste, a doença devorou-te o vigor e em poucos anos te escavacou a juventude. O coração  alerta de meu pai em desalentada revolta, não basta levar-me um filho, agora ainda quer o outro. E eu contigo na mente, amparado às muletas, homem feito. A muito custo deslocavas o corpo até à padaria a conversar nocturnamente com os padeiros que socavam a massa, a paciência no sorriso que te nascia nem sei onde, a voz num acaso trivial, as dores não dormem. E os homens em exagero de atenção circunspecta, sem resposta que se ouvisse,  vermelhos do esforço, enfarinhados e virados à bola de pão, a desenhar-lhes a cabeça num golpe seco de mão. Por volta das cinco, clareava o mundo adormentado, a massa levedada e o forno no ponto, um cheiro a pão quente a espalhar-se no ar e já tu   no quarto, a lucidez  extensa dos teus olhos a correr a brancura da cal em paredes que teriam desmoronado há muito se a agonia pesasse. Vigiavas a alvorada do leito para onde dois colegas te carregavam. À volta, o atrevimento de um reparo condoído, olhos a lembrar a energia dos teus braços na massa, a pena que me dá este rapaz, e abanavam a cabeça, olhos baixos, a ler não se sabe que desgraças na poalha de farinha que desprendia do avental.

Pouco tempo depois, já eu te carregava no colo, as muletas inúteis. Depositava-te junto ao tender da massa, recostado na cadeira toda armada de almofadas, porque os teus ossos recusavam movimento e não te sentavas. E os padeiros escondiam à pressa a compaixão que lhes vinha ao rosto, a mandarem-na lá muito para trás, arrumada àquele lugar onde se guardam as lágrimas que encalham e não desprendem. Dizias que o cheiro da massa a levedar te fazia bem e, sempre de bom humor, sorrias aos antigos companheiros. Dores sem destino. Corpo preso. E ainda chalaceavas. O teu coração bom sem as insurreições do meu, todo fora de maldizer a doença que te escolheu ou arremeter contra o Deus que nos ensinaram. Se batiam por um pão, o nosso avaro pai sem coragem de te negar o que fosse, virando costas para não ver as dádivas, leva-me à falência este filho. Namoraste sem casar, faltou-te a picardia dos encontros escondidos, um amasso aqui e ali, o acender de um beijo chamando a insatisfação do corpo. A Joana, que até ao fim se firmou a teu lado, nos bailes sozinha, fazendo par com crianças, já não anda coitadinho. Tu a olhá-la num misto de amor e renúncia, não sou teu namorado, sou teu doente. Ela calada, a fazer-te a barba, a mudar-te a cama enquanto eu te pegava no colo. Não voltei a vê-la depois que se refez de ti e casou fora da aldeia. Somos devedores da sua doçura persistente, mas acredito que lhe proteges a vida. 

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Dos Arcos a Ponte de Lima

E visitámos os rios falsamente parados e as praias fluviais onde apeteciam  demoras de piquenique, eu a inventar cestas românticas debaixo de árvores frescas e cadeiras de lona que quadram mal com o bucolismo da cena, mas são mais confortáveis que as pedras e suficientemente leves para carregarmos com elas. E, no ardor do momento, até me julguei capaz de mergulhar naquelas águas frias num pino de verão, coisa que agora, em meu juízo, descreio perfeitamente. E vi cobras pequenas e lagartos de vária índole, olhar desconfiado e fuga pronta, que não me deixaram assim tão descansada como isso, que temo tudo que se arraste.
E agora que já estou pacata (como se não fosse) e em casa, não me sai da cabeça o aviso camarário que ouvi ao micro em Ponte de Lima e que pedia aos turistas que não dessem esmola a ninguém que a solicitasse. Como sou estúpida! Não é que quando ouvi aquilo  até concordei?! Não era, de imediato, dar-me alguém uma chapada bem assente? Agora que penso nisso – não deixo de ouvir aquela voz nefasta -,  parece-me tão mas tão mal ter ouvido sem fazer chinfrim…Mas então, meus senhores CDS, a forma de acabar com a mendicidade é proibi-la de aparecer nas zonas mais in? Hummm….terão copiado a ideia da Suécia? Com tanto exemplo bom vão logo copiar um que não presta. A questão é que, a uns e outros, não lhes faz mossa que haja pobres, têm é que não os ver. Só faltava mesmo isto: pedir à miséria que seja invisível. E como é que eu não me insurgi logo? Estou perdendo qualidades, caramba. Características. E não posso que já sou bem incaracterística. Cambada de gente que não presta! Como se existir seja aparecer e só exista o que aparece. Sou contra as aparências de democracia. Sou contra esta mascarada toda de cidade limpa e bonita, que decerto proíbe os pedintes.
Achei Ponte de Lima um lugar lindo. Mas aquela voz persegue a visão que me ficou. E desfigura.

Toda a beleza tem um preço?! Não é bem assim. Belezas de só por fora não interessam nem ao Menino Jesus.

PS: Meu Menino Jesus, desculpa.

Dos Arcos a Ponte de Lima

Fui ao Norte com amigos. Éramos cinco. E surgiu-nos um tempo de encomenda. Eu a pensar em frio e uma primavera estival (Aristóteles, Aristóteles, não é só nevar no verão, olha lá) a assolapar-nos as ideias, os poros a resmungar suor por todos os lados, os meus braços aflitos de roupa, num cruzar de amuo, então?! E eu sem ideias novas (nem uma blusinha), a pensar que despir-me era apetite impossível e a puxar de um chapeuzinho azul todo dobradinho no fundo da mochila, comprado há mil anos na Marks and Spencer e toda a gente a olhar não sei porquê, que é arcaico mas me assenta lindamente (sou de enfiar barretes).
Não foi uma viagem de boas conversas, mas de boa comida. Para o estômago. Para os olhos. Sobretudo os meus olhos agradecem o colírio extorquido à carteira já de si minguada. Mas tenho que dar  uso à vista. Treinar-me na beleza das coisas. Ou soçobro. Caio redonda em qualquer inferno dos muitos que nos rodeiam. Não que tenha ainda muito por fazer. Mas porque preciso. E a primeiras necessidades há que acudir como a um fogo. E pronto.
Muito antes do chapéu da Marks and Spencer tinha estado nos Arcos. À boleia de uma amiga e dos pais. Sou-lhes grata por essas férias que me foram primeiras. Tinha quase vinte e um anos, já trabalhava e estava sem dinheiro. Ainda assim, a família da minha amiga aceitou carregar o contrapeso. Embora fosse bastante diferente da minha, quanto prazer me vinha de observar a mãe dela! Admirava-lhe os cuidados com a filha (única), o pequeno almoço na cama e que eu nem sabia que existia, o enxoval que também desconhecia, os cuidados à mesa como se ela uma criança (só os pais vêem e gostam do lado de nós que não cresce). Parecia-me então que a mãe era uma espécie de sombra para todo o exagero de calor. Que eu perdera. Nós (eu e os manos) tínhamos, por acasos do destino, ficado expostos ao sol, qualquer que ele fosse. Não sei se já me habituei a esta ideia.
Passados uns dois anos, trabalhava há três, fui com a mesma amiga passar férias a Giela e voltei aos Arcos. As duas. Por conta e risco próprios. Foram muito engraçadas essas férias de tomar banho e lavar a roupa no rio, a experimentar um lugar tão retardado que o meu sítio alentejano devinha poço de civilização.

E agora, de novo, os Arcos e sua gastronomia de excepção. E o tempo parado em Ponte da Barca. Tão bonita e igual de casas e ruas, o sol a entrar-lhe pelas esquinas travadas de panos roxos, sinais das estações da Paixão de um Deus que aceitou morrer por nós. E o vinculativo progresso de Ponte de Lima. Onde o CDS pontua esmero e arranjo e as refeições são caras e fulgurantes.

As Violentas Mãos da Vida

Nos vidros, percebem-se os passos soturnos da chuva, dedos macios a escorrer lágrimas de peitoril. E quem atente, sentirá a raiz das casas a agarrar às fundações, resistindo ao abraço ventoso e sem segredo, esbulhado de delicadezas, que se apraz em perturbar o breu. Corre em rajadas aflitas, percorrido não se sabe por que tormenta vingativa e desvairada. Passa a esguedelhar árvores e atira por terra flores temporãs, iludidas por uma aberta de calor. Se fosse possível escutar o silêncio que vive por debaixo dos silvos do vento, trazíamos à conversa os olhos cegos dos animais, corpos encerrados em si, focinho com cauda, fechados para balanço. Os sábios animais! Deixam a natureza à vontade e retiram-se incomodados, a sofrê-la. Esperam que se gastem uns nos outros os maus momentos, o medo involuntário a estremecê-los de membros, órbitas aterradas alargando por dentro da pele. E ficam ali. Quietos. Transidos. Os animais não suam frio, uivam por vezes, na dor sem lágrimas que lhes pertence. Inconscientes de ela haver. Uivam a dor do mundo com seus olhos tristes que não sabem que são tristes. Dolorosos. Não viste, riso de fonte, mas também fui novelo quando partiste. Oh, bem sei, não partiste. Contudo, flor de ausência, também não ficaste – és e não és, como diria Heraclito, o obscuro filósofo -, que não te sei lugar ou morada. Esvaneceste. Escrevo-nos, repara. A ti e a mim. Para deixar a quem - perguntarias na tua lógica natural - se a ninguém importamos e a nossa história é banal. Mas foi um banal raro, reconhece. E o mundo é efémero, o  importante surgiu da banalidade; escrevê-la é o que posso, que outra coisa não sei. Quem sabe um afilhado, uma sobrinha-neta, alguém, se demore nestas páginas e, quando enfim o tempo dos outros nos limite, o mundo possa entender. A história não se diz nunca no presente. Podemos ser uma marca, um risco colorido na paisagem de carvão. Um arco-íris. Dizias, vou morrer gasosa e faço casa no arco-íris; passo um mês no azul, outro no anil e depois logo se vê. Quantas pontas soltas em “logo se vê”. Quem sabe, andas agora a entrançá-las…

            Perdoa, mas desde sempre me parece que andámos juntos na escola, te ensinei a rodar o arco com uma varinha fina de gancho na ponta, a mão sobre a tua a temperar-lhe o modo e a força. E ele bambo de início e depois a criar equilíbrio, rodando amparado pelo arame, enquanto tu, saias ao vento, corrias o contentamento de seres capaz. Cá de trás, eu a observar-te, calções de peitilho, mãos em passeio inconsciente nas alças de pano, orgulhosas de ti, duvidando se irias embicar o arco na esquina do monte ou te fugia o gancho e ele cambaleava bêbado de fraqueza até tombar em balanços de redondo contrafeito. Imagino que vezes sem conta joguei o pião, o aparei e o passei rodando da minha mão para a tua, tão pequenina, num aviso de apára, apára, estica bem, estica-a bem senão ele não se aguenta. E tu, toda concentração, a esticar os dedos até ao limite e depois a torceres-te de comichão e riso nas voltas cada vez mais lentas e rombas que o bico te experimentava na palma, até que o brinquedo te escorria dançando, entre o anelar e o indicador, e caía no chão quase sempre morrendo do salto. E o teu, oh, contristado.