terça-feira, 26 de novembro de 2013

Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves

Somos com as coisas como com as pessoas, se não haja apresentação, passam por nós ou nós por elas sem quid, jazem submersas no inomeado, essa panóplia nebulosa de mundo que existe em nós potencialmente, fora da actualização  efectiva do pensamento. Um possível. Por estes dias, actualizei aquela casa de esquina, números 6 a 8 da Rua 5 de Outubro, mesmo por detrás da maternidade Alfredo da Costa. Posso ter ali passado antes, mas não me existia. Retirei-a do mar potencial onde boiava cinzentamente. E agora existe-me a esquina e cada cotovelo da casa, existe-me o proprietário e seu gosto sóbrio, existem-me os vitrais e sua beleza de borboleta da primavera, cativeiro de olhos e alma que ali sonharam vezes inúmeras. A Arte Nova tem jeito de asa, qualquer coisa de vôo no estilizado das curvas, na atenção às minudências, das varandas de sacada aos frisos de azulejo, da entrada romântica à dinâmica do sobrado interior, do mar de luz do atelier planeado por Norte Júnior e primeiro prémio Valmor, ao magro corredor  onde os modelos se trocavam.
Entra-se com o maior respeito numa casa que foi habitada e vivida. Subidos os poucos degraus da entrada traseira, acorre-nos quem o teria feito mais vezes, criadas de dentro e de fora, governantas, comerciantes e moços de entrega…. lufa-lufa de trabalho. E, na entrada principal, mais de apetite e romance, senhores enluvados a passear conforto em seus abafos de inverno e sapatos de pele. Ou na pureza clara dos linhos de estio, o sombreado agradável da palhinha italiana a cair sobre o rosto das damas a que as sedas parisienses e o ligeiro da brisa desvelam curvas virtudes. Não tive notícia acerca de algum casamento de Anastácio, antes me pareceu um celibatário com boa mania de colecionar obras de arte. Médico oftalmologista. Abastado. Viajado e erudito. Bonito e de refinado gosto.
Mas a casa sem raiz de celibato. Mesmo que de refinado gosto. A casa em sua pose feminina, num desmentido de suave clareza. Olhe-se do exterior ou do interior e tudo nela são pormenores de família com seus amores que crescem e minguam ao sabor da vida, um quê de permanente e inamovível no ar. E, a sobrevoar o bom gosto, palpa-se a preocupação com a luz no enquadramento e disposição de divisões e janelas, sempre no rasto do sol. Perguntei o que depois fui descobrindo na viagem à sua história: foi mandada construir pelo pintor José Malhoa que participou na feitura com sugestões e pedidos e ali viveu até à morte da mulher. Depois disso, a fazer-nos lembrar aquele poema de Pessoa acerca de uma boneca que teima em não  morrer com a menina e espreita nos rebordos das gavetas fechadas, desgostoso, não suportando continuar a habitá-la, Malhoa não arrisca e coloca-a em venda. Dois anos depois da primeira venda foi adquirida pelo coleccionador Anastácio que a habitou até à morte e fez do atelier do pintor o seu museu privado. Admite-se que o intuito de a doar ao estado português, na condição de casa-museu, já então lhe germinasse o espírito.
E assim, passear na casa é viajar por dentro do gosto de Malhoa e de Anastácio. Ambos apurados. Mas o meu pendor para casas e sua inalienável unicidade, prefere Malhoa, António Ramalho e o arquitecto Norte Júnior, que a criaram e transformaram algo tão prosaico como um lugar de habitação, num nicho de beleza. A Casa-Malhoa, ainda que despida, seria linda. Pena não estar conservada como merece. Pena que Portugal seja tão mau tratador do seu património. As casas são femininas, frágeis mesmo se aparentem robustez, em luta até final pela identidade. E pouco lhes basta para sorrirem na paisagem.
A que árduos trabalhos nos entregamos que tanto nos desviam do passado que ensina? A que despautérios cedemos quando negligenciamos o que é de respeito? A casa está ali. Ainda airosa de cintura, mas já de chinelo no pé, sem manto ou véu, os laços do vestido secos de dar dó, uma seiva rosada ainda a esvair-se do pulso breve. Tão bonita em sofrimento grácil! Tão bonita que apetece uma noite carregá-la, despi-la de velharias, dar-lhe banho, alimentá-la. E ir de manhã, pelo cedo dos galos que já não cantam, a replantá-la em seu esplendor, na mesma curva de estrada.
Mas Anastácio lá está na sala museu, pintado por Malhoa, plácido e tranquilo olhar verde que reina sobre a paisagem. Junto às suas pinturas, Silva Porto - o único português que encontrei no Louvre -, Columbano, António Ramalho e mais pintores naturalistas. E estão parte dos móveis que adquiriu, das porcelanas que carregou de variados lugares, os contadores, chaises- longues, oratórios…

Em seu romantismo de bolor e tempo, a casa recebe todos . Que, à superfície de seus segredos e mistérios, se julgam substância sua. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Setúbal

Setúbal tem a patine das cidades que envelhecem. Os anos e o pouco trato despiram-na de estolas e glamour, impediram-lhe luzes de festa. Perdeu a coqueterie dos enfeites e pouco nela lembra o êxtase dos tempos em que ressurgiu em juventude esfusiante, sentada em seu dossel de mar e serra. Pronta para sair em donaire e passeio pela Luísa Toddy, com seus recantos de habittués, onde o batom e a laca de damas friorentas pontuavam com estudantes e intelectuais em mesas de obrigação, sem mistura. O leve debicar delas, a bordejar vermelhos nas chávenas, alternava com as espartanas bicas deles e o longo cruzar da ganga em pernas de invasão. À proximidade, os poros arrepiavam por detrás da transparência das meias, em veemências de desejo, deixarmo-nos tocar pelo nervoso da tíbia. E as damas escandalizadas por fora, a desviar-lhes a rota, que é isso, são comunistas, não têm maneiras. E saiam-lhes conversas baixas achegadas às golas do casaco, enquanto as pernas um desvio, a cruzar o lado inverso, a saia a subir um nadinha sem que uma mão, o ínfimo de um gesto, a descê-la. Mas os olhos. Os olhos que eram farpas,  aquela fina ainda não tirou os olhos desta mesa. Devemos ser um grande filme, é todos os dias o mesmo. E as namoradas de longos cabelos e cara lavada viravam-se nas cadeiras e olhavam a sua serenidade de senhoras bem-postas, mulheres de médicos, empresários, gente que tinha de seu. E rápido desistiam. Era outro mundo, paralelo ao das pequenas Evas proletárias, sem tinta ou creme.
Na aragem do dia, a luz clara do Outono adoçava a cidade, tornava-a familiar e saudosa, ensimesmada em seus vagares quotidianos. Setúbal entorpeceu, pensou. Há um desânimo que lhe corre pelas ruas, um cheiro de velhice conformada que emana dos canteiros de flores, uma tristeza vivaz no corpo das gentes. Deu mais uns passos, hesitou em tomar a rua do Central. Que povo o preenchia agora? Haveria ainda em Setúbal o apego familiar aos cafés, as mesas cativas de grupos, que se procuravam da entrada a ver quem já tinha chegado. Quantos encontros combinados ali, comícios e estratégias discutidos à exaustão, a Prazeres impaciente a bater os protectores das botas caneleiras no lajedo do chão até que o Abílio, é pá, cala-te com isso, está-me a entrar o barulho na mona, ainda sonho com soldados atrás de mim. Onde andaria essa quase menina que o esperava meio adormecida, a aguentar a nuvem de tabaco e todos os sonhos de revolução que tinham na cabeça; que saía para o nevoeiro a enterrar a boina basca e, queres vir lá a casa? E ele quase sempre a segui-la, na antevisão do barulho dos protectores se ajoelhava no ritual de lhe retirar as botas, embevecido nos pezitos minúsculos, a beijar tornozelos miúdos enquanto uns soquetes de criança eram afastados mansamente. E dos mistérios do amor surgia um si mesmo terno e desconhecido e uma Prazeres inédita.
Animado de recordações, o corpo alongou-se em decisão, reivindicou, "vou visitá-lo. Quero ver o ambiente que tem agora, o que lhe fez o tempo". E meteu rua abaixo até ao Central, a contar as lojas que sobreviviam. Mas a rua desintegrara. No lugar da enorme drogaria, a mais conhecida da cidade e com um ror de empregados, onde havia tudo para que as outras não tinham resposta, impava um pronto-a-vestir barato, e lufadas de gente num entra e sai, mais a  fazer contas à vida que a comprar; à porta, uma carrinha  descarregava manufacturas em pressas de tempo é dinheiro. E, sem querer, olhando uma das montras, o brilho tricotado de uma blusa verde alface por quinze euros esmagou-o. Por detrás dela, perspectivou a quase menina que a tricotara em rapidez, um vaivém de dedinhos pequenos e ágeis no manejo das agulhas. Hipocrisia de alimentar estados de miséria maior do que se pode dizer ou magicar. Seria tailandesa, chinesa, o que fosse. Exploração. Que nojo, pensou, viverem os nossos preços baixos à borla deste submundo que engordamos.
 Mais à frente, um pronto a comer no lugar da casa de mobílias onde ele e a Prazeres iam sentar-se nos sofás em dias em que fingiam de casal interessado em compras. Andou uns metros e só o supermercado resistia às investidas do fast e do prêt-a-porter, numa concorrência de saco plástico e promoções que decerto lhe garantiram a longevidade.
A meio da rua, não resistiu e desviou a marcha. Meteu pela perpendicular onde uma noite se atrevera atrás da dama do Central. A de olhos garços. Quem sabe a vivenda ainda ali. Quem sabe, com sorte, o longo muro de grades em lança onde se encostara num repente. Atravessou a rua para o lado da vivenda, andou-a até meio e logo um sossego se sentou. Como naquela noite. As habitações lá estavam, namoradas pelas mesmas tílias que agora penduravam mais baixo, a tocá-las de manso e que de mais alto as penumbravam. E uma mão de saudade ergueu-se involuntária até ao verde das grades, os dedos sobre a friúra do ferro. A mulher materializada, os olhos sem espanto, a boca sem palavras, um abraço de enfim. O corpo sob o casaco a responder-lhe ao beijo que nunca foi capaz de lembrar-se como ou quem começou. Ele com a sensação de clausura consentida, o resto da rua excluído, a sentir nas costas o redondo dos ferros e no sexo a premência do desejo; o corpo dela a tremer, as exuberâncias ansiosas da pele a corpuscular. E depois o breve desfalecimento das pernas, o corpo a escorregar ligeirezas e a sua mão a afirmar-se-lhe na cintura, a segurá-la. Talvez que um encantamento de breves minutos. Os dedos frios sobre os seus olhos, um pedido murmurado, fecha, deixa que tos beije e a minha boca percorra o teu modo de ver mundo, que o melhor estará sempre dentro de ti. E ele obediente. Ela a esquadrinhar-lhe o rosto, lábio a lábio, em vagares que não eram de rua, a saber-lhe o gosto da pele, a demorar-se em paciências ternas sobre pálpebras e pestanas, um dedo a acompanhar-lhe a linha da sobrancelha. E nele foi subindo um prazer diferente, deu por si sem a Prazeres, a pensar, é esta. Mas quando entreabriu os olhos o portão já batia e só um vulto escuro a perder-se entre as árvores.
Andou até à vivenda. A mesma ainda. Talvez com pintura e portadas novas. Com crianças, que um baloiço e um triciclo entre os canteiros. Anos atrás, enquanto se arrumava de novo dentro do corpo, que isto do amor é de se deixar de ser quem se é, espreitara o hermetismo das janelas, a sua indiferença cerrada. E nem uma fresta de luz a esperançá-lo. Quanto tempo levara depois a ganhar a coragem de bater? Talvez uma semana a andar por ali feito vagabundo, atordoado consigo, zangado com o insólito eclipse da mulher, a repisar para si, "não pode ser, fogos que se acendem têm de apagar-se". Os carros da polícia a passarem vagarosos e o pedido de documentos, desanda rapaz que isto é propriedade privada, tudo vivendas particulares. E quando finalmente se reuniu em determinação, uma empregada entrada em anos, a arrastar chinelos, o senhor embaixador só veio passar férias, a senhora não conhecia Setúbal. Saíram na semana passada. Vou ter com eles mal esteja tudo nas malas - e num sorriso só de dentes -, eu fico sempre mais uns dias para levar a bagagem e arrumar. E ele parvo, a olhar benigno e invejoso quem podia voltar a vê-la, ser quotidiano com ela, assistir-lhe manhãs de birra ensonada, noites sem fim, dias monótonos e de festa.
Sorriu. Uma vivenda tão bonita e só lhe gostava um bocadinho de muro. E um pensamento repetido, cumulativo, a juventude é vingativa. E como se arrependera  dessa vingança de soberba egocêntrica. Não lhe quisera saber o nome. Não a procurou. Apagou-a. E ela, a despeito do casamento, de namoros, de filhos, mortes e casualidades, é de natureza contínua. Regressa.
 Inverteu a marcha. Voltou à rua do Central, a completar as decisões da memória, "tenho de ir ver o Sado. Depois do Central, só o Sado". Passou a rodoviária, ainda no seu posto, a dar por outro nome. Espreitou e um tudo nada de diferença. O mesmo cheiro repelente de dióxido de carbono à mistura com gasóleo queimado, as mesmas pessoas em pressas para onde, os mesmos transeuntes que são apenas olhantes de quem tem vida viajante. E depois, no lugar do Central, um banco de moderna instalação. E ele parado, a decepção a prender-lhe as pernas, sem a sua mesa, a imagem da Prazeres e do Abílio, sem a dama tão bonita e diferente das demais. Nada.

E foi cumprimentar o Sado.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Silvas

(continuação)
Servindo-se quase sempre das mãos ágeis do ti Lourenço, o tempo e o progresso finaram os mufedos de silvas. O ti Lourenço reinava no monte do cabeço onde nenhuma mulher ousava, excepto as nativas. Era pessoa estimada na aldeia por teres e haveres, já governo dos filhos – cada um herdara foro e casa. Invariável na sua camisa branca sem um vinco, o proprietário das casas do cabeço era parco em palavras e jamais lhe ouviram um grito. Adriana aprendera a reconhecê-lo por esses sinais inconfundíveis, o bigode e cabelo brancos a rimarem com a alvura da camisa; o erecto do corpo que passara os oitenta; a gadanha às costas em pose de rei que segura o ceptro; a passada larga e certa, segura. Gadanheiro de mão cheia, conhecia todos os pastos e buracos ou saliências do chão. Era o ancião da aldeia e recebia dos mais, respeito natural. Vivia segundo as suas próprias leis, sem as enaltecer ou exibir, mas não renunciando. E fazia orelha mouca à esporádica insistência de padres e freiras que, desafiando heresias, subiam a íngreme ladeira para lhe apregoarem as vitualhas da redenção. As respostas que então lhe ocorriam passavam de boca em boca e geraram a admiração contrita dos conterrâneos, que intrigavam na evidência do original.
O Ti Lourenço era o único velho que nunca foi chamado pela idade e também o único que sabia ler e escrever, a declarar-se, olhos nos olhos com a religião, maçónico e anticlerical. A estas palavras, as irmãzinhas da caridade que pediam para as missões, desciam a ladeira a correr como se peste no monte e nem chegavam a saber dos seus quereres solidários. Cá em baixo, ainda a ofegar, faziam um sinal da cruz incompleto e declaravam aos passantes que franziam o sobrolho a tais arrebatamentos em seres de calma e cinzenta natureza, aquela alma está perdida, é preciso rezar por ele, só Deus pode fazer o milagre. E assim se demitiam de salvar uma ovelha. Toda a aldeia conhecia as duas palavras mágicas do Ti Lourenço e, apesar da ignorância significante, os aldeões eram unânimes a admitir que o velho tratava a vida por tu. Sabia muito, diziam.
 Adriana memorizara-lhe os hábitos. Vestia sempre as mesmas cores, não se apresentava com a barba por fazer, pouco frequentava a taberna e nunca ali se embebedou. Manhã cedo, a mesma hora o encontrava já na Nacional, gadanha ao ombro, a ir pela taberna para um cálice de aguardente. Adriana sabia que ele entrava e, olha a minha vizinha! Vá, dá cá o mata-bicho ao vizinho. Bebia de um gole, deixava o dinheiro à conta sobre o balcão e seguia caminho, a parecer um cowboy sem pistola ou cavalo. Ia para a batalha com as silvas, atravessava o seu deserto e os desfiladeiros vegetais onde não se podia cair ou sequer desfalecer. Que não incluíam índios. Era só ele e a sua camisa incólume no meio dos silvados, a gadanha a um lado e a outro a abrir clareiras, a terra enrubescida, nua, em pelo, rasa do fato verde, num queixume miúdo, “tenho frio”. E os lagartos e cobras antes ocultos, obrigados a rastejar sobras de hibernação desconsolada, nasci neste lugar, tenho aqui a minha casa, onde é que vou agora. E a gadanha do Ti Lourenço suspensa, desço ou não? E, se a cobra das grandes, o velho partia-a em duas, não sofreu nada, foi de repente. E punha-a à beira de um caminho de sol, já não faz mal a ninguém, mas as cobras gostam de um  solinho.  A mesma sorte não tinham os lagartos, animais destituídos de arte, na bitola estética do Ti Lourenço. Aos lagartos o velho dava caça desabrida e remoçava em fúrias espadanadas da gadanha, se empreendiam de fugir para as partes intocadas do silvado. Morto o bicho, enterrava-o a constatar pesaroso e crítico, tão feio, bicho tão feio. E tudo isto Adriana acompanhou em algumas expedições pelas extremas das quintas. A mãe, não vás para longe, fica perto do Ti Lourenço. Sentava-se quieta num muro, a meia distância do silvado e com os pés levantados do chão, medrosa da floresta de animais que supunha debaixo das silvas. E só a voz lhe passeava as perguntas para cá e para lá. Maravilhava na elegância dos gestos de trabalho do Ti Lourenço, o redondo dos olhos a passear-lhe na harmonia da figura. Tantos bailarinos depois e nenhum aquele desempenado seco de tronco, nenhum no meio das silvas e dos agudos dos espinhos, em luta contra a loucura persistente e invasora da amoreira silvestre. O ti Lourenço era um herói. Que lhe dava mãos cheias de amoras, estas estão madurinhas, minha vizinha; vou deixar umas para a neta. E ela hipnotizada pela doçura negra a rebrilhar  que escorria da mão do velho para as suas, abertas em concha. A água crescia-lhe na boca a antecipar o momento de sentir a textura de pele fina que arredondava cetins em cada conjunto de frutos, quando ainda todo o sabor é futuro. Em seguida, a uma pressão ligeira da língua, o gosto doce e escuro da amora derramava-se, escorria sem intensidades particulares, talvez até um pouco insípido; apenas doce. Enquanto engolia o sumo, pensava, “como podem as silvas tão feias e espinhudas, tão de afastar gente e morder todos que se aproximem, alcançar tanto açúcar? Onde é que elas o encontram?” E perguntava. Mas o Ti Lourenço não respondia. Olhava-a e, és mais esperta que a minha neta, isso és. No fim do sumo havia pedacinhos, talvez  grainhas de amora, que disfarçava na boca e cuspia mal o velho virava costas; não queria ofender-lhe a boa vontade. E concluía para si, “não gosto nada dos ossos das amoras”.

E um dia o ti Lourenço, entre uma gadanhada e outra, lançou a novidade, há amoras que nascem nas árvores. Há árvores chamadas amoreiras que dão amoras muito melhores que estas. E ela pasmou com a natureza das coisas. (cont.)

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Silvas

No campo, nem tudo é bucólico. E menos no campo português dos anos cinquenta. Ali, as crianças aprendiam o mundo que julgavam rodeado dos silvados fechados e raivosos que em sonhos lhes rasgavam a pele. O campo transpirava silvas. Extremavam propriedades, zonas de ninguém - agora que penso nisso deviam ser de alguém – repletas de silvas a desmedir, ardilosas beiras de estrada a que os cantoneiros não davam fim, veredas que se cortavam sobre a sua exuberância e só atravessadas em companhia. Eram lugares de temor nocturno onde nem os mais afoitos passavam. O entusiasmo das silvas elevava-se a sepultar nele qualquer homem e, se alguém fosse apanhado na clareira de um silvado, não havia escapatória; em veredas que esventrassem silvados, só se fazia caminho de sol; e, de cada vez que nelas se entrava, tinham que se agarrar as silvas em jeito de pinça, cuidados de mãos a domá-las, enquanto o resto do corpo tentava a travessia. Junto à estrada nacional, no fim da descida, havia "na cova dos Silvas", um silvado célebre e denso, enovelado pela noite, onde a lua nova fazia aparecer lobisomens hirsutos e só antevistos. E, a coberto do anonimato, também se roubavam carteiras. Era uma zona dramática, lúgubre. A falta de iluminação eléctrica e um canavial do outro lado da estrada rematavam a claustrofobia do lugar e propiciavam maus encontros. Passei ali algumas noites a pedalar furiosamente na minha bicicleta sem luz, fugindo às multas e aos maus encontros, sem sequer me assomar à ideia o perigo que representava a minha circulação invisível.
Nesse tempo, as crianças brincavam todas juntas, sem a distinção entre brinquedos de rapaz ou rapariga. Faziam os brinquedos e brincavam. E conversavam. As brincadeiras propriamente ditas duravam quase sempre pouco tempo porque ele se consumia na construção do brinquedo, o que já era brincar.  Daí que as conversas encompridassem. E assim se ia aprendendo a espessura do tempo. Porém, era bom dar existência a alguma coisa: carros que logo deixavam cair as rodas, assobios que à primeira apitadela se rasgavam, matrafonas de trapo mal cosido que perdiam um membro no primeiro colo.
Por vezes, passeavam livres pelo campo, a despropósito. A vê-lo, no vagar de serem crianças. Mas vê-lo era subir a pinheiros, esperar o comboio junto à via férrea a que chamavam “a linha”, comer amoras, apanhar flores para enfiar nas linhas de alinhavar que as avós condescendiam em dar-lhes para fazer colares. E a noite surpreendia a aflição das mães, candeia na mão ou na beirinha da mesa a tirar picos de mãos e pés, que as silvas e os cardos não perdoam invasões. A tia Bernardina, mulher rija e de pouca meiguice, entornava o frasco do álcool puro sobre os arranhões ensanguentados, indiferente aos agudos da dôr, o que arde é que cura. Apesar dos ralhetes e dos tabefes, as primeiras amoras, ainda a encarnejar numa acidez de remédio que não presta, eram deles. E as segundas, a suplicar por entre o aguçado das silvas, olhos redondos escorrendo azeviche, colhe-me. E depois vinham apressados desarranjos intestinos, diarreias de, minha senhora ontem não pude vir à escola, doía-me a barriga.  Caganeira não era palavra de se dizer a uma professora.

Anos mais tarde, chegou a luz eléctrica. Ou só cresceram. Passavam nas silvas e os olhos mendigos, cativos das amoras, só uma. Mas eles crescidos, com pensamento feito, razoáveis, estão sujas de pó, fazem mal. (cont.) 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Dentro de Ti Ver o Mar

              Ainda há pessoas que não lêem?
            Em Portugal haverá poucas. A leitura deveio, em grande parte, digital. Não restrita a livros. Nem sobretudo. Mesmo a cusquice da net é escrita ou tem algumas palavras. E não é crível que, apesar da crise, haja assim tantos lares sem acesso à internet. Ou pelo menos sem um Pc. Não me querendo tomar como medida do universo, a minha opinião vale o que vale, não conheço nenhum jovem sem computador. E conheço bastantes. Poderá ter sido da campanha do e.escola ou de um movimento natural da sociedade, mas a cultura tornou-se, em grande parte, digital. A maioria dos nossos jovens usa o computador e gasta nele muito do seu tempo livre. E também os menos jovens, os maduros, os velhos, os assim-assim. E, ainda que em menor quantidade, também se escreve. Postar, comentar, deixar bocas venenosas, jocosas ou estereotipadas, sem pensar muito nem gastar o  tempo julgado urgente para buscar a novidade e a notícia. Contudo, penso que cultivamos a não notícia. Não me cabe meditar aqui sobre o possível português-achinesado das conversas, as faltas de concordância e etc. Mas, e apesar das múltiplas funções do Pc, a verdade é que ele tem um teclado a permitir-nos a comunicação escrita e o contacto com os outros. E que podemos utilizar tripla linguagem, audiovisual e a simbologia dos caracteres escritos.
            Portanto, parece-me natural que estes dados integrem o quotidiano dos romances que decorrem no século XXI. Apesar da força imagética, todos têm de se ancorar na realidade. Já quase não existem cartas, existem mails. E vem esta arenga toda a propósito do último romance de Inês Pedrosa, escritora que aprecio e incluiu o correio digital no último romance. E alguém me fez o favor de uma prenda. Da Inês espero coisas depuradas, palavras luminosas, como um dia tive a oportunidade de lhe dizer. Li "Dentro de Ti Ver o Mar" em dois dias, velocidade muito invulgar no eu que é mim. E, só por isso, a minha vénia à autora.
Agora que terminei, estou meia penumbrosa, ainda fora de um claro sentir. Argumentam, ah, e então a racionalidade, o pensamento? Sorry, as minhas raízes de pastorícia caeiriana empurram-me para as impressões e é sobre elas que o pensamento se constrói;  talvez eu sofra de impressionismo mental, que é como quem diz, empirismo em banda larga.  Posto isto, verifiquei que Inês Pedrosa mantém o teor de escrita. Depurada. Luminosa. Mas não é a mesma. Mudou. Podem dizer, cresceu; amadureceu; aborda questões reais e de premência maior; deixou de ser lírica. E talvez seja isso. Também. Deixou de ser lírica. Mas não apenas. Há uma carga excessiva no livro. Uma carga de gente demasiado utópica a viver problemas quotidianos. Um desentendimento relacional tão profundo entre vários intervenientes que chega a não jogar com as atitudes. Ali se faz um retrato de época. Foi escrito em 2012 e situa-se entre 2003-2004. E o facto é que me põe em causa.
É descrita uma realidade citadina centrada na eterna questão amor-sexo e percorre a pé coxinho - não por ser coxa a prosa, mas porque percorre devagar a relação, a demorar-se no passo-a-passo -  a relação entre um homem casado e uma fadista com origens insólitas e a que só o livro dá resposta (pretensamente, um dos motores da obra é a busca de identidade da cantora, a sua necessidade de se demarcar como um eu absoluto no seu ser único e individual). Aflora de forma secundária o problema da violência psicológica sobre as mulheres, das mulheres em regime prisional, dos conflitos gerados em colégio interno, do complexo gata-borralheira, dos cleptomaníacos e outros sobre os quais a autora discorre em brevidade. É também um livro sobre mulheres e o poder da amizade feminina. Mas não se enternece. Como se a Inês tivesse querido escrevê-lo de pé, a olhar em frente. E eu gosto da Inês ajoelhada, rendida, os olhos a descerem até ao nível de quem está e não aguenta o erecto; foi essa que conheci em “Fazes-me falta” ou mesmo em, “Fica comigo esta noite”. Dentro de Ti  Ver o Mar é um romance onde, no amor, o aguilhão do corpo toma conta de tudo, as frases ternas masculinas são eternas capas de disfarce e o desejo físico assume no feminino profundidades ruinosas. Destrutivas, sem nada ruir. O homem que nos surge como engatatão e bom pai de família é afinal um pilha galinhas que,  insípido, morre de ataque cardíaco. A mulher, essa, é o ser que, escorado na amizade feminina, tem mil vidas. Morre tarde, tem vários homens, filhos… E não cabem remorsos por se dar um filho a criar, não há decisões difíceis nem problemas de consciência, é tudo rápido e efémero. Sem traumas.

Mas, quem sabe, o livro esteja certo com o tempo e seja eu quem está fora dele. Que todos somos efémeros, mas existe em cada decisão humana uma inteira eternidade. E isso não encontrei, Inês. Faltou-me. Mas pode que só a mim.