sábado, 24 de março de 2018

Na Sala dos Fundos


 Há pela casa uma quietude que desarrumo mesmo se cuido de me fazer leve. Agora um chiar de tábua, logo uma queixa de caçarola, uma batida de talheres que lembra os casamentos na aldeia, um monte de gente esfomeada, facas e garfos em posição, a revolver ânsias para o assalto às travessas. Espreito o sótão. Há luz. Maria Irene quase não dorme e pouco come. Talvez tenha adormecido de luz acesa. A minha tão grande menina pequena. Que vive sozinha, fecha-se no sótão da casa porque os garotos a espreitavam nas janelas e fugiam de susto. Depois voltavam e traziam outros, o horrendo a atraí-los como luz em mosquitos. Tantos rostos colados nos vidros, eu a enxotá-los, xô, xô, xô, nunca viram, seus merdas. Pisavam o jardim, desmanchavam-me os canteiros, atiravam pedras aos vidros para que assomasse às janelas, montavam guarda à casa na esperança de que saísse. E as conversas de rua em rua, um bicho grande, grande, já é gigante. Que este viu, que aquele viu, que o outro viu. Por mor destas malvadezes, agora deixo-lhe a comida num tabuleiro e bato à porta a avisar. Desgosto que tenho por não me querer ver! Eu que andei tanto com ela ao colo e que vim para a família Tavares ainda eu e a mãe garotas. Crescemos as duas na mesma casa, cada uma para seu lado, eu no serviço e ela nos estudos. E, mal casou, viemos para aqui. Trespassada como negócio, um aviso sem pedido de opinião, “arranja a trouxa que segues com a menina para a casa nova”. Esfregão para todo o serviço, desabafos também me passaram nas costas. É vezeiro numa criada, vivemos dentro de vida que não é nossa e gastamos corpo e tempo a aplaná-la. Morrem-nos no colo os sonhos deles que a gente não se atreve a tanto. Ajudei a criar Maria Irene e muito rezei à minha santinha para mudar a sorte da menina. Que ela sim, podia curá-la,  cabelo e  unhas a crescer é de santo com valência.  Mas a minha santa de devoção,  entretida com a miudeza de cabelos e unhas, nem buliu com o problema. E a coitadinha num crescente de desmesura e aleijão que aquilo só visto. Santos destes também não interessam. Gente entendida falou-me de Santa Teresinha, que é condoída e ajuda os pobres. Ora pois. Mudei-me de terços e velas para Santa Teresinha que tampouco me fez caso, mas ao menos é santa escorreita, toda coradinha, com ar de boa pessoa e aquele raminho de rosas apertado ao peito. E busco-a na mesinha de cabeceira  que me faz falta olhar gente bem posta na tristeza desfigurada que reina paredes dentro.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Na Sala dos Fundos


Não há manhã em que não lembre a nossa casa. Penso no catre onde dormia a um canto da cozinha, no cheiro do lume de chão que rodava por ela inteira, um fundo de cinza morta a transpirar das traves do tecto e que me dava ao nariz o aroma caseiro. Aqui não há disso.  Está muito bem que ganhei quarto só meu, cama com colchão, mesa de cabeceira onde acabido as roupas de baixo, tudo dobradinho e lavado. Na última gaveta, arrumados mesmo ao de cima, os papéis do médico; por baixo, a recato, os restos de um namoro que não surtiu. Na parede do fundo, o meu guarda vestidos com espelho. Abrindo a porta, vestidos e saias que bailam à larga, tudo prendas da minha menina. E o casaco que não visto, sobra do tempo em que um homem engraçou e me achou bonita. O tempo que afeiçoei ao amor pegadiço.
Acordada antes do galo que mora no relógio, fico-me no quente a esticar os braços dormentes. Depois, abro e fecho os dedos que a artrite já entaramela e vou imaginando, nos longes da minha terra, as galinhas que galgam para o dia, uma a uma, sacudindo penas endorminhadas, passeio de cautela matinal junto à rede, as patas muito abertas a palpar o chão como se em terreno pantanoso, pisa aqui, pisa ali, olhos de botoeira desconfiada. Oiço os cães que correm soltos e raivosos de visitas, esganando-se a cada passante da estrada. Sei o trovão no tractor do Zé Custódio que  ruma aos campos do outro lado, além da curva do rio. Conto os passos surdos e desavisados do João maluco que corre a aldeia de ponta a ponta desde que nasce o sol, descalço ano inteiro, a planta do pé afeita aos caminhos e dura como sola. Sacudo as moscas que se esgueiram pelo intervalo das tábuas do sobrado e me azocrinam a paciência e apercebo o rumorejo do gado embiocado na loja, a inquietação a percorrê-lo mal a luz desanuvia. O sangue pede-lhe movimento e porta aberta, morre por andar nos cabeços a escolher iguaria. Revejo a sorna dos gatos que se atardam amodorrados, pardos novelos rentinhos à cinza borralhenta da lareira. E a altura de minha mãe a encher a cozinha na pressa sacudida dos tamancos, troc, troc, dedos de hábito compondo o avental sobre a saia comprida tanta vez enfiada ao avesso, uma trepidação sanguínea no fornicoque de braços e mãos. Ainda livre de ganchos e carrapito, a mancha escura do cabelo alastra na blusa. Faz lembrar a artista italiana que vi certa vez no cinema onde acompanhei a menina e o namoro. Já não recordo o enredo, ficaram-me só os braços dela a sacudir o ar, as mãos lá em cima numa nervoseira que só visto. A menina garante que é grande actriz e se chama Anna Magnani. Do que me lembro dela, vem-me à cabeça um vento forte que tudo leva  de vencida. Minha mãe, que Deus haja, também era assim um remoinho. Que apenas soprava baixo com meu pai. E nem sempre.
Depois, travo lembranças e despertador. Apronto-me em movimentos certos e de muito ano. Enfio a roupa de trabalho e rodo para o mundo da cozinha. 

Olívia


Tenho saudade a ser Primavera e ir Alentejo fora.  Não apenas de ti. Do caminho. De eu numa recta quase deserta, a penetrar no interior sem invadir, mansamente, como quem entra em sua casa após o dia de trabalho.  Saudade de rodear aquela igreja de barras  tão nossas, onde em dia soalhento me acoitei a descansar da torreira que esparramava sem dó pelo Largo, o ar numa tremura. E não parar. Continuar rodando, sabendo que me esperas. Não com o mesmo anelo. Nem semelhante. Quem sabe se isenta dele, forçada à minha presença. Quem sabe.
Nunca me visitaste. Não escrevias ou sequer respondeste alguma vez às minhas cartas compridas. Se ligo, raro me atendes. Ofereço-me para uma visita e logo prorrogas, adias, empurras. E eu mato-te por fora, que amizade assim é desvalor. E interno-me em penas e lamentos. A falta que tu me fazes! Claro que tenho mais duas ou três amigas, senhoras de sua casa e seus narizes, mulheres a sério. Claro que conheço outras pessoas. Mas não são tu. Não viveram comigo dois anos de sonhos a fio, um dia atrás do outro comendo na mesma mesa, estudando na mesma sala, dormindo no mesmo quarto. Entre nós duas a afinidade combatia a solidão que já então rondava a porta de cada uma.  A gente que vou conhecendo é outra gente. Mais expedita. Mas também mais distante. Gente cheia de “amigos” e trechos de conversa dispensável,  encontros que não são a sério e onde não acerto bem com o papel, mas deve ser de ouvinte. Gasto horas do meu tempo a ouvir dissertações e interesses centrados. Conversa solipsista, sem um raminho estendido, assunto que nos una. Perguntarás porquê. Porque sou carola, porque tenho esperança em sintonias que ou não existem ou desistem. Porque os outros não são gerânios à minha janela. Enchemos a boca com o valor da amizade; dizemo-la deep e ficamos na superfície. Que pena! 
Fazes-me falta. Mesmo sem cartas. Sem visitas. Sem corpo. És uma ideia em mim. Mas qualquer dia é Primavera, arrebanho-me por inteiro, pego no carro e meto pés ao caminho. A ver se abraço a minha ideia de ti antes que toda se(me) desmanche. Porque te preciso, queres o quê?! Pode ser que não queiras ver-me. Mas juro que finges na perfeição e pareces sempre contente de mim. Por favor, repete; torna mais uma vez. E hei-de sustentar a tua crença de que eu sim, sou feliz. 
Mas primeiro tens que atender o telefone. E depois tenho de te convencer à minha presença.