quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Os Anjos também morrem

Era Primavera talvez. Pelo ângulo de luz clara sobre os mapas ao fundo da sala, devia ser Primavera. Só nessa estação a professora, António Manuel, fecha a janela do fundo que o sol dá cabo dos mapas. E eles a imaginarem os mapas a desbotar os círculos concêntricos que assinalavam as capitais de distrito; quem sabe se uns dias ao sol davam conta das cidades a sério, as adoeciam; acontece com as pessoas que se enchem de dores de cabeça, espirros e febres. E pensavam isto enquanto o António Manuel, que era o Toino de toda a gente, se levantava prestimoso de orgulho a fechar a janela para o mapa não coalhar em doença citadina ou maleita de rios que não corressem; ou, quem sabe, estradas desaparecidas, os automobilistas num desconcerto, ontem inda aqui estava, e agora vou por onde?
 Seriam as nove e poucos minutos e todos empenhados em começar o dia. Os garotos, olhos enviesados ao quadro onde a professora, braço esticado, a saia e a bata a subirem um nadinha do lado do braço, escrevia a data em letras redondas e irmãs. Os mais faladores aproveitavam a aberta e conversavam em surdina enquanto mãos abstractas de cegueira rotinada puxavam das malas cadernos, livros, lápis ainda estremunhados; outros aplicavam-se na cópia da data, a caprichar nas pernas arqueadas das maiúsculas como se monges copistas ou mestres em caligrafia. Depois, a professora virou-se no estrado, pestanejou no flash de sol, sacudiu o giz da polpa rosada e macia dos dedos e uma poalha volátil e suspensa bailou no trapézio iluminado pela janela. Tão jovem! A luz avivava-lhe o mate da pele, desenhava o oval do rosto, bordejava o arco das sobrancelhas, notação de temperamento genioso. Um sombreado de folhas da mimoseira brincava-lhe, agora ao sol agora à sombra, no nariz arrebitado e opinativo de menina sem malícia a acetinar inocências matinais nos olhos ainda sem densidade. Tão bonita a professora das nove horas pontuais! Uma pequena deusa no seu etéreo. Ainda não carregada de erros e tabuadas, de hectares e ares, de e vai um - que não se compreendia minimamente para onde iam tantos números - e de noves fora nada, e de tantos eteceteras que a enfureciam rente ao final do horário, quando os olhos inquietos no minúsculo do relógio de pulso, um espelhinho redondo e impaciente retirado da mala com um estalido, testemunha da pressa em ser namorada. 
Deu um passo, desprendeu-se da luz e avisou com a idade que tinha e mais dez anos, vou fazer a chamada, não quero barulho. Mas, antes de chegar à secretária, a porta abriu de rompante e o Garcia no tapete, afogueado, mala na mão, as palavras a sobrar, grandes demais para o tamanho da escola, a caírem a trouxe-mouxe umas sobre as outras, minha senhora, morreu o irmão da Elisa. As crianças levantaram a cabeça e olharam o inadvertido lugar vazio da miúda. Que se ela ali, o Garcia a inventar, o irmãozinho em casa, atento a uma tampa, um gato, qualquer coisa. A professora coagulada, nariz no ar. O Garcia a emendar, atrapalhado do seu incorrecto, Minha senhora, dá licença? E ela, em vez de, sim, interrogou a parecer que chegava de qualquer lado, quantos anos tinha ele? E o Garcia, de rajada, importante, tinha três, morava mesmo ao pé de mim, morreu esta noite. - e com entoação de ponto final parágrafo -  Ela não pode vir à escola. A mestra a brincar de estátua, num movimento só de lábios, entra e senta-te. Ele a recordar os hábitos de ser aluno, Bom dia, minha senhora. A professora sem resposta - os professores podiam não responder -, decidida, já a caminho da porta pela fila da direita, façam a data, o nome e os abecedários; o grande e o pequeno. Vou falar com a D. Vitória. Não quero barulho ouviram. E a porta batida em exclamação, ui, aleijei a ranhura do trinco. Mas os passos da professora a afastarem-se em ritmo juvenil, quero lá saber da porta; queixinhas de trinco não me apoquentam. A sala uniu num silêncio de espanto. Era o momento do Garcia, a sua ocasião de recorte e destaque. Então, olhos redondos de insólito, que não tinha dormido, ouvia-se tudo na casa dele. E toda a atenção concentrada no rosto do Garcia, a ansiar-lhe a voz, os olhos em crescendo sobre a novidade, é um caixão todo branquinho e ele já tá lá dentro; hoje de manhã fui lá espreitar, por isso é que me atrasei.
Nenhum conhecia caixões ou morte, que as mães não os deixavam ir a lugares onde mortos pontificassem. Se alguém partia para o outro mundo, elas despiam a bata ou desatavam o avental, vestiam uma blusa lavada, tiravam cores e, maquinais, alisavam cabelos desavindos. Depois, embrulhavam-se em xailes escuros com cheiro a fumo e partiam sozinhas, a acompanhar. Que homens eram como crianças, não se avinham com mortos. Ali ou em tanto Portugal, a vida e a morte estavam à conta das mulheres. Os homens tinham de seu as tabernas, o trabalho e alguns mandavam nas suas mulheres tristes e desancavam-nas e aos filhos quando o mundo se negava (ou os negava a eles). E não se lhes sabia mais influência. 
Nas mulheres, operava-se a metamorfose. Saiam de suas casas sendo ainda as mulheres de fulano de tal, mães de cicrano e beltrano, senhoras do seu nome de baptismo. Porém, no caminho para o morto, não se sabe por que vertigem da tristeza, vestiam a alma de pena profunda e chegavam lacrimosas e doloridas, a lamentar todos os males. Abraçavam os vivos enlutados e sentavam-se lado a lado, em comunhão lúgubre. Compungidas. Funéreas. Podiam ter vinte ou trinta anos, todas pareciam cinquenta. Durante a primeira hora, faziam gasto da tristeza acumulada, rezavam por alma do defunto e empreendiam no pouco que vale um homem. Depois a vida vencia-as e surdinavam conversas por entre suspiros espaçosos. As mais afoitas lavavam o morto enquanto estava quente e enfeitavam-no para a função; traziam braseiros de inverno dentro de latas, onde queimavam alecrins discretos e punham-nos na sala com a devida distância do defunto; faziam café de cevada em chocolateiras de barro a que chamavam esquelateiras e distribuíam-no aos presentes; num olhar acabidavam a miséria, escondiam em trouxa roupas sujas  que depois levavam para lavar e, com alma de desembaraço, tratavam de orientar as crianças de casa pedindo umas às outras meias pretas, fumos de braço e laços de igual cor que as crianças, coitadinhas, não são para  lutos carregados. Mestres de cerimónia improvisados. A madrugada encontrava-as hirtas no posto, a repuxar o xaile ao peito, olhos pisados, cansadas da posição depois de um dia de trabalho. Imerso no dia a aclarar,o pensamento adiantava-se às horas e gritava deveres,  o gado, o cesto do almoço ainda por aviar, os gaiatos a ir para a escola “; e Deus queira que tenham feito as coisas de casa que a professora é nova, mas não é para graças e bate de ponta a ponta se bem lhe apetece”. Então, abraçavam de novo os do luto e saiam de xaile apressado, certas de serem elas, expurgadas da tristeza que deixavam enovelada na sala do velório, agarrada a cadeiras e bancos de madeira e mau sentar. Chegadas a casa, acordavam os seus homens, davam comer à criação, aviavam e deixavam almoços, mandavam os filhos à escola e iam para o trabalho.

Mas tudo isto as crianças ignoravam. Conheciam um certo ríspido no tom de voz maternal, garante de um dia sem corda para esticar. Ou um afago mais prolongado no cabelo, uma paciência triste no fazer da trança. Porque o cansaço de existir não é em todos igual. A sobrecarga do dia aguçava os ímpetos a umas e impregnava de ternura diluída em tristeza os gestos de outras. Nesses dias de coração turvo, os olhos das mães devinham pântanos e não eram navegáveis. 


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O Jantar

A malha com que a vida se tece não a sabemos. Estamos nela e tanta vez somos absortos nos nossos pequenos ses, habituados ao chão que pisamos, omissos do cansaço de quem o alisou e nos deu um caminho. E hoje que penso nisso, agora, neste momento, sei que pisava sobre mil dedos estendidos por mim. E quanto ignorei! Não vi os meus irmãos e primo esfomeados e mortos de cansaço de tanta ida à mercearia e a esperar que sobrasse jantar; não vi as minhas vizinhas a ajudarem com tachos e pratos e cadeiras e toalhas e sei lá que mais; não vi que a minha tia servia o ano inteiro os seus senhores importantes e vinha para matar a saudade e descansar. Fechei os olhos a não termos electricidade na aldeia e os franceses serem citadinos. Desliguei a ficha peremptória da doença que exigia a minha mãe, vamos embora, despede-te! E, felizmente, não me envergonhei da nossa condição de portugueses de fim de tabela.
 Contente e mesmo vaidosa da minha amiga francesa, não reparei em cadeiras desirmanadas e estranhas, pousadas a desábito, retraídas, a madeira a concentrar-se toda num afilar de traves que latejava, ai que aperto, falta-me a respiração; não notei o pasmo de pratos e talheres que não conjugavam, lado a lado mas desconhecidos, mediados pelo  artístico dos guardanapos de pano, os pratos a competirem nos desenhos, o meu é mais bonito, não, não, as flores são sempre mais bonitas e eu tenho um raminho fino no fundo. Não vi a admiração da cal a exclamar, o relógio de parede abismado, o olho pendular a crescer e perder cadência atrasando o invariável dos ponteiros, nunca vi tanta gente junta, falta-me coragem para bater as meias horas.  
Ao invés, apreciei a brancura de uma toalha desconhecida, dedos passeantes a agradecerem o algodão; desvaneci no enrameado cetinoso dos guardanapos que palpei a disfarçar a polpa do indicador na nervura da bainha, a memória avivando a vergonha da minha mãe quando na reunião das senhoras finas da igreja reagi à brancura do guardanapo exigindo em voz clara, mãe a rodilha? Quero a rodilha! E recusei conspurcar aquela alma limpa; então, uma senhora tocou um sininho pequenino e quando a criada entrou, traga lá uma rodilha da cozinha. – e para o pasmo vidrado da criada, enquanto as outras, dedos parados nas chávenas, o chá a inquietar-se em ondinhas duvidosas de não presto, num meio sorriso de batom cor-de-rosa que não entendi de todo -  É para a menina se limpar. A criada só o imperceptível de um trejeito, sim, minha senhora. Saíu e trouxe  uma rodilha limpinha na bandeja – o saco de transporte interno das criadas era a bandeja; cada uma tinha a sua. Aguardavam ordens frente à patroa, muito direitas, com ela virada ao coração, facto que sempre me impressionou -, deu-ma e ajudou-me com os dedos sujos da bolacha de chocolate, dá cá a mão que eu limpo-te. 
Afastei lembranças a teimar e fiquei estúpida a mirar as flores rasteiras que marcavam o centro da mesa, num pica flores que eu mesma comprara e não sabia utilizar. Então, foi-me subindo a satisfação de tudo estar tão bem que os franceses seriam obrigados a gostar.  Eles, esfomeados; eu e o meu pai, parvamente contentes.
A primeira travessa que a minha tia pôs na mesa tinha as broschettas que fez com o pão duro torrado à lareira e o nosso azeite, ervas aromáticas e tomate da horta, a que juntou o queijo da vizinha. Para mim, foram absoluta novidade e, quando ela me serviu, perguntei-lhe como comê-las. O conselho veio certeiro, quando não souberes, deixa-os comer primeiro e depois faz igual. Ora os franceses lançavam-se a agarrar nas fatias à mão. Fizemos o mesmo. Discreta, a minha tia ia entreabrindo a porta, a investigar o momento da sopa. Penso que os franceses não deram por nada, tal a atenção às broschettas. Então, quando começaram a mastigar mais devagar e a elogiar o sabor das entradas, surgiu uma sopa fumegante que ela serviu com a presteza alegre que lhe conhecia, deixando-nos terrina e concha. Não me lembro a que me soube aquela sopa. Mas em nada se parecia às de minha mãe. Era tão melhor que os franceses, sem excepção, repetiram; e tive de ir à cozinha buscar mais. A minha tia entre o alegre e o triste, coitadinhos dos gaiatos, já não temos sopa para eles. – e num desabafo - Dar comer  a esta gente é pior que sustentar um burro a pão de ló.

A meio da sopa, os franceses todos à risota. Quando inquiri a causa, o pai da Bernardette contou-me que tinha feito uma anedota à mulher e, entretanto, ela pedira-lhe que a passasse aos filhos. E foi a gargalhada francófona. Então, decidiu, talvez por delicadeza, contar-me a anedota que tinha feito e, julgo ainda hoje, se devia a um jogo de palavras que desentendi. Mas ri. Modestamente, claro. Nem o tema conseguira captar. Entretanto, o meu pai, desobrigado da conversação, comia os entusiasmados pitéus da cunhada, a que sempre elogiava a mão. Porém, o senhor solicitou que eu lhe contasse a graça. Virei-me para ele e, pai, o senhor fez uma anedota à mulher e contou-me, mas eu não percebi nada; só que sorri na mesma e eles pensam que percebi. O meu pai, colher de sopa a meio caminho da boca, parou. Levantou a cabeça. Na nossa frente, o bloco francês aguardava. Suspenso. Talheres sem bulir. Só a surdina do relógio, tic-tac, tic-tac. Então, o meu pai voltou atrás, mergulhou a colher na sopa, tomou balanço e soltou em bomba duas enormes gargalhadas que lhe estremeceram o arrepio e de certeza atroaram no completo do monte. A francofonia alegrou reabrindo galhardos sorrisos enquanto eu chorava de riso só de me lembrar do inteiro inesperado do meu progenitor, sisudo por natureza. Findo o momento hilariante e cumprido o papel,  o meu pai imbuiu em alentejana calma e  concentrou-se no conteúdo do prato. E os autores do incógnito humor retomaram a sopa, orgulhosos da harmonia de ideias, desentendidos da sua restrição a lábios e dentes. 

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Pregnância

As pessoas são intrigantes, obscuras mesmo se aparentam água límpida. Tanta vez indiferentes ao que as rodeia, alheadas do que não seja elas, relacionam-se com o mundo a desenrolar interesses e desinteresses. E assim condicionam o que e o como de aprendê-lo.  
Hoje acordei e um dos meus eus a sublevar, enganado, uma lentidão de segunda-feira. Pedi-lhe que mudasse a folha do calendário. Adverti-o, já é quarta. Mas - tão teimoso! -, retorquiu-me com maus modos que coordenar com a segunda-feira nem sempre lhe acontece, que tem direito à natureza preguiçosa de segunda e lhe apetecia dormir, fingir de morto. Dizia-me isto e puxava a coberta para cima num movimento brusco de, "não me apoquentes, deixa-me em paz". Dei uma olhadela ao relógio e marcava as oito. Conhecedor dos meus hábitos, resmungava a virar-se para o outro lado, além disso, não há que fazer. Deixei-me convencer. Porém, triste madrugadora, encarreirada em vigílias a desoras e desábito de sonos diurnos, às oito e trinta não aguentei e sacudi-o, anda, vamos beber uma meia de leite, comer um scone. Sorriu-me num trejeito de boca preguiçosa e meia dormente, não sei se me apetece, quero ficar aqui para sempre, que maçada levantar-me. Ciente da necessidade de medidas drásticas, tirei-o da cama, enfiei-lhe os chinelos e amparei-o até à casa de banho. Depois, meti-lhe a cabeça debaixo do chuveiro, ensaboei-o e aclarei-lhe as ideias. Choramingou, não quero viver o dia de hoje, mesmo que não te importem as minhas preguiças paradas em dia de segunda-feira, não me apetecem meias de leite; queria não me levantar da cama, deixa-me regressar por favor.
Devo dizer que os vários eus que vivem comigo não harmonizam facilmente entre si. No entanto, começar o dia a recusá-lo, pareceu-me quase ofensivo e mesmo despudorado, todos sabemos que viver as manhãs é subida íngreme, exige. Estendi-lhe a roupa, veste-te antes que me ataque a filoxera e te atire da varanda. Um pouco mais tarde, o espelho do elevador garantia que competíamos com o dia em cinzentice – eu carregava no olhar umas bossas inauditas; ele, por detrás de mim, a esfumar em atonia e desinteresse.
Já na rua, dei-lhe o braço e atravessámos. Entrámos os dois e foi sentar-se enfadado, perna cruzada, enquanto eu fazia o pedido. Quando a empregada lhe pôs na frente o aroma da meia de leite em vaidade de enfeites e inchada de espuma, sorriu-me grato. Tirou metade de um scone e, à primeira dentada, a sua mão avançou para a minha sem palavras. A meio da refeição, o indicador a apontar a porta, o caniche não retira os olhos dos donos, repara – o cão, todo ganidos e súplica de olhos para a primeira mesa, repuxava a trela presa ao poste; avançava um meio passo e, meio esganado, voltava atrás e repetia tudo. Incessante e paciente. Isolado do mundo e da pressa de repartição no corpo dos transeuntes, enfiado na boia da relação aos donos.
No interior, a manhã reatava hábitos entre os clientes e a destreza jovem e inconsciente da funcionária que circulava entre as mesas, sorriso aberto, gestos em sublinhado de graça natural. Atenta, inquiria de cada um abrindo-lhe naturalmente a janelinha de casa, debruçada sobre a vida que trazia escondida no bolso. Olhei o caniche e o seu incansável e pensei que os cães ficavam à porta, mas as pessoas, essas, entravam inteiras. E entendi a razão de uma meia de leite ser ali outra coisa.
Olhei em frente e o meu eu devoluto impregnara, os miolitos do scone abandonados no tampo. Lá fora, o caniche, desimportado de ser ainda em prisão, subia enlouquecido de saudade pelas pernas do dono, num aparato comovente de mil anos de ausência.

E pensei, trivial, na necessidade de nos religarmos em gestos e interesses pequenos. Religião difícil, esta.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Palavras Antigas

Pelos dias sem sol e teus cansaços de flor
Pela palidez das tuas noites insones
Pelo cansaço exangue plantado nos teus olhos
Pelas tuas mãos, folhas mortas de trabalho
Pelo ricto amargo que ajudei a vincar no teu rosto
Pela doçura triste que te cresceu no olhar
Por tudo o que guardaste na intimidade
E não vestiste de exiguidade palavrosa
Pelo tanto que a vida te subtraiu.
Por seres antena doce e atenta à vida
Barco seguro onde navegámos dolentes
Por tudo isso, Mãe
Te beijo sempre incompleta
No impossível de amor Haver


Nota: Farias hoje 80 anos. Mas é loucura que o tempo dos relógios te exista, minha Mãe. Deixo-te a única coisa que te escrevi e ainda leste. Tenho certeza que ainda te lembras. Promete que só as pálpebras a engrossar.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Delicadezas Alentejanas

Nas terras pequenas toda a gente se conhece e hoje gostamos de comentar a entreajuda perdida, mas a verdade é que o Alentejo é uma região feita de pequenos núcleos desgarrados. Talvez pela dispersão das casas em solidão na planície, os montes aglutinam gente e não existe espírito de pertença a outro lugar comum; vilas e cidades são lugares de compras e passeio, mas não lhes entram no sangue. O alentejano campesino é uma extensão do monte e da planície solitária, herda-lhes o carácter de sobrevivência, a capacidade de sofrimento, a semimorte de estios sufocantes e a rigidez artrítica dos invernos.  Delírio de Van Gogh, a paisagem arde verão adentro, a oscilar na retina, resistindo ao inferno dos dias que se prolonga em noites sem um bafo, sob a escuridão abobadada de estrelas vigilantes que não ousam um sussurro. E no silêncio dos fenos, imaculadas, as casas dão as mãos e albergam famílias dentro de uma família maior: o monte. Diz-se, “vou ao monte do tio Eusébio, ao monte da tia Felícia”, ao “Monte Velho”, ao “Monte das Sesmarias”. E a  cada um sua lei e vivência, seus princípios básicos que os viajantes respeitam, boina que a mão torce calejada, se lhe pisam solo sagrado, seja rua ou vereda. É no monte que a comunidade existe; e há mesmo questões que só aí têm desfecho a contento. Esta pequena rede tentacular iguala todos os moradores em direitos e deveres, homens, mulheres, crianças. E um problema numa casa repercute em todas as outras.
Por isso, as minhas vizinhas sentiram-se na obrigação de ajudar a tomar conta dos franceses que observavam como seres superiores  - falar francês não era para qualquer, elas nunca tinham visto um estrangeiro em carne e osso, havia que aproveitar. O certo é que encontrei a senhora francesa em casa da minha outra tia, que, em excesso de decibéis, tentava entrosá-la na rede familiar. Não sei como foi ali parar, mas a madame estava muito atenta à irmã do meu pai, que sobraçava uma quantidade razoável de molduras - com fotografia – e me informou, radiante de perspicácia, temos estado aqui as duas a conversar, estou farta de lhe contar coisas. A minha prima a antecipar-se-me numa certeza fresca, a francesa não percebe nada… E logo a minha tia agastada, está calada, Natinha. Então eu não sei que a senhora me está a perceber?! Ora esta! Deixa-me a saia senão ainda apanhas. Ainda agora a senhora me disse, quando lhe mostrei o retrato do teu irmão, que também tem um filho chamado Filipe, não se está mesmo a ver que me percebe – e procurava o assentimento da francesa a abanar um sim com a cabeça inquirindo em tom maternal – a senhora está-me a perceber, não está? A senhora imitava-lhe o movimento de cabeça e logo a minha tia, estás a ver, estás a ver. A filha ria baixo e repuxava-lhe a saia, ó mãe esteja calada que a francesa não está a perceber nada, está a gritar para quê? Ela não percebe à mesmaDeixe-a lá ir jantar. E a minha tia convicta, Mau mau, queres ver que tu apanhas? Eu bem sei o que estou a dizer. Vai lá buscar o retrato da Lurdinhas vestida de noiva e do tio Luís.  – e para mim – A minha Natinha é parva, a senhora está a perceber tudo; agora não podes levá-la que já só falta a Lurdinhas e o Tio Luís, já lhe mostrei os meus filhos e mais família – e a esticar o pescoço para o corredor  – Ó Natinha, despacha-te lá e traz o retrato que está em cima da cómoda; olha que é esse mais bonito onde ela está sozinha com o ramo na mão. A minha prima entrou na cozinha a balbuciar qualquer coisa, mas a mãe arrancou-lhe a foto e logo para a francesa, Esta é a minha sobrinha Lurdinhas, filha da minha cunhada Anunciação – a senhora abanava a cabeça sem entender; e ela a ponderar baixinho, o olhar ensimesmado num canto da cozinha - como é que eu lhe hei-de dizer quem é a tia Anunciação??! – a minha prima contínua, ó mãe não faça figuras tristes. E a minha tia a endurecer a expressão, virada para mim, esta gaiata é mesmo parva, a senhora percebe tudo o que eu lhe digo. – impaciente para a filha – Não te mandei trazer o retrato do tio  Luís que Deus tem? Vai lá buscá-lo que eu assim explico melhor. E para a senhora, o indicador a passear no vidro da foto da Lurdinhas, não fosse haver um pozinho fino que desfigurasse a noiva, esta é a Lurdinhas, filha da Anunciação e do meu irmão Luís que Deus tem – num aparte raciocinante – ai, isto é que ela não percebe de certeza –. e numa decisão súbita –. Dá-me lá aí o retrato do tio, Natinha. A minha prima a estender-lhe a moldura de má vontade, ó mãe…Mas ela enfileirada num caminho sem regresso. Decidida. Com um retrato em cada mão e aos gritos para a mãe da Bernardette, enquanto a filha, meio a rir meio com medo de apanhar algum sopapo, não grite tanto, a mulher não é surda. A minha tia indiferente,  a brandir o retrato do irmão, este é o meu irmão – e elevava-lhe o retrato à altura dos olhos -  é pai desta – erguia a foto da noiva -. Morreu! - concluiu num grito sincopado. A minha prima refugiada na porta da cozinha, com medo de um enxota moscas, mas perdida de riso, a mãe não vê que ela não está a perceber? A mãe à procura de gestos e eles sem aparecer; e logo para mim, ó Beatriz como é que se diz que ele morreu em francês, diz lá tu à senhora. Eu disse. Meia duvidosa, ela já sabe que o tio morreu? Descrente de mim e já na posse de gestos novos, voltou a gritar, morreu! E deitava a cabeça, olhos fechados, nas duas mãos juntas e horizontais. Não contente, gritou ainda, por via de dúvidas e a completar informação, atropelado por um tractor. E para si mesma, como é que isto se contaAh, já sei. E desatou a fazer ruídos de motor como criança pequena que brinca com carrinhos, enquanto, olhos cerrados, passava com ímpeto os punhos fechados pelo tronco, abaixo acima, abaixo acima. A Natinha chorava de riso e eu idem. A francesa, muito séria, tentava descodificar a mensagem. Quando abriu os olhos, a farsante improvisada sorria, satisfeita com o desempenho e crente no poder da mímica.
Não arrisquei perguntas e fui procurar-lhe o marido, a minha tia a garantir-me segura, fica descansada que eu já levo a senhora, ainda lhe vou mostrar a casa.
Encontrei o Francês mais velho junto ao Mercedes, com o meu tio que pouco palrou ao longo da vida, a comentar apreciativo, isto é que é um carro, sim senhor!  - e dava palmadas na carroçaria. Depois, fazia uma pausa admirativa e, enquanto conferia uns pontapés nos pneus, gabava, belos pneus, olha para o rodado que fazem, novinhos em folha. Isto é que é...E o senhor, humm…humm..hummm…
Ficou no segredo dos deuses a impressão que deixámos nos franceses, mas se eu visse um homem às palmadas e aos pontapés no meu automóvel,  – mesmo que pequenos - julgaria que tinha juízo mole.
A leste destas reflexões, levei o francês para a mesa onde a minha tia, solícita e segura como nunca a vi,  sentava a mulher, a Lurdinhas ainda a espreitar-lhe por debaixo do braço, no eterno açucarado das noivas. O meu pai, já sentado e sorridente, exibia certo ar de italiano marialva, os suspensórios dos domingos a ressaltar no alvo da camisa e o cabelo de depois do banho, risca ao lado, o arrepio invisível. Tive orgulho nele. Estava bonito e jovem, não se parecia nada com o tal dos murros na mesa.
A irmã da minha mãe decidira que só a nós dois, lado a lado, era dada a honra de comer com os franceses. Eles, esfomeados e inteligentes, aceitaram de boa mente. Levantei os olhos para o meu pai e súbita me nasceu uma ternura; passei-lhe a mão no arrepio domesticado. O meu pai engasgou, então que é isso? E logo o arrepio tirou proveito do timing, desanuviou e espetou-se como de hábito. Eu, desculpe, pai. E ele, deixa, não faz mal
Entretanto, a minha tia materna, no seu  jeito de barco a sulcar águas, sorriso quente que não sei como um homem pôde desprezá-lo, trouxe a primeira travessa.