quarta-feira, 30 de julho de 2014

Impressões sobre Machado de Assis

CAPÍTULO de CHAPÉUS

A literatura brasileira interessa-me. Tem a sua prosa específica, seus requebros de mulata dolente, seus enredos de filosel. Mas nunca tinha lido nada de Machado de Assis. Pelo nome, pareceu-me escritor português pouco conhecido. Como não investiguei, depois da leitura de “Capítulo de chapéus”, concluo que é brasileiro e dos bons. Bastante conhecido, portanto. Et…pardon.
A história desenrola o quotidiano de um advogado – Conrado - e sua esposa – Mariana -  e mete um chapéu pelo meio. O Chapéu. E pareceria uma simplicidade: haver um advogado com extrema dedicação ao chapéu de todos os dias – um chapéu leve e baixo – que o faz parte da indumentária, que não o dispensa nunca nos seis anos de casamento. E, supõe até o leitor, seja conhecido pelo chapéu que usa. Ora, certo dia, o sogro resolve instar a filha sobre o apego do doutor a seu chapéu, convencendo-a que não é adereço digno de um homem da sua posição. Cabe a ela resolver a questão levando-o a mudar para uma cartola, um chapéu alto, mais consentâneo com o estatuto de causídico. E a história vai-se desenvolvendo numa quase linearidade onde a caracterização das personagens emerge e surpreende.
Aprecio escritores que enfatizam a caracterização das mulheres e se prolongam na descrição, porque assim no-las trazem à mente mais fortes e seguras de quem são. O que mais me agrada em Machado de Assis é essa segurança na personagem. Não se entenda por isto que o escritor construa personagens seguras de si. Não. Ele faz mais. Descreve-as de tal forma que elas não nos surgem dentro dos seus defeitos, mas imersas na personalidade que lhes pertence e de que não abdicam. Vivas. Vejamos por exemplo Mariana, a mulher em cujos traços se demora. Mariana é a iaiá do marido –  pensamos de imediato numa menina mimada -, alguém que detesta sair de casa e é a monotonia feita pessoa. Contudo, Machado de Assis, tal como lhe retrata o carácter amante de hábitos, abrir sempre a mesma janela, manter a desordem de livros sempre igual, ler sempre as mesmas três obras…constrói a personagem sobre eles, fá-la real. Mariana não tem filhos e apresta-se em cortinados e franzidos, pormenores caseiros de quem detesta surpresas e inesperados. Mariana cria dentro de casa o seu mundo de felicidade. Poderia até ser como nenhuma mulher, mas é entendível como pessoa e torna-se, ao longo da história, aprazível, facto mediatizado pelos acontecimentos que a vão definir. E é por esta compreensão de Mariana que o resto da leitura e da história tem sentido. Senão vejamos: Mariana tem uma amiga que é o seu oposto – é natural que ao seu quieto comedimento agrade a expressividade um pouco amoral de Sofia –. Procura-a depois que o marido lhe nega a mudança de chapéu, e, um pouco chocarreiro, afirma ser tal adereço um prolongamento da cabeça existindo entre ambos uma exigência de ordem metafísica e mútua conveniência que não pode desmanchar-se. Conrado, que até aqui era para o leitor um simpático advogado, devém-nos agreste, desleal, quando, para confundir a mulher, enrola a sua opinião em ideias e conceitos que ela não domina. E é como se o leitor fique de pé atrás com o doutor.
E Machado de Assis pontua ao reduzir os homens que as duas amigas encontram durante o passeio aos chapéus que usam, o problema de Mariana constante, ao leme do episódio.
Se alguém pensou que Mariana, aborrecida com o marido e seguindo as pisadas de Sofia, vai flirtar com o antigo namorado que encontra de chapéu alto e lhe estende a oportunidade, desengane-se. Não é questão de honrar princípios, de amar o marido, de não parecer bem. É, mais uma vez, o carácter a determinar-lhe o ânimo. Mariana aborrece-se de morte fora da pacatez de sua casa. Encontra a conversa do ex-namorado falha de interesse, não o vê como hipótese de diversão sua, antes um empecilho. Na rua, deseja o manso estar das coisas caseiras, o sossego do espírito no gineceu em vez do corrupio de gente a que assiste. Quer no dentista quer na Câmara dos deputados, sente-se pouco à vontade e começa mesmo a arrepender-se da zanga causada por um chapéu, interroga-se sobre o seu ter razão, a princípio tão evidente. Descrê das opiniões da amiga que antes pensava sábias, autênticas receitas de como domar um homem.
Finalmente em casa, minada de incertezas, resolve aceitar o chapéu de sempre, não voltar a teimar na mudança. Porém, Conrado entra-lhe em casa com um chapéu alto.

O melhor é irmos todos deleitar-nos com a prosa caligráfica de Machado de Assis. O homem merece.

domingo, 27 de julho de 2014

Fundação Oriente (2012)

Quando o calendário nos não ensina, há factos ressuscitados. Assim me sobressalta a exposição de pintura a tinta-da-china que visitámos na Fundação Oriente. Era uma tarde solitária e antevíamos um desenho de recorte negro, perdidas em recordações de tira-linhas, canetas de tinta-da-china e borrões desajeitados. Mas surgiram-nos bucolismos singulares em ressaltos de cor, minúcia chinesa a esquartejar o real. No papel, sublinhado e assentido, lemos que o artista chinês deve “encarar a natureza como seu mestre e incorporar os seus sentimentos na sua criação”. Num espanto de viés, quase de ofensa, deambulámos a demorar-nos nos quadros. Dir-se-ia que, neles, a pintura oriental se fez ternamente picuinhas, a quebrar-se em traços pequenos que acompanham o esmaecer de pétalas e sugerem a doce fundura do lar. Abstractas, notámos estas diferenças do espírito a suspirar por Cézanne e Degas, Magritte e Van Gogh. Não é um estilo diverso, mas uma alma outra, os mil pormenores dos traços a lembrar o cheiro a poeira nos livros antigos ou a sugestão de dedos calosos e pacientes em vagares de amostra rendada, a nossa estranheza contínua, a bater o pé por fugitivos códigos de leitura. Então, ainda não despíramos o espírito do hábito, dedos de espanto na textura do papel de arroz.
Em seguida, atentámos nas denominações dos quadros, “A beleza permanece graças à brisa aromática” ou “Quem deixou florescer as montanhas e florestas?”. E ainda, “edifícios de Terra na Hakka numa manhã tranquila”. E perante estes títulos fica a gente indefesa, incerta…será um princípio de romance ou uma questão religiosa e filosófica?! A  designação das nossas pinturas diverge. Lemos por exemplo, “Rapariga com livro”, “Guernika”, “Mulher sentada”, “Rapaz com cachimbo”, etc. Ao laconismo do resto do mundo os chineses opõem um pensamento completo e palavroso, que sugestiona com cheiros, sentimentos, e um ambiente teluricamente pacífico. Enquanto assim andámos a comparar, pouco vimos. O conhecimento carece da nudez indefesa de quem conhece, é preciso estar nu de espírito, em ingenuidade primeva e receptiva, atenção bíblica que nos faz terra fértil à boa semente.
Mau grado tudo isto, acometeu-nos um desconcerto de riso parecido ao que nos agarrava quando víamos telejornais (não me lembro de nada, coisa nenhuma mesmo) na travessa de Santo André, onde tudo nos gargalhava. Até sermos expulsas da sala, bem entendido. Frequentávamos o Magistério Primário e teríamos entre 17 a 19 anos e, felizmente, tão pouco juízo!!! Ali, numa fundação toda chinesa, as nossas freirinhas presentes, imagina! Compenetradas do estatuto, sérias no hábito preto de andorinha – sempre me pareceram andorinhas, queres o quê; as meninas da Casa Pia numa raiva desabrida, corujas! Morcegos! E depois, não sabendo como alvejá-las melhor, uma intermitência final, à queima-roupa, há um túnel que parte da dispensa para o convento da Cartuxa…Mas não me buliam os dichotes das meninas, via-as andorinhas eternas, voavam. Sentávamo-nos junto delas e os olhos da irmã Beta a pedir contenção; as restantes, imóveis, lábios rectos, um ricto de semi desaprovação a enrugar nos cantos, olhos fixos, num estranho desejo de notícias - é evidente que só assistíamos o telejornal porque não nos deixavam ver outra coisa. Começávamos compenetradas, a prometer uma à outra, hoje é que é, não nos rimos. Porém, mal o locutor cumprimentava, logo umas fungadelas. Em seguida, e ainda animadas de bons propósitos, havia um período de acalmia em que, cabeça baixa, nos dedicávamos  controlar o riso sem ouvir ou ver o que fosse. E, por qualquer razão que até suponho inventássemos, terminávamos numa oscilação de costas, todas dobradas para a frente, os olhos a chorarem enquanto as mãos se inutilizavam a esconder o rosto. E a irmã Beta, italiana de gema, a única a olhar-nos com um meio sorriso e olhos garotos; se haja céu, ela há-de lá estar, na sua paciência infinita, divina beleza sardenta, as azeitonas dos olhos em brilhos de ternura liquefeita. A saudade que lhe tenho aos olhos! Pergunto-me muitas vezes se te ficou aquele olhar de abraço que nos fazia ser melhores, ou pelo menos desejá-lo. Uma vez, um desconhecido olhou-me assim, como quem não tem outro mundo. De dentro da minha admiração,sorri-lhe agradecida. Quem sabe, lembrei-lhe alguém. Fora uma boa manhã de trabalho, comemorávamos num restaurante e fiquei com a ideia de que teria ouvido qualquer coisa da nossa algaraviada. E não se explica, mas era o mesmo olhar da irmã Beta. O mesmíssimo: azeitonas pretas a boiar em ternura. Para mim.
Mas voltemos às sessões de televisão: a directora Assunção, uma severidade pálida a comandar cortante, lá para baixo, se faz favor. E nós a ressoarmos patudamente na escada, até perdermos os passos no quarto - os pés regressados à condição, com planta e tudo que lhe competia, oh, já não sou pata - , o riso rebolado sobre as camas num à vontade que, por sê-lo, logo parava e perdia graça. A saudade que tenho de ser aquelazinha. Nunca to disse, mas o teu desvelo comovia-me. À noite levavas-me leite ao quarto e subias a escada muita vez para uma conversa. Nessa altura, controlavas-me o peso, chegavas-me a medicação, afligia-te o meu ar bacento. Nem um dia te senti receosa da doença, do contágio, da brisa forte que me varreu amigos, família, conhecidos. Chegaste a acompanhar-me a consultas. Por vezes, o teu cuidado descascava-me a fruta à refeição. No resto, éramos apenas jovens. O que mais admiro em ti, sabes, é a ternura que te corre solta. E se mantém.  Sinto-a quando nos encontramos e verifico-a em tua casa. És assim. Não para esta ou aquela pessoa. Não. És fonte de água fresca. Gostas dos outros. Sou-te infinitamente grata por isso. Tenho uma parte em ti. E tu em mim.
Quanto me desviei do nosso passeio…Depois dos quadros, vimos uma exposição de fotos e objectos, toda ela muito chinesa. Recordo uma família – talvez um cônsul português de Macau – de que havia várias fotografias e adereços: a primeira foto intrigou-me sobremaneira, a mãe aparentava ser uma garota ligeiramente mais velha que os três filhos, enquanto o chefe de família, com um ar muito chefe, era um senhor de meia idade. Não consegui esmiuçar o fundo dos olhos dela, mas parecia infeliz, supremamente disposta a brincar com os dois garotos mais velhos. Comentei, será que isto não foi pedofilia, e tu riste baixinho, encantada com a originalidade de um berço que teria pertencido às mesmas crianças. E depois viemos rindo e conversando até ao Campo Grande, lugar onde cada uma tomou posse do outro eu.

E às vezes, juro, aqueles olhos de papel, serenamente desditosos, perseguem-me. Vê tu para o que me havia de dar.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Joana Carneiro na Gulbenkian

Por um fortuito acaso comprei bilhete para o último concerto da temporada na Gulbenkian. Desconhecendo que era último. Movida a súbita saudade, abri o pc e achei um bom preço num horário inesperado por inabitual, ainda por cima com a maestrina que todo o ano desejei ver: Joana Carneiro – não sei o exacto porquê, mas ser portuguesa e mulher, num lugar cativo de homens, contribuíu. Quase tudo vendido, escolhi o lugar 1 da fila 28 e só muito depois me deitei a pensar que devia ser longíssimo do palco. Tinha comprado. Nada a fazer. Para não desanimar, e porque me pareceu um bom castigo à imparável distracção que acompanha o eu de mim, nem espreitei a planta da sala que, aliás, tinha visto sem ver, quando escolhera o lugar.  
Cheguei cedo e flanei pela secção de compras, onde aproveitei para perder os óculos de sol de que mais gostei até hoje. Sou assim, não perco tempo com bagatelas, se é de perder, que seja de valor. Ainda desatendida do rombo, sentei-me rodeada de meus vagares, na grata surpresa de estar mesmo junto ao palco e, graças ao enviesado do lugar, poder admirar a maestrina. A tal que, em vão, quisera assistir. Felizmente não esquecera os óculos normais e a perda manteve-se incógnita. O meu céu, azul e sem nuvens.
Agora que já me habituei, sei que chega primeiro a orquestra e só depois de tudo pronto e no lugar, o maestro. Os elementos galvanizam pela fatiota. Se não fora o instrumento que trazem na mão e lhes dá o metier, pareciam convidados de um casamento chique e nós, os sentados, transeuntes boquiabertos a bisbilhotar roupagem e penteado. É verdade que os velhos são sábios e existem, mas, da entrada à cadeira de cada um, a aura é dos mais jovens, os restantes a passear, distinta e em passo certo, a sua discrição. Ficou-me uma mulher de braços sinuosos e decotados que se sentou num sussurro de sedas a deslizar, ajeitando o violino em materna comoção de dedos, o mate da pele a resplandecer contornos juvenis, toda debruçada de cuidados com porcelana chinesa. Ou a de dedos de fuso e pulso fino que trazia aos ombros uma nuvem de tule e permaneceu alheada dos fios do tecido a ranger constrangimentos, ai, não aguento esta dobra, vou ficar esmagado dentro da prega, a mirar o brilho da flauta, desligada do rumor das fibras a esticar no busto, garridas vaidades insufladas, somos as maiores; mais tarde, o seu solo de deusa chamada à Terra havia de transportar-nos a florestas verdes de ar rarefeito e pastoril, onde a pureza do oxigénio nos entontecia a cabeça. Lindas, as duas. No entanto, mal a maestrina pisou o palco, eu soube de algo maior. Joana Carneiro, rosto sem pintura, em negro conservador: sobre saia comprida, casaco de malha fina, manga justa até ao pulso, sem réstia de enfeite ou alinhavo de cor. O cabelo a descer, liso e solto, com um ganchinho infantil sobre o lado, a amparar a visão. E, como em todos os concertos de domingo, explicou a música. Trouxe os instrumentos ao seu significado na peça, identificou-os com os momentos e contou a história de cada trecho. Ouvi-la, foi sentir uma janela a rasgar cá dentro. E foi assim, cheios de claridade, que a vimos crescer no palco. Aconteceu-me o de sempre, ouvia a música mas esqueci completamente a orquestra. A minha atenção foi sugada por uma feiticeira encantatória que, em grandes gestos, cozinhava à nossa frente os prodígios da sua arte de feitiçaria. Doce e terna feiticeira que se deixa levar pela música e participa da sua tristeza, o desalento do cabelo a oscilar próximo ao pesar dos olhos! Que, numa súbita viragem da sua varinha de condão, toda se empolga e vibra, e se faz força de viver e riso desabrido, torrente que, qual flauta de Hamelin, arrasta toda a orquestra.
E logo ela se despediu. Parecia que só uns minutos, mas um concerto inteiro.

Depois…bom, depois foi a busca insana e inútil pelos óculos. E ainda assim não se me apagou a gratidão por mais este acaso de sorte.