quarta-feira, 26 de abril de 2017

No Tempo da Escola

No entrementes de meu pai preso, das classes uma atrás da outra e das fúrias crescidas da mestra que desmediam sem porquês, eu, Luís e mais dois ou três garotos, despedíamo-nos da escola primária; Lídia seguia-nos na classe atrás. Vivia  empenhada em caracóis rebeldes que penteava contínua, o corpo arredondando em lugares súbitos que me evidenciava sem rebuço e a ferver de orgulho, a baixar e levantar peças de roupa. As precocidades de crescer obrigavam a mãe a milagres com as velharias da irmã, que ela passeava em displicência de olhar e passo, namorando o pátio dos rapazes, qual rainha  entre plebeus. As mudanças assentavam-lhe e ficava ainda mais linda.
Nos intervalos caseiros, entretinha-me a ler os livros da emigrada filha de Madrinha Carmelita, a pares no fundo do saco das maravilhas e que eu recolhia prestes, mal a velhota despontava nos degraus da carreira. Despida de verdadeiro interesse, olhava o início de curvas da minha amiga com alguma curiosidade. Sentia-me plena no meu corpo de criança e, por mais que os exemplos me entrassem olhos dentro, descria, em mim,  da afecção de mudança tão traiçoeira. Despontava-me o traço de “não te rales e deixa andar” nas banidas preocupações com o corpo. Antes me afligia  haver uma prova oral no exame obrigatório que ocorria numa escola da vila, nós avaliados por ignotos professores e em ambiente estranho. A importância do primeiro exame era gancho preso na mente, acicatava. Na volta para casa, eu e Luís discutíamos com alma  a malfadada prova de aritmética e as soluções esquemáticas dos problemas que adivinhávamos, dando prioridade a torneiras abertas para tanques que, em simultâneo, enchiam e vazavam, facto que observávamos com frequência na Quinta dos Sargaços. Enquanto deslindávamos contas e mais contas, eu revia as tardes acaloradas em que nós de mãos dentro do tanque e o hortelão de olho, ainda assim não sujássemos a água, colhêssemos as desejadas cerejas, nos escapulíssemos ao pomar onde as laranjas do tarde convidavam o pálato. Mas nós ocupados a sentir a frescura líquida a correr-nos as mãos, a seguir com os olhos as libelinhas às cores feitas avionetas sobre o espelho de água, a observar os pequenos insectos caídos, aflição a estrebuchar no tanque, e a salvá-los ao despique, palhinha estendida às suas patitas gratas, já salvei mais que tu. E o vulto escuro dele em gestos de enxada maquinal, a encaminhar a água pelos regos, aqui abrindo comportas e fechando ali. E nós cá em cima, um desejo de éden a perseguir-nos o espírito, as  proibidas cerejas oscilando nos ramos a um metro ou dois das nossas cabeças, qual suplício de tântalo; e aquela vontade nunca satisfeita de subir à cerejeira. Ou só com inveja dos pés dele, assim descalços e molhados, frescos. E, à medida que o número de contas aumentava  nos problemas, este tinha cinco contas vamos inventar um de seis, eu atentava no claro som da água junto ao poço, entrelaçado no chiar da nora e revia a concavidade em circunferência de ferraduras a toda a volta, produto esforçado de  silencioso pisoteio  da mula vendada. Parava os olhos na água transparente dos alcatruzes que despejavam a respingar para a calha, glu, glu, glu. E logo ali à frente,  o jorro manso e ininterrupto caía em alegre murmúrio do tabique para o tanque. Do outro lado, sobre o bordo, a grossura de uma rolha de cortiça envolta em trapagem que escorria a espaços, dava sinal de vazamento para a regueira delatora, chão escuro e molhado, dois murinhos esquinados a fundo de enxada. Matutava que o hortelão desconhecia os litros de água dentro do tanque, os que corriam por minuto para a rega, e tampouco lhe importava a quantidade de água que a mula puxava  lá do fundo escuro do poço onde havia um líquido como breu que, à superfície, se mudava em água; assim, numa espécie de milagre de que nenhuma conta tirava a prova. E, lá dos interiores do eco, uma avenca ou outra a verdejar alegrias,  acenando falsidades de aqui é que se está bem, quando aquela parede lismosa e íntima só a elas agradava.

Enquanto vivia esta duplicidade, e a par de Luís amontoava contas sobre contas, cheias de horas e minutos e mais uma data de litros de água que mudávamos para decilitros ou quilolitros apenas para complicar, Lídia cansava-se de nós e pavoneava na frente, a mala a dar a dar. Luís, também ele atento a dois assuntos, seguia-lhe o balanço.  Junto a minha casa, avançava até ela e encontrava recados e motivos para lhe fazer companhia. Se acaso o via regressar, puxava da bicicleta e desaparecia num arrepio, os pedais em vendaval. E eu enfronhava no quotidiano e esquecia-os até ao dia seguinte. A meu modo, era feliz e não pensava na forçosa separação da trempe. O écran gigante do exame absorvia-me a realidade. 

terça-feira, 25 de abril de 2017

Abril, Sempre

Desde cedo tive simpatia por revoluções. Em garota, o facto histórico que mais me movia era a Revolução de 1640. Mas, em história como na vida, os factos sucedem-se.  E, por muito que o destino possa vir ainda a castigar-me, nada me agrada tanto como viver nesta era e ter assistido, já com algum tento e juízo, à Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974. Que, logo ali, na sua imperativa factualidade,  eclipsou a de 1640 e mais todos os conjurados e traidores.  Não que eu soubesse em profundidade o que era uma revolução ou fosse uma democrata. Nada disso. A palavra democracia só a tinha estudado na antiga Grécia, por ser o regime da cidade-de-estado de Atenas e pensava eu que estava fora de uso, e fosse apenas uma boa experiência exclusiva dos gregos de antanho (era assim, a minha ignorância).
Como à maioria dos portugueses, no dia 25 de Abril de 1974, a  revolução e seus adereços apanharam-me desprevenida.  Não entendia as marchas militares que a rádio passava sem cessar enquanto as ruas de Lisboa estavam em polvorosa: blindados a passearem pela Baixa, militares despidos de rispidez que acamaradavam com o povo;  civis como formigas, incontíveis e inúmeros, pendurados em todo o lugar do largo do Carmo, empoleirados em árvores e fontes, a esgueirarem-se pelos meandros do cordão militar, querendo espreitar a história em directo. No ar, uma alegria expectante. E breves relâmpagos de Salgueiro Maia.  Eu, mais tarde, a olhá-lo incauta, deve ser algum sargento que manda nos soldados (lamento, Maia, mas o meu mundo só tinha sargentos e soldados). Mas afinal era o capitão de Abril a quem devemos tanto. Que, apesar da conjuntura favorável, uma revolução sem sangue e que empunha flores, só num país de poetas e à beira-mar plantado. E o gesto de alegria das vendedoras do Rossio e Terreiro do Paço virou senha. E o primeiro cravo branco virou rubro. E toda a gente usava um cravo. Por ser bonito. E porque as flores dizem melhor que nós o contentamento. E porque, noutros lugares do mundo, outras revoluções as tinham usado. E depois os tiranos, bem à portuguesa, foram exilados e seguiram para Brasil e Madeira que mais pareciam destinos de férias.
Nesse período, viveu-se um irrepetível tempo de acreditar. A força de Abril abriu no coração dos portugueses uma esperança de dias melhores. E assim nos irmanou. É dessa crença conjunta que tenho saudade. Dessa irrupção da crença a dinamizar a vontade de mudança de um povo ainda sem divisão. Porque  o povo, a grande massa anónima a que pertenço, pouco sabia de formas de governo. Mas a vida era tão arrastada que agarrou a mudança e fez dela bandeira. Acreditou. Nesse hiato inaugural, os portugueses  juntaram-se em aspiração e desejo. E era ver actores e actrizes em euforia, desfilando pelas ruas de mão dada a gente anónima; ou, à porta do Forte, Sophia Andresen, a Poeta, que aguardava com outra gente, florinha na mão, delicada como ela só, a saída dos presos políticos em Caxias; e Mário Soares, e depois Álvaro Cunhal, em regresso apoteótico, saudados não apenas por socialistas e comunistas, mas por tanta gente que os não conhecia e assim homenageava quem por ela lutara e sofrera na sombra; e Manuel Alegre, o trovador da voz profunda, exilado na Argélia, a escrever poemas de saudade incomensurável a Portugal, como a Trova do Vento que Passa, “Pergunto ao vento que passa/ notícias do meu país/ e o vento cala a desgraça/ o vento, nada me diz”, versos que devieram canção na voz única de Adriano Correia de Oliveira; e a alegria solta nas ruas com o regresso dos presos políticos, gente sofrida mas vitoriosa e cheia de vontade de viver em paz e liberdade; e a liberdade de expressão de que os jornais faziam alarde e antes desconhecíamos; e os cafés cheios de gente e discussões sobre tudo, sem tabus. Empolgava-nos o entusiasmo de estarmos a escrever a história e viver a novidade chamada DEMOCRACIA, termo de origem grega – nasceu mesmo em Atenas -  e que significa um regime político onde o poder cabe ao povo. Em democracia, o povo elege os seus representantes através do voto.
Depois, contra ventos e marés, um novo governo e a vida do povo a melhorar. As manifestações, os sindicatos, a militância política, o conhecimento. E tanta palavra nova, tanto mundo que desconhecíamos e ninguém nos contava. Quanta luz Abril nos trouxe! Lembro sem exaustão o Serviço Nacional de Saúde, gozo de férias, optimização de horários de trabalho, ordenado mínimo, subsídios a quem mais deles precisa e a protecção do Estado aos mais desfavorecidos, a generalização da educação gratuita...e a Liberdade para pensar e decidir como estar na vida,  a liberdade crítica do pensamento, essa possibilidade infinita que os mais novos usam sem saber que crescemos em parte privados dela, num mundo de autoridade temerosa e em que “não se podia falar”. E quanto não se pensava por nem sequer sabermos que existia! Porque o respeito só em democracia existe. No mundo do déspota reina o medo e a ignorância, não o respeito.
O reino do medo passou. Cabe-nos o dever ético e cívico de ensinar aos novos o respeito que conquistámos no dia 25 de Abril de 1974. Ou nada aprendemos com a História.
Abril, sempre!

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Em Nome da Gata

Encanta-me a naturalidade com que toda a gente posta sobre temas que, pensando bem, podiam ser os meus. Só que não me ocorrem. O certo é que, marginais ao grau de interesse, mal penso num, as palavras me saem inóquas e sem graça, uma espécie de perna de boneca esquecida na dobra do sofá, que se retira para não incomodar. O meu respeito por elas tem a humildade dos intocáveis, a casta indiana mais baixa, considerada tão indigna que recua varrendo o chão que pisou a fim de apagar as pegadas e por não poder virar costas a quem é de casta diversa; mas, como não posso dar-lhes as costas ou recuar – ninguém nesta vida pode recuar, o tempo não nos dá esse gosto – apago, sacudo o rasto de borracha no papel, e vou à minha vida. ‘A minha vida’ é um modo de dizer, não há nenhuma vida que seja minha. O que há é eu a fazer de conta que é meu o que talvez nem tenha dono. Os determinantes de posse nunca foram saúde; a posse é uma espécie de bactéria alojada que não encontrou a sua penicilina.
 Por outro lado, o tempo gasto na blogosfera maravilha-me: são centenas de afirmações e negações convictas, e até nos pequenos desabafos, perpassam as certezas que me fogem. Se houvesse uma osmose mental, colava o nariz ao écran do portátil e, quem sabe, as certezas encanavam e subiam por inalação. De modo que, se por acaso alguém me fixa, sou um certo poema de António Ferro, “Não sei viver/ nunca soube viver/ sou um relógio que pára de quando em quando/ falta-me o ritmo, a continuidade…” e interrogo-me, será que deu por isso, que me viu o ponteiro dos minutos parado? Ou, por sorte, fixou-se no das horas? Nessas alturas, disfarço como posso, sem a âncora de um assobio que me salve.
É por estas e por outras que resolvi falar também da minha gata. Tal e qualzinho. Ao invés de mim, a gata sabe o que quer e tem um querer donairoso. Não tem raça, estirpe ou pedigree. É inteira e sozinha, e dá pelo nome de Gata. E, como em amor acontece, tudo nela me é um gosto. A paciência caseira, aspirante saudosa de ração; o olhar de enigma, rasgado em contas de transparente azul; a fundura abandonada do sono; o seguidismo lânguido, todo atenção e silêncio, olhos em vincos de ternura semicerrada; o jeitinho macio de, sem palavras, focinhito espreitando no postigo, me informar que regressou e quer entrar. Mas, o que mais me quebra, é a exuberância de alegria rebolada com que me acolhe se saio à rua, as corridas na frente das minhas pernas, a subida travessa aos arbustos e árvores mais próximos numa exibição de festa retumbante. E, como disse Pessoa acerca de um humano Menino Jesus, por que razão não há-de a minha gata chamar-se Gata?!



(texto adaptado de outro que escrevi em tempos)  

quinta-feira, 6 de abril de 2017

No Tempo da Escola

No  Alentejo, os dias andam ao pé coxinho e é mais lento o grão a grão no estrangulamento da ampulheta. Contudo, alheio ao vagar do espartilho temporal, o trajecto dos fenómenos humanos é semelhante em todo o lugar. Por exemplo, a coscuvilhice que grassa em tempo embatucado e indigesto, faz-se necessidade social. E é injusto reduzi-la ao mundo feminino, cusquice não tem género e aprende-se de uns a outros, num agitar vivaz das águas comunitárias. Numa aldeia, provoca estremeções, faltas de ar e de coragem, compaixões e simpatias ímpares, lágrimas em corda. E outros desvarios.  Mercê deste exercício contumaz do conversedo, surgem mudanças insuspeitas. Todos os homens são devedores da cusquice. Como sujeito ou como objecto, a demarcar-se ou a embarcar em aceitação acrítica, ela molda-o. Corre-o sem originalidade. Primeiro, as novidades são comentadas, escarrapatadas como osso atirado à fome, em perseverante atenção de língua que faz caminho até à última lasca de fêvera.  É nesse período que toda a gente ajuíza miudamente e forceja por acrescentar. Depois, é como se a fome de conversa sofra desgaste à medida do aumento de rotações da Terra. E, por ausência de acrescentos e de gente que o receba em embrulho de novidade, o assunto deixa de apetecer. Aborrece. Cede lugar.
Mesmo nesses que a língua sovou, ensaboou, esfregou, torceu, a vida desenvolve mecanismos de compensação que amortizam desgostos, aconchegam consciências e aplacam paixões e amores. As iras viram ódios mansos ou apenas más vontades e resolvem-se, quase sempre, com tréguas que se tornam paz definitiva, ou vêm a terminar  em simples torção de pescoço odiento a impedir-se de ver o odiado; ondas de tempo limam arestas aos desgostos insolúveis que pousaram no banho-maria das lembranças; os sonhos, mudados em soberanos impossíveis, giram na estratosfera e a alma guarda-os etiquetados e quiméricos,  “O que não pode ser”.  Contudo, foram alguma coisa: sonhos.

Na aldeia, as folhas de jornal serviam a embrulho de sabão azul  e outros artigos de lavagem. As notícias, em regra, eram locais.  Corriam de boca em boca baseadas  no diz que diz colhido na mercearia, na taberna, na igreja. E era rastilho que chegava a todos os fogos, acrescentado de uns lados, rasurado de outros. Havia quem se aproveitasse do corre corre das novidades e, à sombra do quase anonimato, desse voz a ódios antigos e invejas malsãs. Se a difamação era de peso e encontrava gente honrada e de princípios, morria no posto da guarda nacional republicana onde os guardas não se coíbiam de uns sopapos em caso feminino e duras sovas se masculino. Além disso, multavam os provocadores e, em casos mais graves, provavam o calabouço. Difamar, era sistema de linguarudos mentirosos que viviam galhofeiros  e destravados de boca e consciência. Mas o balanço das novidades fazia-se na oralidade, cada um no seu papel, passando o testemunho. Depois da visita a meu pai foi um nunca acabar de perguntas. A reabilitação  da nossa família começou, como era de regra, numa salutar cusquice. O  mérito coube a minha mãe e sua tristeza desalentada, por via das condições em que o achámos.  Depois de muito preocupar e inquirir, a aldeia transmutou. Meu pai virou história aceite e condoída e reapossou do nome; eu, deixei de ser “a filha do comunista”; minha mãe regressou à sua condição de mulher casada com marido ausente. O grupo envolveu-nos num abraço compreensivo e a cusquice amorteceu, mudada em lamento e apoio.  Adaptei-me com veemência a vivermos as duas e gozei quanto pude o papel  de vítima, deliciada por ser objecto de tanta atenção e olhar penalizado – extensivos à escola e até à professora -, e propus-me, sem a arte de Lídia, esticar a situação quanto possível, sem reparar que era simples beneficiária dos eflúvios acarretados pelas parcas conversas maternais.  Entretanto, presa do crânio descabelado e ossudo e da magreza de meu pai sob a roupa, temerosa do ar bovino dos guardas prisionais e daquele mar que não me descansava, neguei-me a voltar a Peniche. Decisão sem préstimo, que nem a minha mãe foi permitida nova visita.