Mausoléu de Gala Placídia
A
primeira coisa que intriga neste monumento é o facto de pertencer a uma mulher.
Em Ravena, não encontrámos outro de igual condição (nem noutro lugar, diga-se).
Para mais, os historiadores garantem que os restos mortais da senhora não se detêm por ali. Mas, e ainda
que com dimensão bem menor que San Vitale (fica-lhe nas traseiras), a beleza dos
mosaicos que o forram é idêntica; há mesmo uns bocadinhos de céu azul abobadado
e com astros, a confundir-nos as meninges. Morde-nos a curiosidade, que mulher
é esta, erguida assim da profundeza dos séculos. Que, no século IV, do feminismo não havia nem
sombra de conceito. E as mulheres, como toda a gente adivinha, se tinham função
política era por interposta pessoa. Não foi bem o caso. Repare-se só na
fulgurância deste nome: Gala Placídia. Atendamos ao primeiro e logo, talvez
eivados de preconceito capoeirento, determinamos que a dama tinha aspirações de
chefia, mando. Em suma, presume-se que queria saber das coisas e orientá-las a
contento. Não invento: galar alguém significa não apenas a textualidade que
também significa, mas sobretudo estar a observá-lo, dominá-lo pelo saber do que
nele se passa, como que um estar acordado para a possível malícia do outro. Por
outras palavras, ser-lhe superior. Bom. Chegada a este istmo, fiquei curiosa e
fui observar o rosto de Gala Placídia – no mausoléu desfigurou-se-me e não a
encontrei, perdida que me fiz no azul abobadado e outras belezas a rigor. A net
oferece-me a dama de colarzinho e verifico que rima, tal qual, com o nome. Não
esqueçamos que tem dois, tão claros e distintos como as ideias cartesianas. Olá
se são. Gala é esse ser cerebral e superior que lhe mora dentro. Porque
Placídia é o seu lado de colarzinho, feminino, terno, sedutor (ai Deus me livre
de errar que nada sei da terminologia romana e estarei inventando se outra
coisa não for). Placídia não era uma formosa
Dalila (e não me digam que Dalila não é um nome estoira-vergas, que é),
era uma mulher de sua casa e seus amores de extraordinária fundura. E a reunião
das duas numa só pessoa não tem natureza divina – a tê-la, exigia-se o três em
um – mas, pelo visto, foi claustrofobicamente apaixonante. Isso mesmo. Paixão claustrofóbica era o que a D. Gala
provocava nos corações e talvez também lhe fosse dado viver (não acredito
muito). Se fora de outro modo, como explicar que tal pessoa fosse raptada e
casasse com o raptor (ou quase ele), um rei ostrogodo que se converte e casa com
ela seguindo preceitos cristãos, vestido de romano…bom, pode ser jogo político
do rei sonhador de unficações, mas há ali muita Gala derramada. Para além
disso, parece que Gala casou com ele por amor e foi feliz; o certo é que, entre
os bárbaros, fez amizades para a vida e as manteve na sua guarda pessoal até ao
fim. Tinham que ser fidelidades caninas, admiração e respeito dos antigos,
género, sendo necessário, morro para que vivas. Ora, meus amigos, este tipo de
ligação não nasce dentro de uma bolsa de patacas, antes irradia de uma
personalidade envolvente e vamos lá, talvez um pouco tirânica; o amor é assim,
de tiranias concêntricas. Por que refiro estes acontecimentos? Bom, porque ser
muito amada por seus maridos – teve dois, um bárbaro e um romano – é peculiaridade
natural, mas ser servida na corte romana por servos vindos da barbárie e só
neles confiar, é deveras notável.
Quem
me leia pensará, e depois, era uma mulher educada, filha de um imperador, irmã
de outro, mulher de outro e mãe de mais um. Pois. Mas não só. Quanto se lutou
por Gala! O irmão – que era só meio irmão e imperador – conta-se que tinha
paixão pela irmã (então, que é isso, as paixões não são só o comum
rasga-a-roupa) e ela o aconselhou em bastas decisões. Quando Gala foi raptada,
o mano moveu os seus homens para a libertação. E um dos seus generais, que
parece sempre a amou (não sabemos desde quando, mas o amor é assim uma coisa
meia parva que bate sem mais nem mas; portanto, vou assentar que era desde que
ele a viu jovenzinha sábia e nada de se deitar fora), depois de se bater
valentemente com suas tropas e conseguir trazê-la para o mano imperador (o
primeiro marido, o rei ostrogodo, já tinha morrido), pediu-a em casamento.
Donde resultaram dois filhos, uma rapariga bastante parecida a Gala e um rapaz.
Quando o irmão de Gala morre, o marido sucede-lhe e ela devém, pelo casamento,
imperatriz. Por morte do segundo marido (aí, mulher valente), Gala rege o
império; o filho tinha, então, seis anos.
Muito
haverá a dizer sobre a personalidade política desta senhora. Mas a única coisa
que me intriga, vejam só, é ter lido que mandou matar o casal a quem a sua
educação foi confiada.
Repousa
em paz, intrigante Gala Placídia.