quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

E a história é assaz suspeitosa, conta que quem os entregou foi o arrependido e ex-pérfido soldado romano, natural de Mântua, que lancetou Cristo no lado (para quem não recorde, saiu sangue e água supõe-se que por conta do tétano que os cravos provocaram). E depois da história nem nos mostram os torrões; dão-nos umas fotos ranhosas para a mão e pronto, passa para cá dois euros e não digas que vais daqui. Ora esta! Bom, como eu ia dizendo, estava fartinha das manigâncias italianas que têm sempre saída, assisti a uns fulanos da América do Sul a pegar nas tais fotos como se fossem o próprio Menino Jesus bebé. Homens feitos e barbados nesta figura, não é brincadeira, a fé por vezes é muito semelhante à crença ignorante dos prisioneiros da caverna platónica. Mas enfim. Avante. Ia eu ler qualquer coisa que me estava intrigando na igreja e vem a Lina. A minha prosápia de escândalo aproveita o momento e atira, olhos de ponteiro, já viste que esta gente faz de tudo uma relíquia?! Os de Mântua guardam a terra e estes um bocadinho do bordão do santo, uma cana, quero dizer. E ela de olhos muito abertos a receber a novidade, ai é um bocadinho de cana?! Pensava que era uma tíbia. E eu, anda cá ver. Adjudicando, não vês ali os nós por onde cortaram, diz que ele ia de viagem, devia levá-la para apoio…a garota intrigada, a requerer provas não circunstanciais, leste nalgum lado? É que ali atrás diz que o relicário tem a tíbia do santo. E eu com o filme de pantanas, ai diz?! É que não li tudo. Mas repara, parece mesmo uma cana. E a Lina, não sei, a mim parece-me uma tíbia, isto é um osso. Eu defendendo a minha baliza, tá bem, mas a tíbia é tão pequenina…parece-me um pedacinho de cana. Mas ainda bem que nos encontrámos, que eu já tinha a história toda montada. E depois a Lina apontou-me uma prece junto às velas e pusemo-nos os três a lê-la. Tão bonitinha! E eu decidida: vou copiá-la e acendo uma vela; e eles, nós também. E, pítias compenetradas, cumprimos o ritual.
E depois fomos ao Teodorico ausente. E as nossas velas ainda lá estão a arder, a arder…

Eis um bocadinho da prece que tornámos nossa:

He aceso um cero
Nella Basilica
Di San Giovanni Evangelista
Nella Basilica piu antica di Ravenna,
Una delle chièse
Piu antiche del mondo
(construita da Gala Placídia,
Imperatrice, nell’anno de 425)


terça-feira, 29 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália


Em tudo há golpes de sorte e azar. O nosso ventinho benfazejo aconteceu em Ravena que, à nossa revelia, é, no ano da graça de dois mil e quinze, capital italiana da cultura. E que, para além de uma programação cultural que se estende para o futuro (seis anos), anunciava de junho a setembro, ininterruptos e nocturnos eventos culturais. A pouco assistimos na semana em que “ravenámos”, tal o estado de miserável cansaço a esmagar-nos depois do crepúsculo. Porém, por duas vezes nos arrastámos até praças repletas de atento público. E logo a performance dos artistas eclipsou cansaços do corpo e nos tomou a alma.
Mas todos os dias pode haver manhã. Ainda que nos levantemos à uma da tarde. Assim, na vez em que fomos à igreja de S. João Evangelista, cuja nem estava, nem deixava de estar no roteiro, abriu-se-nos uma claridade matinal avessa a ponteiros de relógio, teimosos nas três da tarde. A verdade é que saíramos em hora de difícil calor a colectar sombras no caminho para um gelado,  intentando em seguida o Mausoléu de Teodorico.  O bendito acaso fez-nos passar naquela rua comprida de outras vezes e alertou-nos, graça divina, para um maviosíssimo som de órgão que só a nós moveu (será que fomos os únicos a ouvi-lo?! Ó agradável ego!). Assim mesmo. Quais ratinhos de Hamelin fomos em busca da melodia. Enfeitiçados. Dobrámos esquinas, chegámos à porta da igreja e entrámos. Por mim, não sabia onde estava nem tal me importou (quase nunca sei, é um desvario). Havia alguém a tocar uma peça (estivemos quase uma hora e ficou tocando); talvez treinasse um concerto ou fosse desfastio de dedos em férias. A primeira visão que me varou foi o frade. Vestido à maneira, a acertar o castanho do burel com o cordão branco  da cinta. Devidamente encapuçado. No meio do incorpóreo recital e da beleza da igreja, quadrou. E logo me acudiram aqueles desejos saudosos de ser monja, a voz em voos gregorianos a quebrar o voto de silêncio. Bom, gosto de acreditar na reencarnação e, havendo, decerto fui monja. É que tenho saudade à condição, por muito que não pareça.
            Aproximámo-nos do órgão (só um poucochinho) e pudemos ver a organista. Sentámo-nos. Tenho certeza que no silêncio da minha alma ajoelhada houve um daqueles momentos de humildade recôndita de “não sou digna”, crescendo em escorrimentos de beatitude e espontânea gratidão. E entrámos naquele diálogo sem hora, entre a ressonância e o espírito, coisa de deleite. Habitámos o “lugar onde corre leite e mel”, que não é deste mundo, mas nele acontece. Que sobrevoa o humano mas só nas pessoas é vivido. Um gozo de alma. Portanto.
             Mas Teodorico esperava-nos no seu sarcófago vandalizado e vazio. Entretanto, para me arrancar ao torpor místico, levantei-me a passear o templo todo em volta, olhando-o devagar: a reocupar-me de cabeça tronco e membros. Foi quando reparei na estátua do santo, enorme, com um bordão de respeito e que sei chamar-se báculo. Um santo bispo. Comecei a ler-lhe a sinopse da vida e, ainda a descer da nuvem musical, consegui entender que o santo morrera na viagem para Roma onde teria sido chamado pelo papa. Um pouco mais à frente, encontrava-se o relicário com o que me pareceu um pedaço de cana todo entretecido de fios e flores em ouro. Estes italianos são assim, pensei, devia ser a cana de peregrino com que o santo morreu na última viagem para Roma. Fui observar e, na verdade, estava cortada pelos dois nós, ligeiramente mais grossa a cada ponta. Perguntei para mim em quantas igrejas haveria bocados de cana recamados a ouro. Abanei a cabeça, os italianos com a mania de guardar coisas santas, são do pior. Em Mântua até existem dois bocadinhos de terra guardados; diz-se que neles escorreu o sangue de Cristo crucificado. 

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Cumprindo roteiros de gosto, certa manhã de sol rumámos a San Marino, o estado mais antigo do mundo, informação à incipiência da minha geografia paleolítica. De caminho, namorámos Sant’Apollinare in Classe, basílica situada, como o nome sugere, em Classe (lê-se de e aberto), uma povoação  a cinco quilómetros de Ravena. O templo é dedicado ao santo que lhe deu nome e se passeia pusilânime e cordato na ábside central pastoreando ovelhitas num mosaico de verdes que debruam verdes, uma paisagem naif, em infantil desenho, árvores e arbustos cândidos, todos de igual tamanho, semeados pelo semicírculo da abóbada, as ovelhas bordejando a cena, em doçura. E é assim que damos por nós a invejar pastoreio e  serranias ventosas batidas de sol, nos imaginamos cabelo ao vento e cajado na mão subindo montes pedregosos em esforço, com aqueles novelinhos de lã atrás, mééé…méééé…seguindo-nos a musiquinha simples da flauta, um ou dois cães em rebuliço a encaminhar o rebanho  – Sant’Apollinare não tem flauta mas devia. Entretanto, tive de guardar no bolso o sonho profissional e o cabelo a esvoaçar  que a abside toda desmente, assim transformada em campo de concórdia e pacificação. Aquelas ovelhas são branquinhas, não têm carramiços de pauzinhos e plantas aqui e ali a empastar a lã malcheirosa (o cheiro a ovelhum é péssimo), não deixam caganitas por onde passam – o chão é todo verdinho claro -  e os olhos são potes de mel a escorrer; ora, toda a gente sabe que as ovelhas são animais sem tacto nenhum, que só não têm um olhar bovino por serem ovinos. E portanto. Já se percebeu que Sant’Apollinare in Classe nos sofreu o efeito de olhos habituados à contemplação de belos templos. Peço-te humildemente desculpa, Apollinare, mas o humano pensamento é assim, foge, foge, foge. Mas reconheço, estás lindo e digno, ergues-te a meio da abside sem subterfúgios e ocas vaidades. Podes crer. Fica descansado com a imagem.
Do dito, não se infira que a beleza da basílica, que data do século VI, seja menor. Todavia, apreciado San Vitale, todo o seguinte nos pareceu de valor encolhido. Em Classe,  os olhos prendem-se na extensa nave principal, o tecto suportado por vigas de madeira que se cruzam  com arte, a puxar por entusiasmos viajantes.
Uma característica de Itália é o facto das suas torres de igreja estarem quase todas inclinadas. E também a de Sant’Apollinare in Classe. Curiosamente, fala-se em inclinação e logo nos surge a torre de Pisa, mas ela é apenas “a de maior inclinação”. Que todas as outras, desde que bem antigas, pendem e pendem; os olhos desconfiados da paisagem, na interrogação originária, a torre está torta ou vejo mal. E depois,  rodámos até San Marino.

            San Marino é uma aldeia medieval toda metida em verduras e densidade de arbustos, elevada a umas boas centenas de metros. E o panorama que se avista do castelo é lindo. E verde. Com mar ao longe. Mas quanta gente encontrámos por lá. Quantas pessoas flanavam como nós, num calor de torrar, suando as estopinhas, descendo e subindo ruazinhas que compõem o centro e levam ao castelo e suas torres, uma pena no cimo de cada uma (não lhes conheço sentido, mas estão lá). E muitas, muitas lojas a comerciar. A vender. Tudo. Do típico ao atípico. Numa ciganice assaz italiana (usam idêntica técnica de engodo), isenta de impostos mas também sem benefício de promoções e preços baixos. Fartei-me desse lugar superlotado, muito dado a carteiras poderosas. O excesso de gente come-me o gosto, esfarripa-o como galinha a folha de couve. Ponderando: a haver um terço das pessoas, eu teria encontrado beleza a esmo, que estive um nico de tempo a descansar numa ruela e logo me apaixonei pela parede de hera que me ficava em frenteJ

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Ravena é uma cidade calma, transpiração de séculos que o turista inspira de vontade. No centro, as ruas plantam-se em gestos de pedra secular que o quotidiano perpetua, vazio de exacerbadas vaidades. Ruas de Ravena são caminhos de lentidão viajante, que detêm e conduzem a interiores oníricos e perpétuas desilusões (os italianos são assim, fazem-se pagar por seus tesouros, mesmo se tesouros pobres). A urbe tem o toque dos lugares onde se vive e convive: acolhe e assimila. É ser de alma própria que o mundo estrangeiro não perturba e a ambiência cativa. Não que os ravenos sejam de extraordinária simpatia para com os turistas, mas amortizam o estranho de cada um. Longe das multidões de Florença, Veneza ou qualquer dos lugares à beira Garda, nada ali é invasivo. Há nela um provincianismo pacífico que alicia, feito apetite em botão para morar e fazer ninho. Quem sabe, seja efeito da enchente de luz a cair sobre o antigo das pedras; ou do afago dos gelados sobre o gosto; ou mesmo da cancela erguida sobre a passagem de nível da via férrea, a lembrar-nos tempos de Portugal. Quem sabe, Ana Garibaldi encoraja, nariz no ar e peito feito, desafiando a liberdade dos homens a mostrar-se pelos séculos. Ou será dos muitos africanos perdidos por seus jardins e avenidas, arrimados uns aos outros, irmandade de infortúnio calado. Telemóvel em punho, desmedem indecifráveis olhos que nos trespassam  e sem nos tocar, muito contam da não-vida que os persegue e, passivos, permitimos.
Em Ravena, vi as moças sentadas pelos bancos da noite à conversa, mãos passeando inconsciente garridice sobre os cabelos; estavam rindo, os  incisivos  mordendo segredos de cacarácá, frescas e inermes na sua candura teen. Olhei as filas nas paragens de autocarro e absorvi o ar cansado e terroso das mulheres perfiladas, traço distorcido e quase informe, mãos autónomas debruçadas de atenção sobre sacos de plástico e cadeiras de bebé; e, no emaranhado dos seus cabelos sem gesto, pensei a vez em que se sentaram à conversa e adolesceram desfiando secretos de nenhuma importância, pele lisa, boca de romã, agilidade de corça; sonhadoras de mãos libertas, a mente dava-lhes o futuro que nunca é. Eu vi um casamento de uma qualquer convicção religiosa, a noiva a desprender  eslavo pelos franzidos do tule, um nada de convidados em dia da semana que para eles é certo que foi domingo. E voltei a encontrar aquele móbil de brancura esvoaçante, na verdura de um jardim que beirava o mausoléu de Teodorico, o noivo em passada reticente sobre o relvado, um laço afogadiço no pescoço, corpo entretelado em rectas costuras; pensei-os passados dez anos: serão outros. Mas, quem sabe, têm ainda a mesma alegria. Quem sabe…
Num lugar bem aprazível de Ravena procurámos – mapeados, é certo – o Mausoléu de Teodorico. Paga a entrada, constatámos que, apesar da localização favorável, o edifício alberga tão só um resto de sarcófago. Também o Palazzo di Teodorico é uma ruína  próxima de Sant’ Apollinare Nuovo, as pedras que restam esboroando conversas antigas. 
Vagueámos ainda a nossa moleza embevecida pela Cappella di Sant’ Andrea com planta ordenada em cruz e o único monumento de natureza ortodoxa que se iniciou sob as ordens de Teodorico. Ali repetimos o embaraço das palavras perante a maravilha dos mosaicos: sentámo-nos em respeito e silêncio de contempladores estarrecidos.

Numa fuga ao oriente e seu traçado de beleza viciante, visitámos o Duomo, edifício de construção mais recente,  ancorado em suas linhas simples e claras, talvez de influência austríaca. Soube-nos bem este templo em simultâneo grácil e sumptuoso. Em mim, o Duomo estremece em encanto primaveril e virginal que  clama por um Deus-artista,  pousando na cruz em leveza. Sem cravos nem sangue, um sofrimento lamentoso e todo mental a ensombrar o rosto perfeito. Apetece consolá-lo, dar-lhe colo, ninar uma cantiga até que a fronte desenrugue, a boca desvinque e os olhos se lhe cerrem em desmaio de pétala. E, se mais não houvera, só por acordar em nós um jovem-deus que acena  ao Menino Jesus de Pessoa, o Duomo merece a atenção do passante. 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Mausoléu de Gala Placídia

A primeira coisa que intriga neste monumento é o facto de pertencer a uma mulher. Em Ravena, não encontrámos outro de igual condição (nem noutro lugar, diga-se). Para mais, os historiadores garantem que os restos mortais  da senhora não se detêm por ali. Mas, e ainda que com dimensão bem menor que San Vitale (fica-lhe nas traseiras), a beleza dos mosaicos que o forram é idêntica; há mesmo uns bocadinhos de céu azul abobadado e com astros, a confundir-nos as meninges. Morde-nos a curiosidade, que mulher é esta, erguida assim da profundeza dos séculos.  Que, no século IV, do feminismo não havia nem sombra de conceito. E as mulheres, como toda a gente adivinha, se tinham função política era por interposta pessoa. Não foi bem o caso. Repare-se só na fulgurância deste nome: Gala Placídia. Atendamos ao primeiro e logo, talvez eivados de preconceito capoeirento, determinamos que a dama tinha aspirações de chefia, mando. Em suma, presume-se que queria saber das coisas e orientá-las a contento. Não invento: galar alguém significa não apenas a textualidade que também significa, mas sobretudo estar a observá-lo, dominá-lo pelo saber do que nele se passa, como que um estar acordado para a possível malícia do outro. Por outras palavras, ser-lhe superior. Bom. Chegada a este istmo, fiquei curiosa e fui observar o rosto de Gala Placídia – no mausoléu desfigurou-se-me e não a encontrei, perdida que me fiz no azul abobadado e outras belezas a rigor. A net oferece-me a dama de colarzinho e verifico que rima, tal qual, com o nome. Não esqueçamos que tem dois, tão claros e distintos como as ideias cartesianas. Olá se são. Gala é esse ser cerebral e superior que lhe mora dentro. Porque Placídia é o seu lado de colarzinho, feminino, terno, sedutor (ai Deus me livre de errar que nada sei da terminologia romana e estarei inventando se outra coisa não for). Placídia não era uma formosa  Dalila (e não me digam que Dalila não é um nome estoira-vergas, que é), era uma mulher de sua casa e seus amores de extraordinária fundura. E a reunião das duas numa só pessoa não tem natureza divina – a tê-la, exigia-se o três em um – mas, pelo visto, foi claustrofobicamente apaixonante. Isso mesmo.  Paixão claustrofóbica era o que a D. Gala provocava nos corações e talvez também lhe fosse dado viver (não acredito muito). Se fora de outro modo, como explicar que tal pessoa fosse raptada e casasse com o raptor (ou quase ele), um rei ostrogodo que se converte e casa com ela seguindo preceitos cristãos, vestido de romano…bom, pode ser jogo político do rei sonhador de unficações, mas há ali muita Gala derramada. Para além disso, parece que Gala casou com ele por amor e foi feliz; o certo é que, entre os bárbaros, fez amizades para a vida e as manteve na sua guarda pessoal até ao fim. Tinham que ser fidelidades caninas, admiração e respeito dos antigos, género, sendo necessário, morro para que vivas. Ora, meus amigos, este tipo de ligação não nasce dentro de uma bolsa de patacas, antes irradia de uma personalidade envolvente e vamos lá, talvez um pouco tirânica; o amor é assim, de tiranias concêntricas. Por que refiro estes acontecimentos? Bom, porque ser muito amada por seus maridos – teve dois, um bárbaro e um romano – é peculiaridade natural, mas ser servida na corte romana por servos vindos da barbárie e só neles confiar, é deveras notável.
Quem me leia pensará, e depois, era uma mulher educada, filha de um imperador, irmã de outro, mulher de outro e mãe de mais um. Pois. Mas não só. Quanto se lutou por Gala! O irmão – que era só meio irmão e imperador – conta-se que tinha paixão pela irmã (então, que é isso, as paixões não são só o comum rasga-a-roupa) e ela o aconselhou em bastas decisões. Quando Gala foi raptada, o mano moveu os seus homens para a libertação. E um dos seus generais, que parece sempre a amou (não sabemos desde quando, mas o amor é assim uma coisa meia parva que bate sem mais nem mas; portanto, vou assentar que era desde que ele a viu jovenzinha sábia e nada de se deitar fora), depois de se bater valentemente com suas tropas e conseguir trazê-la para o mano imperador (o primeiro marido, o rei ostrogodo, já tinha morrido), pediu-a em casamento. Donde resultaram dois filhos, uma rapariga bastante parecida a Gala e um rapaz. Quando o irmão de Gala morre, o marido sucede-lhe e ela devém, pelo casamento, imperatriz. Por morte do segundo marido (aí, mulher valente), Gala rege o império; o filho tinha, então, seis anos.
Muito haverá a dizer sobre a personalidade política desta senhora. Mas a única coisa que me intriga, vejam só, é ter lido que mandou matar o casal a quem a sua educação foi confiada.

Repousa em paz, intrigante Gala Placídia.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália


Basilica di San Vitale

                No segundo dia a beber ares de Ravena, o meu espanto artístico chegou ao cume e por lá permaneceu em desorientação apalermada, que os caminhos da perfeição são uma espécie de murro na mente que atordoa o mais sensato. Bêbados de beleza, deviemos contemplativos originários na cirandância alentejana por Ravena e suas igrejas e batistérios. E, se não fora o calor a apoquentar-nos, pelo menos eu cuidaria que viajara no tempo e circundava – ou entrava mesmo – nos palácios das mil e uma noites. Bom, é verdade, sou empurrada por um olhar e uma mente adúlteros de nascença: se vejo lagos, lembram-me sonhos; se nas igrejas abundam pinturas, julgo-me num museu; se olho um túnel na rocha, estou num convento infindável. E o mais que não merece palavra.
Portanto, a riqueza analítica e o abundante colorido dos mosaicos, os pormenores de rico embelezamento nas colunas e capitéis, os minúsculos mosaicos dourados que iluminam as figuras e o pormenor com que elas foram reproduzidas, subtraem-nos ao quotidiano, são elevador repentino a projectar-nos  a outra dimensão.
Talvez Mircea Iliade esteja certo e nos aconteça a irrupção de um sagrado emergente por afirmação de beleza superior. Porém, ninguém pensa nEle ao observar o interior da Basilica di San Vitale. Mas são exclamativos os olhos que a contemplam. Escandidos. Arrisco mesmo que perjuros. Mais que à magnificência da cor e à profusão das representações – o horror ao vazio ainda era uma realidade -, fui sensível à traça: às linhas curvas, aos arcos que ligam as colunas e ao rendado das mesmas, às arcadas de janela no piso superior e ao octógono em que se dispõe o templo e o distribui em exotismo. Perpassa em San Vitale uma graça de palácio árabe e tem a leveza de construção aberta que nos faz esperar o perfil de uma princesa de véu esvoaçante sob as arcadas. E por mais que o Cristo se pareça com um jovem grego de alto lá, cheio de viço mesmo – nada daqueles cristos loiros com olhos de amor queixoso, que antevêem o que os espera; este é quase luxuriante; de íntimo impenetrável, suprema de todas as figuras em sua sequência ordenada, está para a eternidade –, ou também movidos por esse ser divino fugido ao conceito, esquecemos os rituais que o templo serve e serviu. Inermes contempladores. Apenas.
Ali revimos as fotos do livro de história, Justiniano e Teodora, cada um com seu séquito. Não recordo o ano em que os estudei nem o que deles aprendi, mas encontrei-lhes no rosto o mesmo ar raro que outrora me confundiu. Revi minha mãe a fazer-me torradas e gemada nas madrugadas que eram só nossas; eu a estudar história no meio do fumo da lareira, olhos a arder lendo, “o imperador foi coroado em Ravena”, legenda de uma foto onde se via uma igreja e um imperador de longo manto que me apressei a mostrar-lhe; não imagino que imperador seria, mas a “foto” era apenas uma pintura. Nessa manhã, do fundo dos meus treze ou catorze anos, determinei que Ravena era o nome da igreja onde estaria a coroa e que o imperador foi lá buscá-la com pompa e circunstância. E pronto. Longe de supor que um dia eu mesma descobria Ravena. Cidade. Sem coroa, é certo, mas não menos encantatória.

E quedámo-nos a babar silêncios nos mais lindos e antigos azulejos da tradição bizantina, antes de rumarmos ao mausoléu de Gala Placídia (oh extraordinário nome de mulher!). Abençoada seja Ravena.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália


Ravena

Entramos em Ravena  exaustos do dia e da insónia de calor. E que bem nos caem cidade e casa: receptivas, calmas. Então, a materna noite aproxima-se sorrateira e deita-nos o exacerbado cansaço na frescura do ar condicionado que, relapso, elide qualquer resquício de castelo. Pétreos e comatosos, adormecemos ao anoitecer. 

Observo o dia seguinte da varanda, em seus passinhos de bebé que tenteia, pé ante pé, semeando claridade e ondas de calor. Sento-me ao fresco da sala e estudo lugares de tanta história. Mais tarde, decidimos palmilhar ruas e dar conta de alguns monumentos insuspeitos e não assinalados no guia. Em pesponto de surpresa, batemos de nariz no túmulo de Dante Allighieri que morreu em Ravena, acaso dele que em nós foi bom augúrio. Sem pressas, a percepção feita lente a ajustar em precioso trabalho de focagem, visitamos o Battistero degli Ariani, a Basilica di Sant’Apollinare Nuovo e a igreja de S. Francisco. A imaginação não alcança quanto sortilégio mora na cor e no traço da arte bizantina dos dois primeiros. Os mosaicos dos séculos V e VI dão às igrejas e outros monumentos a tonalidade meio oriental que nos atrai. Por mais que digam e contrariem, há nos europeus uma atracção pelo oriente que se agarra às colunas corínteas, ao verde dos mosaicos, ao dourado dos fundos, ao próprio dos rostos que emergem em arte de bizâncio, frontais, meio sérios, em calma consciência de quem está e é para a eternidade. São santos, reis e um Deus-homem – uma procissão de mártires bem compungidos  seguindo um santo; e um cortejo de tenras virgens de púdico olhar, atrás dos reis magos, na basílica de Santo Apolinário; no Batistério dos Arianos, Cristo e João baptista -  retratados como deuses: sem vaidade, naturalmente. Porque sim. Séculos a fio a observar-nos galhardamente, do seu centro de autoridade impávida: a ábside e as paredes laterais das igrejas. Há mil anos já eram assim, sem idade. Os mesmos. Rosto virado às multidões, pedrinhas minúsculas em mosaico de maiúscula paciência e arte, mostrando a admirável centelha de Bizâncio. No batistério, é bom verificar que não se oculta a nudez de Cristo. Quem sabe Bizâncio já detinha o germe da preocupação com o realismo anatómico na figura humana tão valorizada no renascimento. Ou não existiria neles a condenação do corpo que a igreja medieval propagava. Era um caminhar de artista, inocente sobre todas as coisas. 

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália


Desesperança à Beira de Ravena


Ignoro soluções capazes de reverter a situação. Não imagino sequer que a Europa, a braços com a sua própria crise de egos disfarçados de bem comum, possa garantir cidadania e dar guarida a tanta gente que a invade faminta e exausta, na esperança de um eldorado inexistente. E nem sei se a mesma Europa que agora se ergue a favor dos refugiados – como se eles não viessem de há muitos anos – quer mesmo torná-los seus iguais. Oxalá queira. Mas, e inda que o deseje, até quando pode?! Pergunto-me se os tantos estados democráticos que existem no mundo – afirma-se à boca cheia que estamos na era da globalização -  não poderiam actuar por forma a evitar o êxodo. Não se pensa que esta gente sai de sua casa e deixa família, o país a que pertence, um lugar próprio e entre iguais onde também ela tem direito à cidadania. E depois há a enorme injustiça social que se continua como em todas as guerras anteriores: àqueles que não têm bens, é vedada a fuga; não havendo dinheiro para intermediários que tanta vez os atiram à morte, permanecem. Morrem. Penam. São estropiados da guerra e do ódio irracional que grassa, os valores soterrados.
Pergunto se a piedade humanitária é só isto, só esta súbita compaixão pelos refugiados do presente e que são só alguns dos habitantes de países devastados a que assistimos de camarote à mesa do jantar…E dói. Dói que em Itália - e talvez noutros países - não seja permitido dar esmola ou emprego àqueles deserdados da sorte que deixaram tudo para trás, arriscaram a vida em condições sub-humanas para chegar à bola de sabão europeia que depois, tanta vez, os recambia. Dói não saber resolver este sofrimento.

O mundo tem que se fazer diferente. Renovar-se. Porque a boa vontade que os nossos estados democráticos demonstram hoje é apenas e só um limiar. Um hall. Ora, o hall não é uma casa.
Veremos o que decidem os senhores políticos. E como o praticam.

Um Agosto em Itália


Desesperança à Beira de Ravena


A semana em Castellaro Lagusello correu célere. Às nove do último dia ainda sofríamos o mesmo calor húmido e amolentado, a pele a reagir desfazendo-se em gotículas. Ele impávido, florescendo em sua indiferença natural. Pertença impenetrável da natureza, acompanhou-nos a vigília nocturna e agudiza agora, na crescença das horas, a desmaiar-nos gestos e despedidas. Pelo chão, empacotados e em pilha, malas, sacos, roupas e haveres pedem atenção que os segure. E Ravena que nos espera enquanto esta casa se desprende, a nossa saudade já futura.
Viajamos ao encontro da diferença na paisagem, a lonjura a pique dos ciprestes dando vez a álamos e choupos. Beleza em diástole, acalmando. Extensas planuras de terreno agrícola a sobrepor. No enlevo de meu pai, observo macieiras e vinhas em desmaio sensual sob a canícula, fertilidade quase pecaminosa a atingir-nos o exiguo alentejano. E é ainda com olhos seus que invejo a morfologia do solo e a largueza de água.
Paramos algures junto a um supermercado buscando almoço. E é então que os vejo pela primeira vez. Hão-de repetir-se, diários, em Ravena. A princípio não lhes dei importância, somos assim, desatendidos dos outros que não integram o nosso círculo próximo. Resolvemos almoçar à vez, o Alberto e a Lina a apontá-los, são os africanos que chegam a Itália num bote, não têm emprego. E vejo dois homens, um a cada ponta do lugar. Não parecem perdidos nem encontrados. São apenas dois homens parados num parque de estacionamento. Por acaso, os únicos dois que ali estão, imóveis como postes, no meio do calor de que todos se abrigam e me obriga ao exterior do veículo. Encosto-me no tronco da árvore perto do carro e observo-os. O que se encontra mais longe como que se cansa de mim, caminha até ao outro e resolve ir embora depois de breve conversa. Segue lento, abanando as mãos vazias; dobra uma esquina e sai do meu raio de visão. O outro fica a olhar-me, duas bananas dentro de um saco plástico suspenso da mão. Não pede nada, só me olha. Penso vagamente que não tenho que dar-lhe, preciso levantar dinheiro, na minha carteira nem uma moeda tilinta. Mas ele está quieto, sem intento de estreitar distância. Apenas me olha. Se eu fosse ele, o que pensaria se me visse? Reflito que o meu aspeto não é de modo algum o de pessoa abonada. Pois, não é. Mas de certeza ele me inveja. Imagina que tenho uma casa em algum lugar e que, de alguma forma – seja bem próprio ou de aluguel –, me pertence, é lugar meu e a que posso voltar. Avalia que tenho direito a permanecer num país e a usufruir de ser nele cidadã. Sabe que tenho um meio de vida que pode ser mais ou menos seguro, mas é um meio de vida que me possibilita planos, se gasto mais ou gasto menos, onde posso ou não posso ir. Supõe que na minha carteira há cartões que valem dinheiro e me simplificam a vida. E o que lhe leio nos olhos é o nada disso. Lá, nos seus olhos bem negros, mora o desalento de quem nem a esperança pode. Não sei como é viver assim. Nenhum europeu sabe. 

domingo, 13 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália


Gardone Riviera


O lago de Garda é como a vida, tem seus bocados de tudo. Em termos geográficos e humanos. E sempre multidões. Ou quase. Que a elite verdadeira acomoda-se sem atropelos, no Savoy e hotéis afins, em Gardone Riviera. Ali encontrámos uma estância de veraneio, parca em turistas de pé descalço, e é provável que não tenhamos sido escorraçados por nos reduzirmos a três gatos-pingados; se havia confrades de ténis, máquina fotográfica e mochila às costas, a conjunção dos astros destinou-os, nessa hora, ao eclipse total. Que gente bem não faz estrilho audível; fala baixíssimo olhando-nos em estranheza como se espécimes raros, uma ruga a crescer entre o sobrolho; e, num estreitamento de olhos, atenta para si em imperceptível  desagrado, “que faz o povo aqui”. Isto, é claro, sem alterar o perfil de esfinge barrado a creme e ouro (ou será a cremes de ouro…). Além disso, os próprios empregados, todos de farda, nos estranhavam sobranceiros. Fomos uma curiosidade não desejada. Suportável.

Privilégio maior, Gardone namora uma ilha no meio do Garda e a beleza da paisagem abisma (não há dúvida, eles sabem escolher). Os hotéis à beira de água proliferam em competição de beleza e galhardia florida. Tão bonitinhos e solenes! Ali se senta, em contemplação, a nobreza de título e também a que o dinheiro trouxe, que o poder económico ordena desde que o mundo é mundo. Contudo, o Savoy, em branco e azul, é lindeza exterior a que nenhuma foto faz jus; há um inédito que ciranda na leveza da sua aristocracia rendada. Aproximámo-nos da entrada – que tem coroa e tudo -  e pasmámos frente às fotos do interior; nos quartos, o pasmo agarrado a camas-íman. O Alberto a apontar uma, comedido, sim senhor, o estilo é clássico. E eu, pespineta  estarrecida, mas o que é isto, o que é que esta gente faz quando se deita, cada cama parece uma mesa de casamento… E a Lina para mim, em espanto retinto, isto é uma cama?!, e desatámos em riso imoderado, a fleuma aristocrata a enrugar de leve em suas cadeiras de palhinha clássica. Perturbá-los. A eles. Que repousavam de nada fazer, em semi voto de silêncio, mesinhas viradas ao Garda a pontuar de refrescos e outras lisuras de fim de tarde. E no poente que descosia irisados violeta, a nitidez atmosférica inundou-nos na subjacência do seu despotismo envidraçado, Deus, como o povo é estúpido. Ignorei a pose daquele classicismo rebarbativo e desatei a fotografar-lhes os candeeiros e a calma das gaivotas. Como se não fosse nada. 

sábado, 12 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Limone sul Garda


Quando olhámos Salò da margem oposta do Garda, entrevi, lá mais à frente, coladas na base da montanha, umas janelinhas que me pareceram de infindável comboio, sem comboio haver. Intrigada, perguntei ao Alberto o que seriam (imagino logo conventos, monges em voto de silêncio, coisas assim). E o Alberto de boa resposta, ainda vamos passar ali, é um túnel cavado na rocha. É claro que descansei de imediato e, como qualquer criança - é sem remédio esta mente meia infantilizada-, pensei noutra coisa.

Apesar da extensão de janelas avistadas, no dia aprazado caí impreparada na extensão e intersecções do túnel. Porque o percurso para Limone tem quilómetros e quilómetros de túnel arejado - as janelas são afinal arcadas de rocha  -, servido por amplas faixas de rodagem. Não é claustrofóbico, mas o inalterável de quilómetro atrás de quilómetro, comprime. E apesar da boa oferta, os condutores não se demoram e demandam a ansiosa luz do sol em céu aberto. Proezas de túnel às costas, quase se sente a respiração a acomodar mal o dia claro repete o seu inacreditável luminoso. E Limone surge em beleza desvelada. Oh Itália tão bonita e tão cheia de gente! Limone é uma graça onde natureza e criação humana se entrelaçam. Imagino que ambas perdidas no emaranhado humano, nas lojas de gelados e pizza e carteiras de pele e casacos e bordados e o diabo a sete. Mas depois subimos e vai-nos surgindo uma povoação quase normal, frisos de limões em todas as placas de rua e um jardim deserto e lindo onde a autarquia se esmerou a vários níveis, incluindo o de oferecer a quem passe água gaseificada, líquido muito ao gosto italiano. Depois da balbúrdia,  sentamo-nos no remanso sombreado do caramanchão. Meia hora de deleite em paisagem e lugar, olhos perdidos, mente em desvario. E a minha memória (também a fotográfica) guardou o Alberto e a Lina,  juntos num banco a conversar; e era um entendimento tão bonito de ver que apagava o Garda, as plantas e o mais.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Lago di Tenno

            A meio da tarde, abandonámos Varone e rumámos ao Lago di Tenno. Alentejana retinta e tão leiga em cascatas como em lagos, iniciei a descida ainda imersa no encanto terrível da cascata. Descia sem curiosidade, a imaginação acorrentada ao estrépito da água a precipitar.
 Certa vez, li um livro sobre as religiões e sua génese, suponho que de Mircea Eliade, e ficou-me a expressão “o sagrado irrompe no quotidiano instaurando um tempo novo”. Terá sido o que me aconteceu com o lago di Tenno. Quando se me plantou na frente aquele azul turquesa orlado de pequenos seixos brancos, parecia-me sonho divino e impróprio de mim enquanto ser vivente. Sonho igual ao do poeta que cantava, “ sabe-me a sonho estar aqui, de olhos fechados pensando em ti”. Mas os olhos estavam abertos e o meu imaginário não seria capaz de sonhar tão nítida e preclara visão; havia, inclusive, pessoas a nadar naquela beleza toda e era inegável o verde da montanha a ampará-la no repouso da tarde que descaía a amarelar. E eu ensimesmada, extasiando no inesperado, pés colados à vereda, as pessoas atrás, “permisso”. E eu de estátua desengraçada. Então, subiu-me a gratidão concêntrica dos momentos em que, claramente e a desmodo, nos sentimos eleitos por um deus. É nestes momentos de gaguez da alma que me vêm à mente expressões litúrgicas e humílimas, como “eu não sou digna…” (por certo, indigna, que toda escorro reconhecimento). Depois, abre-se-me aquela vocação de esponja que parcamente me visita. E absorvo. Inspiro. Ingiro. Creio mesmo que o termo seja, deleito-me. Assim uma coisa doce que sobe de uma ponta a outra e não chora nem ri, mas compraz activamente e desactiva a urgência. Um bíblico “façamos aqui três tendas, uma para ti, outra para nós e outra para Elias”.
E o resto não me lembro, mas devo ter andado por lá que tenho fotos. Desimportâncias.
Não cheguei perto da água. Não lhe pus mão ou pé. Mas tenho certeza que nitidamente nos encontrámos fora de horas e minutos, na orla de espuma das ondas que nem havia. À sombra verde dos ciprestes.

Subimos a recuperar-nos poro a poro, que um lago destes dissolve até à rebeldia das entranhas  (pronto, também íamos cansados). Perto do carro, saída de algum lugar, uma vozinha pequena em tamanho e idade, J’ai soif, je veux de l’eau. Olhámos e a queixinha mimada vinha de um rabo-de-cavalo em canudinhos, umas perninhas de nada a arrastar uns croc pelo pó do parque de estacionamento. O pai em voz suave e ilusória, cherche; voys-tu de l’eau? E ela em sua vozinha malograda, observando os dois lados da estrada e arrastando sílabas tristes, non, je vois pas. E lá continuou procurando, a cabecita a um lado e a outro, enquanto iam os dois ao seu destino.  

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Cascata di Varone



Numa mundividência mapeada a rigor, desatámos a subir, curva atrás de curva, em busca da cascata. O ar afilava o perfil e a paisagem crescia vertical, cumes em desafio. E nós contritos do pecado de olhos passageiros. De súbito, a placa de Varone. E logo a da cascata. Ali nos apeámos, eu em ignorância total – de cascatas conhecia o que a TV mostra do Brasil –, curiosidade acesa, ia presenciá-la in the flesh. Como de hábito, nada de concreto e antecipado. A alma, que às vezes se me arrasta de muletas, tem destas adolescências, gosta da surpresa. Prefere esse olhar virgem, brancura de nada ser que risca mais fundo. Comprámos bilhete e ainda se me pendurava o estereótipo das telenovelas, um barulho manso em queda de água que arredonda num lago mais ou menos azul e transparente. Talvez o ambiente o tenha catalisado. O lugar era pródigo em flores e espécies vegetais, havia um bar e, semeadas aqui e ali, mesinhas e bancos agradáveis que aproveitámos  para nos dessedentar. Rodeado de montanhas, aquele jardim trepador era um pleno de paz. Quem sabe, estarei apenas  a desculpar a imposição do imaginário que tanto me inibe a realidade, facto que, note-se, não entendo de má reputação.  Entrámos e desvaneci com as orquídeas a receber-nos, as ruas em mantos florais ladeados de árvores e arbustos exóticos. E, de encanto em encanto, caminhámos para a cascata. Que, em mim, continuava sendo aquelazinha mesma das novelas. Nada, mas mesmo nada, me fazia supor que a água se despenhava das alturas por uma fenda natural que esventra a rocha. Estranhei aquela subida a pé, um degrau após outro.  Perguntei. E o Luís, vamos até à nascente. Bom. Continuei subindo já sem grandes alardes de imaginação para uma nascente de cascata sem referente, que as novelas desgostam de nascentes. No primeiro estádio da subida, munido de gradeamento,  parei a admirar e, por imitação, fotografei; a água, iluminada e colorida resultava bonita, mas em nada se parecia consigo. E fotografias onde tudo parece outra coisa não me movem. Havia gente debruçada aqui e ali, admirando aos cliques a água que escorria a receber-nos já com algum ruído de queda e ressuscitando-nos por inteiro num banho benfazejo, pulverização de gotas meio difusas, que desvaneciam  em espectáculo de holofote colorido. E em nós um agrado de olhos que é refrigério, a pele aplaudindo, farta de sufocos e excessos de suor, isto sim, é viver. E depois, o lugar da cascata é lindo. Inclui o jardim botânico que todo se estende em languidez luxuriante de cheiros e cores, e música ambiente – o ímpeto de Wagner na cavalgada das Valquírias faz pendant em sonoros de queda de água.
 Farta dos meus assomos fotográficos, avanço para o segundo nível. À medida que a escalada me aproxima da nascente, noto que a natureza acelera e transfigura: o que era chuvinha e aspersão de gotas frescas torna-se tempestade raivosa, um ruído ensurdecedor de água a despenhar a toda a brida, em ímpeto de terrífica demolição. Estaco em cataclismo, a água a encharcar-me de viés, mero ricochete da pedra. Enfim, decido-me, agarro o comprimento da saia que pendura chuva e resolvo correr um corredor sob a tormenta, até ao próximo gradeamento. Sentindo-me no olho do trovão, atravesso dois ou três metros de uma tempestade cinematográfica, mas real. Lá no alto, a iluminar-nos, o olho de dragão espreita na fenda por onde a água enraiva, zangada de morte. Olho para cima aterrada e, sobre o ribombar aquoso, decido num grito de alarme, para a figura do Luís que mal diviso, Luís eu já não avanço mais; tu e a Céu podem subir, eu espero aqui. E o Luís ainda a correr no temporal, nikon a tiracolo, óculos pejados de gotas a escorrer, achega-se a olhar-me meio divertido, já não podes ir mais, ninguém pode, olha ali. Só então reparei que estava no último miradouro, com um número minguadíssimo de pessoas (dois homens, ele incluído). Restava-nos voltar sobre os passos.

Que nome tem a decisão que ocorre desnecessária?!  

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Ainda em volta do Garda


            Certa  morrinhenta manhã de calor, resolvemos retomar o Garda na Ponta di Vigílio. Mas nem sempre o homem alcança aquilo por que porfia. Pagámos um inútil estacionamento e, parque lotado, o lugar interditou-se-nos. Nem sequer uma vista de olhos à praia fluvial, também a cobrar. Aziagos com a imodesta usura dos italianos, regressámos ao bolinhas e parámos mais à frente, em Torri del Benaco onde almoçámos o nosso lanchinho num jardinzito aprazível, virados ao esplêndido Garda, ali, reino de patos e cisnes. Nesta povoação de boa memória deleitei-me com um dos melhores gelados de Itália. Ou um dos que mais me agradou. Tinha no nome o termo "mediterrâneo" e, para além do sabor que lhes é único - os gelados italianos mereciam extenso capítulo de livro - havia nele uma particularidade a prender-me: aqui e ali pedacinhos de casca de laranja, amêndoa e outros pequenos ingredientes de trincar. Amei aquele gelado. De amar mesmo. A beijar, lamber, em demoras e vagares que contrariavam o calor, curtíamos um tempo só nosso, empenhados que estávamos em sermos um. Se isto não é amor ou coisa de paixão que mexe, vou ali e já venho. É verdade que das pessoas, gosto. Mas amo gelados italianos. Fortemente. Que se há-de fazer?!
       Renovados (eu a desbordar interesseira reverência às papilas gustativas e à minha intuição), seguimos viagem e saímos   em Brenzone, onde a Céu aproveitou e deu refrigério aos pezitos; eu e o Luís de ténis, os nossos pés entrapados,  também queremos, e nós a fazermos orelhas moucas, fotografando isto e aquilo. Ali estivemos olhando o lago em sua enseada de calor, uma curva de pedras a bordejar. A conselho do Luís, fomos até à igreja medieval que nos esperava, portas abertas, do outro lado da estrada. Que bom  é rever assim um deus em convite. Que hoje, em Portugal, a maioria das igrejas está aferrolhada e só abre portas a rituais; e quanta vez  entreabre portinholas, como se missas e terços sejam coisa secreta. E que deus seja esse que lá mora - se é que mora -, não entendo. Entrámos no pequeno templo: simples, antigo, muito harmonioso; cheirava aos aposentos de Lagusello. Mas ali nos sentámos eu e a Céu a apreciá-lo e descansando do sufoco de calor, enquanto o Luís tomava conta de pertences. 
           Enfim, continuámos viagem até Torbole, zona de praia fluvial, muito concorrida, onde repetimos imagens. O Garda de Torbole é uma rotunda e ventosa barriga de água, que se enche de velas e windsurf, e agrupa um pouco do que apelido “a riviera italiana”: há por ali muita gente, muito dinheiro, muito automóvel último grito (uma data de ferraris, pois então). E há muito corpo descascado, pés calçados e protegidos das pedrinhas cinzentas que areia não há, o corpo olhando de esguelha a toalha aos altos e baixos, a interrogar-se contrafeito, tenho de me deitar ali. De modo que o pessoal a banhos faz treino de faquir, mas sem agudos. Entretanto, encarnejam flamejantes, qual lagosta suada. E conseguem parecer felizes neste calor húmido que desengalga a desidratá-los. Indiferentes à circunstância, ou talvez por vias dela, proliferam mulheres bonitas e bem tratadas, quais sementes que vingaram em terreno fértil.

Então, pretendíamos informações sobre o percurso para a Cascata di Varone e dirigimo-nos ao turismo. Bendito posto de turismo de Torbole e abençoado funcionário simpático e eficiente que nos deu um pressuroso mapa-guia do caminho para a Cascata e Lago di Teno.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Verona


E depois do repasto passeámos na praça ao lado, Piazza dei Signori, onde a estátua de Dante Alighieri dominava em respeito e compenetração. Quase deserta, pareceu-me mais agradável que a Piazza Erbe, ainda que, objectivamente, seja falso. Num pátio adjacente à Piazza dei Signori, o Museu de Arte Contemporânea e a Torre Lamberti. Declinámos visitas, Verona é uma cidade que encarece pertences. No entanto, deambulámos um pouco e caímos em novo estratagema. Oh, idiotices de estrangeiro! Galvanizados por um conjunto de túmulos altos que víamos da rua, comprámos bilhetes supondo que nos dariam entrada a algo mais. E Afinal os bilhetes – três euros cada -  serviam apenas o objectivo de passearmos entre os restos mortais da família Scalliere cujos já tínhamos observado e fotografado da rua. Oh almas perseverantemente insensatas, que não criam juízo nem por nada.
Munidos de espírito incréu, rumámos à Basílica de Santa Anastácia e ao Duomo ambos requerendo entrada paga em dinheiro vivo. Recusámos pagamentos e fomos refrescar-nos na cafetaria “Paroles”, por sinal, inesquecível, que não é hábito haver citações de Ghandi expostas na casa de banho. E por ali nos quedámos descansando, a observar a fachada da igreja, guardada por um anjo azul de longas asas, a empalidecer sob a canícula. Não invento; o anjo está lá, na sua factualidade metálica, quiçá pouco angélica.
A soletrar sombras, percorremos mais algumas ruas e chegámos à ponte romana onde tanta gente se apoiava, braço   estendido – natural e articial -, as selfies em testemunho irrevogável. Quedei-me admirando a indiferença corrente das águas, a outra margem de ciprestes a pique, as cúpulas de igreja a salientar entre o casario que aglomerava pelas colinas. Olhei a ponte. Tão antiga! Quantos homens a atravessaram e nela passaram, a crescer sonhos e cortesias. Séculos e séculos de história e somos tão terrivelmente os mesmos. A vaidade come-nos as intenções, rói-nos  desde o interior, impede-nos de ver caminho. Talvez haja quem não pertença a este mundo rumorejante e palavroso onde até eu me movo. Empreendedor. Que insta os amigos do Face ou de outra qualquer rede social, tens de reagir, não podes deixar-te abater, dos fracos não reza a história. And so on. Talvez esses hoje marginais e outrora normais devessem ser águas de rio e correr. Correr sempre. Como o Forrest Gump. Porque decerto lhes há muito tempo em que nenhuma irmandade os chama ou quer. E se reconhecem profusamente sós. Como é que se vive permeado por selfies e palmadas nas costas de faz de conta, via facebook e twitter e o mais que existe de likes. Não é que seja um mundo devastante, mas desconcerta qualquer mortal pré histórico. Isso sim..
Pois é. Quem não é modernaço… hummmm….m…m…m…Dias há em que não tem lugar sentado. Invisível, ergue-se sobre o seu cansaço. Fora dos brilhos aparentes, abraça ainda sua ponte romana de traça simples. Lá em baixo, a água continua a correr.

E depois…bem, foi o cheiro à noite a insinuar pelos campos conhecidos, as curvas em ondas de feno verde. E Castellaro Lagusello a rematar viagem, com sua ponte a cheirar a jasmim florido, o carro abrandando de gosto. Casa.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Verona

      Certa manhã, vestimos alma de principiante e seguimos para Verona. Eu, a misturar-me na verdura dos caminhos, imaginava romantismos rendados na arquitectura da cidade e um nunca acabar de beleza ignota. Ainda nos adaptávamos à urbe e já o coliseu se plantava aos olhos densamente, opado da sua monumentalidade histórica. Havia uma fila extensa e soalheira de turistas em demanda de bilhetes e rumámos a engrossá-la; o exterior prometia. Crentes convictos, atalhámos pela aparência. Porém, mal acessámos a arena, violentou-nos o olhar a crueza daquele redondo transformado em anfiteatro de espectáculos ao ar livre. Um desânimo encalorado escorria dos rostos e perdia-se em regueiras pelo metal preenchido de cadeiras que  recobria as pedras seculares. Elas lá debaixo, voz abafada pela proximidade metálica, espreitem, aqui correu o sangue dos escravos cristãos; vejam, os santos mártires pisaram-nos; reparem estas mossas feitas pelas armaduras de quantos gladiadores nos pisaram em glória e martírio; estamos repletas de morte e glória ganha por terror dela, de lutas desiguais entre homens e feras esfaimadas, de cuspo e ranho e fezes; de suores frios que pingavam à vista de certezas terríveis. Recobre-nos uma pátina de asco aos imperadores viciosos e à desfaçatez da sua corte adoecida de invejas e podridão; às mulheres malévolas que terçavam suas armas nos bastidores do poder. E agora riscaram-nos da face do sol; impediram-nos de contar o irrazoável: a angústia, os medos, a fúria dos homens frente à morte e ao arbítrio. Recusa-se a lição das pedras. 
        E ouvi-as supirar. Distintamente as escutei. Dubitativa, espreitei-as por entre as fissuras dos degraus postiços, aquele arrazoado bem podia ser alucinação de sol. E amuaram, sorumbáticas. Vexadas. Esperei mais um pouco. Então,  empedraram a  ignorar-me. Desci dois lances e observei no centro um palco repleto de engenharia electrónica. Meio desenquadrado, feito bobo da corte, zombava de nós por ofício e condição. E depois havia aquele ressoar  tragi-cómico, incómodo, dos pés no alumínio. E o calor a torrar os óbvios incautos. Ou também a rir do ludíbrio. Olhei o exterior avaliando quantos transeuntes seriam veroneses, decerto a mofarem da nossa ingenuidade. Mas não os destrincei da outra gente e regressei a abrigar-me do sol na escadaria que levava ao recinto. E por ali fiquei descansando em companhia do leque e  de mais uns tantos tansos que desanimavam sudoríparos silêncios. Por via destes sintomas, indispus-me com Verona. E mais com Julieta que nunca existiu senão na cabeça de Shakespeare e a quem construíram uma tal varanda para dar substância ao conto e à crença Por pirraça, nem de soslaio a reparei  quando seguíamos em demanda da Piazza Erbe.

            À semelhança de outras rotas turísticas, Verona vende tudo. Tem montras novas e velhas, montras de charme e refinado gosto, montras antigas e de valor, lojas chinesas muito semelhantes às que existem em Portugal. E há os costureiros e as marcas com seus ademanes singulares, a tentar o público feminino. Na Piazza Erbe, comi um primeiro calzone. E fiquei fã. Teria imenso apetite?! Sentadinha numa escadaria qualquer – alguma igreja por certo -, o calzone e a limonada souberam-me a ambrósia e néctar. Compensaram-me da empáfia dessubstanciada do coliseu.

sábado, 5 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Salò


Foi a primeira pulsação do Garda com montanha, um princípio de alpes italianos. Talvez por isso, Salò condensou-nos em encanto originário. Depois do desenho a sépia, que é como quem diz, das fotos que conseguimos da outra margem, rumámos à cidade e palmilhámos a beira lago sobre o passadiço. Aquela cidade tem espírito. Afastada das multidões de Sirmione, engrandece em paisagem o que perde em gente. E dá vontade de nela morar  (fez-me esquecer que rios e lagos não me fazem o jeito); ficar ali, à guarda da montanha e seus ciprestes em fuso. Talvez que nela o inverno mais bonito, a neve pintando cumes e a imobilidade grisalha de ciprestes a prumo, guarda pretoriana das casas. Depois dos turistas, a respiração compassada da cidade que a si mesma se devolve. Que nos é vedada. Habitamos a superfície do seu ser mundano e debutante,  a baba que que transborda. Porém, infinitamente mais bonito há-de ser o mundo interior e invernoso de Salò: o vento agreste a cortar na pele e prestes mãos enluvadas escondendo o rosto nos abafos, saudando aqui e ali, uma nuvem de fumo a condensar a respiração, pernas que se afobam. Ou o sol doente a dourá-la em sua luz amarela, velhos pela beira do lago como cogumelos, o sangue ressuscitando do bolor de dias pardos, uma vontade verde de fazer coisas. De ser. De afirmar ao mundo, existo. 

Toda a humanidade mora em Salò. Tem a vida diária que assiste o virar das estações sem muito pensar e carrega trabalho, compras, garotos, preocupações e amores, sonhos e alegrias, desânimos profundos. E aquilo que vai acontecendo devagar, parece súbito: o saco de compras muda em carrinho puxado aos esses pelas ruas, a agilidade de passos leves desfalece e quase se perde da sua natureza. E a ausência da necessidade do eu nos outros, tempera o resíduo. Aos poucos se vai a voz. Restam as mãos sem dádiva e o coração quase sem eco. A velhice sentou-se para ficar. 
No entanto, a paisagem pouco difere. E renova a cada estação. 

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Caminhos do Garda

Ao longo de seis dias, calcorreámos o Garda de muitas faces. Na tarde. Pela manhã. O completo do dia. Em torrina de sol, com céu nublado, ao entardecer. Observámos a fauna humana a espadanar-lhe as águas, em cadência de braços e pernas mais e menos experimentados; mirámos o vagar dos barcos à vela no seu despique de quase parado que sempre avança; em movimento de pescoço, acompanhámos jovens vorazes de vento, cruzando-se na prática de windsurf, velas correndo fatais, qual bola em plano inclinado. Vimos o sulco dos barcos a motor em suas proezas de meio do lago, e olfactivo nos ficou o fétido de gasóleo; observámos a entrada e saída de passageiros nos barcos de carreira que o sulcam; à sua beira nos curvámos sobre a paisagem e a admirámos silentes, num transtorno de alma; ali lanchámos, almoçámos, saboreámos gelados; correram-nos pelo olhar patos e cisnes donairosos; observámos a curiosidade viperina das cobras de água, femininas e coscuvilheiras, cabeça soerguida entre as pedras; assistimos o salto artístico das carpas e vimos passar apressadas correntezas de peixes que perseguiam ignotos destinos; num lago de jardim, pequenas tartarugas saudaram-nos da sua lentidão aquosa de fundo do tempo. 
E sempre o Lago di Garda. Imutável na sua beleza de água  evaporada que lhe lança pelas costas um suave manto de neblina e sonho, aqui e ali ciprestes a prumo, uma casa ou outra pendurada a espreitar a água. E das escarpas enlaçadas pelo vapor, se desprende um quê de romantismo e beleza terrífica de que as fotos recuperam a superfície. Mas tudo que é belo e bom tem profundidade, e tal grandeza não é captável pela objectiva. Contudo, entranha em facilidade nas almas porosas e flexíveis, a moldá-las devagarmente. E quanto lamento aqueles a quem não é dada a oportunidade. Porque lhes falta esta contemplação depurante que ajuda a endireitar um homem.

Certa tardinha de sol, no afã sempre novo do périplo do Garda, fomos conhecer Salò, cidade escolhida por Mussolini para capital do Estado Social Fascista, que empreendeu criar depois da sua deposição. Observada da outra margem, a cidade surgia linda. Descansava em pose regrada na base da montanha, pés na água, chapinhando descontracção. Num dos lados, atrevia-se ao lago e as pontas bordadas do vestido boiavam mansamente, água e terra em doce atamento. 

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Durante a marcha para Sirmione, cruzámos um ror de gente, em grande parte estrangeira. Parece que o Garda atrai bastante público alemão e austríaco, mas também os chamados “povos de leste”. Famílias inteiras, três gerações a passeio; carrinhos de bebé empurrados a quatro mãos, que os pais não fazem por menos, agarram os rebentos e levam-nos consigo; garotas capa-de-revista, em calções, biquíni, vestido ou saia, o moreno dourado das loiras em rédea solta, um fluido de polpa de pêssego a desprender-se-lhes do airoso; mulheres maduras em rancho ou a par, chalreando conversas, enganos de voz na solidão que tanto pesa. Homens sozinhos com aquela pose que eles julgam ser de engate e lembra cão sem dono, mesmo se dândis sem rasura. Velhotas de passo curto e olhinhos pequenos, encovados, luzindo amor ao mundo, uma reticência de raíz ao términus que se avista. E muitos destes em bicicleta, a pedalar suor, uma força de mágoas a estraçalhar na cremalheira dentada da roda pedaleira.
Sirmione é Itália turística: antiga e bucólica, a efervescer de gente. Aninha-se junto a um castelo de pés na água, em ruas estreitas de muita flor, bicicletas da minha inveja em airoso descanso ou movimento, alforges e cestos a completar-lhes o perfil.  E as lojas em proliferação, vendendo, vendendo. Cativou-me uma em tons lavanda que fazia venda do produto, delicadeza de cor que atraía como um conto de fadas e princesas. Mas entrou-lhe uma gorda abelhuda e esvaneceu a ilusão.
 Na volta, depois do castelo e das ruelas, da água a entardecer, repetiu-se a multidão, os automóveis, as bicicletas. Mar de gente que mexia, que passeava quem sabe se distraída, com o fito de ir para outro lugar. Não sei que ansia nos leva de um lado a outro, querendo estar onde não estamos e presentifica a estupefacção de Sá Carneiro reconhecendo-se “eu não sou eu nem sou o outro…”. E eu não queria estar em lugar nenhum senão ali. No entanto, também sonhava outra coisa. Aspirava às pessoas normais com sacos de plástico, às vizinhas que decerto existem, aos garotos em bandos que não havia. E talvez também eu tenha perdido a Sirmione que existe. E respira. E é.

No emaranhado humano dos dois ou três quilómetros de caminho, comoveu-me observar um pai com o filho, bicicleta à mão. Quatro ou cinco anos magrinhos, ao modo do garoto de “Cinema Paraíso”: calções de suspensórios e o mesmo rosto perguntador, cabelo curtinho a emoldurar. Caminhavam lado a lado, a mãozinha perdida na do progenitor, em abandono confiado; não entendi a conversa, mas, de entusiasmo, o filho saltava de quando em vez para a frente do pai impedindo a marcha, numa algaraviada que só puxadela de mão levava ao lugar, a voz do pai um veludo em fundo de autoridade. Quando os ultrapassei, discutiam o veículo e olhavam a roda da frente, um orgulho opinativo no ponteiro do garoto. E esta harmonia me pareceu mais bonita que o castelo de Sirmione a preparar-se para a noite, bebendo oblíquos de sol, gigantes de sombra a penumbrarem o espaço por que porfiara quilómetro atrás de quilómetro. Assistir ao futuro a fazer-se é uma dádiva e uma esperança a que os homens sempre se rendem. Ainda que o passado os chame em sua dinâmica estática.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Na Margem do Garda

O pensamento colado à lembrança macia do areal português e em desábito de tal grau de humidade abafadiça, visitámos o Garda. Suarento. Amodorrado. Muito concorrido. A tarde, pedindo sombras e água fresca, abeirou-nos da água e das gentes que como nós o demandavam.  Muitos banhistas avermelhavam à torrina. Passámos por eles sem inveja, implorando frondosidades e frescuras de brisa que no Garda inexistem. Tudo é quente. Nas sombras, que abundam, há um calor insidioso a colar em todas as coisas e as pedras de bancos e muros escaldam excessos. Ante tanto corpo a exudar, arrepiámos caminho, ávidos de gelados e brisas. Os gelados encontrámos, que as brisas não coadunam com a itália de veraneio. E sempre muita gente, muito automóvel de longo alcance, muita vida em demanda.
Pode ter sido excesso de multidão, de calor, de humidade. Mas em nenhum lugar daquela margem do Garda se me insinuou a sensação de ameno quotidiano. As localidades que visitámos namorando o lago, sofrem de multidão, são avassaladas. Ainda que belas e cuidadas, prestam vassalagem, apoucam a alma. São zonas esquecidas de dias de tudo igual a horas certas. É um pouco como se ali não haja vida a crescer, só passagem contínua. E não é verdade. Mirei envergonhados salões de cabeleireira, mercearias de bairro, farmácias, pastelarias. Talvez, fora da época estival, ajudem os lugares a sedentarizar, os estruturem e personalizem.

 No meio do vaivém de automóveis que passeavam e soberbos se embrenhavam por aqui e ali, só nos veio à retina uma jovem mulher-polícia de extraordinária beleza e bom porte que, no caminho para Sirmione, nos obrigou a apear. Linda de morrer, suplantava manequins de loja e até o suor lhe quadrava. A convulsão dos pés masculinos em inadvertida travagem, abrandando de encanto, a língua mais lenta, a tartamudear uma qualquer inutilidade, um redondo basbaque a solicitar a atenção expressa da ninfa. E as signoras e signorinas ao lado.  Contentes da feminil eficácia em tão supremo embrulho. Também a invejá-la. Sim. Porém, os três quilómetros que fizemos sob o calor, até ao castelo de Sirmione, calharam mal. E porém. Viva a mulher-polícia mais sedutora do mundo. Uma espantosidade no meio do alcatrão.