A
quantidade de humores que transportamos conformados ao que supomos ser a nossa
imagem! Conhecera-a há pouco mais de uma hora e tinha sucedido como naquelas
jogos em que cada sobreposição da imagem sobre uma mesma figura inicial e
rudimentar contribui para a nitidez e riqueza final. Fora assim connosco. A
mulher que saíra da rodoviária era apenas esboço, faltava-lhe substância. Se me
perguntassem por ela eu diria, ah, aquela mulher muito carregada, toda
pendurada para um lado e que encontrei logo pela manhã. E a memória dela
ficaria a adejar por uma hora ou até um pouco menos. A memória só desperta para
a duração se colaboramos. Não sei se guarda por afinidades, mas pressinto que
seja sensível e se deixe impressionar pela força com que vivemos pessoas,
acontecimentos, situações. Zita vivia
nesse paralelo invulgar dos seres que se entregam à vida sem desvios
protocolares; não era refinada ou bela; não tinha boa conversa. Mas entrava por
nós dentro sem aviso, inconsciente da intrusão.
Pensava
já no regresso, entregando-a àquela osmose benfazeja, quando lhe reparei os
movimentos dos lábios. Julguei que cantava, tão suave era a expressão. Porém, ainda
que não entendesse uma palavra, dei-me conta de que balbuciava a espaços, presa
da massa líquida. Arrepiei caminho prenhe de embaraço, assaltado por um
desvario de pudor como se a tivesse desnudado ou visto em combinação – estou
crente que a usava –. Apressei-me na recolha do saco, convicto de ter
presenciado dois momentos íntimos na vida daquela mulher. E, um tanto
apreensivo com o teor dos meus pensamentos - pruridos e tagatés não combinam
muito comigo -, plantei-me a esperá-la como se nada fosse, na maior discrição,
também para fugir à curiosidade do pessoal no escritório.
Voltou
renovada. Trazia um vagar novo de passos, uma leveza de gestos que suplantavam
os sapatos empapados de água e areia, numa súplica de corpo todo, acudam,
acudam que morremos, o cabelo húmido em revoada sem tino. Desanuviada, parecia
mais jovem. Passei-lhe a encomenda e preparava-me para um adeus até outro dia,
quando ela, mão direita solene a pousar-me
no antebraço
-
Muito obrigada. O mar é a coisa mais bonita que já vi no mundo. Sem a sua ajuda
não lhe punha a vista em cima. Se algum dia for à Igrejinha…
Então
a pergunta veio-me de novo, saiu-me num rompante inadvertido
-
Zita, com quem é que falava no barco?
Ela
seriíssima, olhos nos olhos
-
Com Deus. – e ao ver a minha expressão - Não acredita. Não vem mal ao mundo por
isso, deixe lá. Olhe eu não sou de missas nem de igreja, nem sei se o Deus que
me escuta é um Cristo, até acho, Deus me perdoe se digo mal, que não tem
retrato. Mas é verdade que falo muito com ele, converso, quero dizer. O senhor
sabe lá os mundos calados que uma mulher atravessa. É que não têm tamanho. Tanta
gente a passar-nos à soleira sem um reparo ou olhar que seja. Não é tanto para pedidos
que o requeiro, que não preciso. É para lhe contar, que sempre me ouve, tenho
certeza. Sabe o senhor, desabafo com quem não entristece de ouvir. E aproveito
para agradecer a gente boa que me tem posto na frente – abriu um sorriso tímido
e confidenciou baixando a voz –. Ainda agorinha, ali rentinho à maré, o
agradeci a si. E também pedi que lhe tomasse conta, que o senhor precisa.
-
Mas eu não sou crente – rematei a sorrir
-
Não carece. Deus é pai de todos, não anda cá a escolher este e aqueloutro. Por
isso é que é Deus. - e como se já tivesse dito demais - Então até
logo e obrigadinho por tudo – e desandou em direcção ao autocarro.
Fiquei
um momento a observar-lhe a inclinação da silhueta até se perder no interior do
veículo já a bufar impaciências de gasóleo. Em seguida, encaminhei-me para o escritório. No elevador, rememorei a
nossa conversa e intriguei no “até logo” final. Talvez esperasse que nos
encontrássemos no barco. Ou, avessa a despedidas, optasse pelo adeus mais suave.
Sorri, “até logo”, deixa a mesa posta ao
reeencontro.