sábado, 28 de março de 2015

Inscrição

A  luz do dia é mais clara se dormimos. O sono comanda-nos os dias e só há mesmo manhã, se acordamos. Nenhuma claridade nasce da insónia.
Um destes dias bateu-me a saudade e fui ver o meu pai. E nessa tarde de um dia destes, pela primeira vez, notei-lhe a velhice. Ou ela se me quis mostrar. Entrou-me pelos olhos dentro o peso dos anos esparramado pelo corpo num à vontade abusivo. Será do meu olhar, mas está diferente o meu pai. Tinha um ar afilado que lhe fugiu, abolachou. Como se já não necessite viajar e a pose de quilha lhe seja inútil. 
Estava sentada a seu lado a ouvir-lhe as histórias e a pensar  na viagem que encurta, a última estação já a distinguir-se. A pensar que, sem esta raiz, nos teremos de reinventar. E que todos os momentos com ele – enquanto ainda é dono de si - se tornam a cada dia mais preciosos.
Mas a verdade é que a morte não liga muito a cronologias.

Como a vida é efémera!

sexta-feira, 20 de março de 2015

“Fazes-me falta” Inês Pedrosa

E caracterizei as personagens e li trechos de cada uma; e projectei a Inês em alguns alegretes daquela mulher – é um canteiro de flores a garota. O estado actuante de paixão salvadora de que a personagem feminina se reveste parece quadrar com Inês Pedrosa pelas causas em que se envolve e a forma algo arrebatada e muito existencial de se exprimir em entrevistas e programas que vi e ouvi.
E revesti de ternura acalorada aquele homem tão mais velho que a poupava a observações mais contundentes, a protegia quase paternal, gostava dos seus deslizes e apropriações, se orgulhava das ideias que ela lhe roubava, no sem distância tão do amor que também é amigo (olha, olha, que amigo faria isso, Inês). E discorri sobre uma amizade que não existe nem pode, de romance. Sem corpo de desejo, mas com o corpo. As coisas que a gente lê e gosta sabendo-lhe a verdade apenas imaginária. É indubitável, os ideais continuam bastante apetecíveis.
Inês Pedrosa afirmou em algumas entrevistas que escreveu sobre a morte porque vivera a experiência  de perda com a morte do pai e foi a forma de pacificar a dor, exorcizá-la. Além disso, considera a amizade um sentimento de rara pureza, a forma de amor mais despojada de interesse. Daí o ter imaginado um universo relacional que não inclui o amor sexuado e onde o prazer se situa apenas ao nível de afinidades e sentimentos tornados cúmplices pela proximidade entre os dois personagens. Ainda que a personagem feminina afirme, “nós nunca fomos cúmplices, éramos promíscuos. Dedicávamo-nos a combater o pensamento um do outro até chegar à névoa humana.”, verifica-se ao longo da obra que em muitos aspectos da vida existem os dois em contraposição justaposta, numa oposição tão simétrica como acontece nas afinidades. E a verdade é que viam um no outro o que escapava aos demais “ninguém sabe falar de como tu fumavas, com o cigarro entre o terceiro e o quarto dedo da mão esquerda. Ninguém é capaz de descrever a curva dos teus dedos em movimento de marioneta”. E essas memórias, diacrónicas ou em uníssono, fazem o universo significante de todo o livro. Ainda que Inês o tenha querido rematar com a ética, dar-lhe um sentido, sabemos que não é isso que une aqueles dois. Quase parece que Inês Pedrosa tentou exorcizar um amor que não o do pai, que se apresentou ou não quis ir além de (quiçá, até por vontade de ambos os intervenientes). Asseguro: não é possível escrever tal romance de cor. É minha opinião que Inês Pedrosa não tem livro mais marcante (ainda desconheço o último). É certo que amadureceu conhecimentos – é quase especialista no Padre António Vieira, por exemplo -, conserva a depuração de linguagem, burila melhor o seu cristal, mas não voltou a conseguir a proximidade quente, confessional, de Fazes-me falta. Admito: será preconceito. Concedo, nem todos os romances beneficiam com o pendor  de “Fazes-me falta”. Mas, dentro do género, tem força. Quem sabe, hoje, agarrei alguma daquelas garotas com ele.

Porque será que a Inês se queixa tanto da falta de importância dada aos escritores da sua geração?! As oportunidades de emprego e de trabalho como escritora  – não está em causa o mérito –, a diversidade das suas publicações e os prémios recebidos, desmentem…. 

"Fazes-me Falta" Inês Pedrosa

Voltei ao “Fazes-me falta” de Inês Pedrosa. Por preguiça e ametodismo sistemático. Não me lembrei que ontem era um obrigatório dia de mãos na cozinha. Mãos e o corpo todo, que não faço por menos. Ou bem que estou, ou bem que não estou. E os princípios da física – e também da lógica – traçaram o resto, não posso ser simultânea em dois lugares. Consequentemente, não podia preparar o tema da Semana da Leitura e mergulhar na culinária. Há quem consiga, mas sou, em algumas poucas coisas, uma mulher atípica: não faço muito ao mesmo tempo. Em primeiro lugar porque não me apetece cansar-me em demasia. Em segundo porque estou sempre a fazer duas coisas, a actividade que me destino e o meu monólogo sobre ela – bem digo que converso com a gata, tretas, converso comigo, a gata é mesmo só para enfeitar, aquele olho de vidro azul transparente percebe lá alguma coisa. Em terceiro, porque não é estimulante para a terceira idade – na qual entrei precocemente e contrafeita – andar a apagar muitos fogos. Não é a idade da serenidade? Pois então. Portanto, optei por culinar. À noite, vim terminar a releitura do romance e fui dormir sobre. Voltar-me na cama. Hoje escrevi drasticamente um esquema apressado, pensei no como da apresentação e faltei ao compromisso que tenho com a água.
Li as críticas ao romance e são do melhor. Tinha-me entusiasmado na primeira leitura. Julgo que seja um bom romance para uma turma de humanidades. E lá fui explicar o feminismo e as suas lutas, contrariar o meu ex-slogan – completamente parvo, diga-se de passagem – “Sou feminina , não sou feminista”, mostrar que uma coisa sem a outra não existe – é tudo ou nada -; lembrar que as leis são um caminho para uma realidade diferente mas só a mudança das mentalidades – homens e mulheres – modifica o quotidiano. E as mentalidades são lentas. E lentas. E lentas. Falar do direito ao próprio corpo de que tanto abdicamos e da qualidade que pode haver numa relação entre iguais. E mais coisas que não me lembro.
E depois veio a Inês a reboque e mais as suas lutas que ela não deixa por menos e as assume na vida e no papel. E o “Fazes-me falta”, romance de que gosto por haver nele vibração de verdade (e quero lá saber das críticas que li e se concordam ou não comigo. Eu concordo comigo e parece-me suficiente. Por agora), escrito num estilo que considero diarístico e poético a escorrer (na segunda leitura as metáforas emperraram-me um tanto o pensamento, pareceram-me por vezes em catadupa e outras surgiram-me repetidas). Mas é aquela veemência que nos convence. E, sendo sobre a morte, não é um livro  triste.

Porém, todos os livros são sobre a morte. Foi o que tentei provar e não sei se consegui. Os homens escrevem por temporalidade, o mundo divino prescinde da escrita, o seu eterno presente enche-se com o ser redondo que é, sem memória ou palavra, incha de si e basta, “Deus é aquele que é”. Não há mudança sem morte, não pode haver o novo sem a extinção do velho (Anaximandro, Anaximandro). Seja isso o que seja. Morramos pois. Diários e diáfanos. Até ao ponto sem sentido que, desde o nascimento, dá sentido à nossa linha pequena. Oh certeza fatídica que sem ti não saberíamos nem como experimentar viver. 

quarta-feira, 18 de março de 2015

Olívia



Morreste. Assim. Sem mas nem mais.
De alguma forma já tinhas morrido. Se habitas um Olimpo omnipotente, sabes quando. Se não, digo-te que foi no dia em que não me quiseste junto de ti, quando vali menos do que uma prima de Lisboa, lembras-te? A tua voz no telefone a escolhê-la a ela. Sei, não o disseste com o propósito de magoar, foste em absoluto sincera e sou-te grata por isso, situarmo-nos dentro das afeições e situá-las dentro de nós, é bem de primeira necessidade. E tu, a uma prima que ficaria contigo uma semana não podias roubar três ou mesmo quatro horas de um dia. Não tive em ti esse merecimento. Estúpida de mim! Quando o afirmaste, logo comecei a dizer que era engraçado conhecê-la. Cerceaste-me sem hesitação. Eu não te dava jeito. Tinhas razão, sabes? Nem para mim mesma sou uma pessoa jeitosa.
A morte é um domínio tão obscuro. Não sei se podes ver-me. Se me lês. Se agora, finalmente, me conheces a alma. Quero crer que sim. Que, nesse reino desconhecido dos homens, o teu pensamento exista e possas compreender-me. A mim. Que sou ainda esta amálgama de terra, sangue, nervos, ossos e o mais.
Quando alguém me ligou – quem sabe, a prima de Lisboa – a comunicar, não houve surpresa, que as más notícias do coração sempre se me fazem prévias (não nascem como os cogumelos). A verdade é que pedias para ver as minhas fotos de família, mas desconheço por exemplo a aparência dos teus pais; se há fotos deles, não mas mostraste. Porém, uns dias antes da tua morte, vi a tua mãe, imagina! Acordei na certeza de que ela a meu lado. Suponho que tenha sido um sonho. Só pode ter sido um sonho. Mas eu sei quando os sonhos me avisam embora quase nunca saiba de quê. Neste, nada aconteceu. Não houve história, cenário, voz, cores. Era apenas o rosto dela  - que na verdade desconheço e nem sei se seria aquele, mas acredito – em visitação, uma fotografia desmedida a olhar-me a preto e branco. E nem a sombra de um sorriso. Tão séria, a fixar-me. Acordou-me o assombro daquele olhar enigmático, intrigada com as ondas do basto cabelo grisalho, único factor que parecia real e mesmo desenquadrado.

E pronto. Quem sabe, ainda gostas de um abraço justinho e sem roda para os caminhos do eterno:)

terça-feira, 17 de março de 2015

Zita do Caco

Depressa deixei Zita para trás, o dia a rolar devagar, na atonia desinteressante das horas de expediente. Contudo, quando à tardinha me vi no convés a caminho de Setúbal, circunvaguei os olhos. Decididamente, ela não se encontrava na cabine ou no banco sob o mastro. Encolhi os ombros e esqueci-a mal abri o jornal adiado desde cedo. Mais ou menos a meio do rio amodorrei e senti que as folhas começavam a escorregar. Ensonado, apanhei-as do chão e dobrei-as depositando o diário no lugar vazio a meu lado. Era  hábito os jornais passarem de mão em mão entre as duas margens. Só na última viagem do dia, ficando algum ao desmazelo, o funcionário tratava de o recolher. Cruzei as mãos uma sobre a outra e adormeci.

Abri os olhos com esforço, inexplicável contundência dolorosa a fechar-mos. Sem ousar um movimento, verifiquei pelas figuras rectas do meu campo visual que não me encontrava no barco. Mirava parte de um tecto claro, um ar condicionado metálico e com barbas e a nudez alta de uma janela. Porém, acima da dor e da estranheza, mau grado lembrar-me que Zita não regressara comigo, palpável e saliente, percorria-me a sensação da sua companhia;  sentia-me envolto na nitidez debruçada do seu sorriso. Em esforço, perguntei, Zita, está aqui. Porém, julgo que apenas mexi os lábios. Ou terei balbuciado. No entanto, ouvi distintamente
- Doutor! Ele acordou.
Atónito, vi aproximar-se primeiro uma cabeça e em seguida distingui um tronco de bata branca, estetoscópio ao pescoço. Encontrava-me no hospital de S. Bernardo, deitado na maca, a inspirar a mistura morna e levemente repugnante do cheiro de doença e fármacos, acirrada pelo ar condicionado. O doutor aproximou-se e, ajudado por uma enfermeira - provavelmente a voz de, doutor ele acordou -, pôs-se a observar-me num ritual inspectivo, quase de peça a peça. Ela num sorrisinho cúmplice, a tapar e destapar minúcias, e páre de chamar a Zita, não há aqui nenhuma.
O médico, depois de me perguntar, nome, idade, residência… uma luzinha a apontar-me os olhos
- Essa confusão de cabeça já passa. Hoje é o seu dia de sorte. Se não tem tropeçado…. – e enfatizou as reticências -  quem vinha atrás de si não vê motivo ou explicação para o aparato da queda, mas o automóvel passou alucinado e ceifou a gente da passadeira. – e com bonomia, a dar-me uma palmadinha no ombro -. Salvo por um trambolhão, hein? Tem de comemorar.
Passada uma hora estava na rua, livre de dano maior que uns arranhões e a dor de cabeça entrada em processo de desinstalação muito cheio de hesitantes vagares. Intrigado e inconclusivo, segui a caminho de casa pesando o sucedido e suas coincidências e acasos.
Nos dias que se seguiram, inquiri a senhora do quiosque, a marinhagem, passageiros habituais. Ninguém guardava memória de Zita ou nos tinha visto à conversa. Em desespero de causa, lembrei-me do porteiro e fui procurá-lo confiante no saco que guardara. Que tinha tirado o dia para ir à terra a um funeral e desconhecia quem o substituíra. Corri chefias e gabinetes intermédios, falei com paquetes e coordenadores, ninguém me alumiou ou deu um nome. E eu que o  vira e com ele falara, na turvação, nem sequer dera pela troca. Então, convicto de que todas as coisas tendem naturalmente para o seu ser que é de todo imperfeito, encerrei o assunto.

Jamais fui à Igrejinha confirmá-la. Não passei no Pinheiro da Cruz a verificar-lhe o filho. E continuo descrente. Contudo, em momentos cruciais, regressa-me aquele sorriso.

Zita do Caco

A quantidade de humores que transportamos conformados ao que supomos ser a nossa imagem! Conhecera-a há pouco mais de uma hora e tinha sucedido como naquelas jogos em que cada sobreposição da imagem sobre uma mesma figura inicial e rudimentar contribui para a nitidez e riqueza final. Fora assim connosco. A mulher que saíra da rodoviária era apenas esboço, faltava-lhe substância. Se me perguntassem por ela eu diria, ah, aquela mulher muito carregada, toda pendurada para um lado e que encontrei logo pela manhã. E a memória dela ficaria a adejar por uma hora ou até um pouco menos. A memória só desperta para a duração se colaboramos. Não sei se guarda por afinidades, mas pressinto que seja sensível e se deixe impressionar pela força com que vivemos pessoas, acontecimentos, situações.  Zita vivia nesse paralelo invulgar dos seres que se entregam à vida sem desvios protocolares; não era refinada ou bela; não tinha boa conversa. Mas entrava por nós dentro sem aviso, inconsciente da intrusão.
Pensava já no regresso, entregando-a àquela osmose benfazeja, quando lhe reparei os movimentos dos lábios. Julguei que cantava, tão suave era a expressão. Porém, ainda que não entendesse uma palavra, dei-me conta de que balbuciava a espaços, presa da massa líquida. Arrepiei caminho prenhe de embaraço, assaltado por um desvario de pudor como se a tivesse desnudado ou visto em combinação – estou crente que a usava –. Apressei-me na recolha do saco, convicto de ter presenciado dois momentos íntimos na vida daquela mulher. E, um tanto apreensivo com o teor dos meus pensamentos - pruridos e tagatés não combinam muito comigo -, plantei-me a esperá-la como se nada fosse, na maior discrição, também para fugir à curiosidade do pessoal no escritório.
Voltou renovada. Trazia um vagar novo de passos, uma leveza de gestos que suplantavam os sapatos empapados de água e areia, numa súplica de corpo todo, acudam, acudam que morremos, o cabelo húmido em revoada sem tino. Desanuviada, parecia mais jovem. Passei-lhe a encomenda e preparava-me para um adeus até outro dia, quando ela, mão direita solene a pousar-me  no antebraço
- Muito obrigada. O mar é a coisa mais bonita que já vi no mundo. Sem a sua ajuda não lhe punha a vista em cima. Se algum dia for à Igrejinha…
Então a pergunta veio-me de novo, saiu-me num rompante inadvertido
- Zita, com quem é que falava no barco?
Ela seriíssima, olhos nos olhos
- Com Deus. – e ao ver a minha expressão - Não acredita. Não vem mal ao mundo por isso, deixe lá. Olhe eu não sou de missas nem de igreja, nem sei se o Deus que me escuta é um Cristo, até acho, Deus me perdoe se digo mal, que não tem retrato. Mas é verdade que falo muito com ele, converso, quero dizer. O senhor sabe lá os mundos calados que uma mulher atravessa. É que não têm tamanho. Tanta gente a passar-nos à soleira sem um reparo ou olhar que seja. Não é tanto para pedidos que o requeiro, que não preciso. É para lhe contar, que sempre me ouve, tenho certeza. Sabe o senhor, desabafo com quem não entristece de ouvir. E aproveito para agradecer a gente boa que me tem posto na frente – abriu um sorriso tímido e confidenciou baixando a voz –. Ainda agorinha, ali rentinho à maré, o agradeci a si. E também pedi que lhe tomasse conta, que o senhor precisa.
- Mas eu não sou crente – rematei a sorrir
- Não carece. Deus é pai de todos, não anda cá a escolher este e aqueloutro. Por isso é que é Deus.  -  e como se já tivesse dito demais - Então até logo e obrigadinho por tudo – e desandou em direcção ao autocarro.

Fiquei um momento a observar-lhe a inclinação da silhueta até se perder no interior do veículo já a bufar impaciências de gasóleo. Em seguida, encaminhei-me  para o escritório. No elevador, rememorei a nossa conversa  e intriguei  no  “até logo” final. Talvez esperasse que nos encontrássemos no barco. Ou, avessa a despedidas, optasse pelo adeus mais suave. Sorri,  “até logo”, deixa a mesa posta ao reeencontro. 

sábado, 14 de março de 2015

Zita do Caco

Baixei os olhos enquanto as mãos dela, moiras de trabalho, regressavam às asas do saco que os balanços de acostagem sacolejavam, o silêncio a  encaixar no desalento do instante. E Zita erguida sobre a sorte, olhos secos, semblante desenhado à faca, boca guardada por vincos fundos, sentinelas da pele que eram gritos de sofrimento. Entretanto, o barco encostava suavidades a chapinhar no cais enquanto uma revoada de gaivotas em ziguezague enchia o ar com a sua algazarra belicosa na disputa de peixe  e pequenos lixos de porto. A mulher levantou-se prestes na cadência e ajudei-a com o peso, a ampará-la de cada vez que o casco embatia nos pneus do cais, a água a engordar nódoas irisadas de gasóleo. Acautelámo-nos dos veículos que zuniam como abelhas e guiei-a até ao passadiço de peões sugerindo
- Cada um pega numa asa. A senhora tem muito caminho pela frente com ele a pesar-lhe.
Zita assentiu com um aceno e, numa decisão da vontade, arrebitou um sorriso sacudindo escuridões.
- Pois claro, obrigada. Hoje é dia de festa, vou ver a luz dos meus olhos e isso é que vale. E conheci o Sado. Diz que há uma camioneta para o Pinheiro da Cruz, o senhor não se importa de me ver o horário quando desembarcarmos que eu não sei onde é?
Anuí a descansá-la e fizemos o percurso em silêncio, eu meio tolhido, a refrear uma pergunta debaixo da língua. Acomodei-a junto à gelataria, pedi-lhe que esperasse um pouco e dirigi-me ao quiosque. Quando regressei guardava a mesma postura, olhos a beber o rio. Depois de a informar do horário e do lugar do autocarro, suspirou aliviada. Adiantou o braço esquerdo, deu uma mirada no relógio de pulso antigo, vidro riscado e bracelete esfolada, e virou-me o pedido
- O senhor não é capaz de me tomar conta do saco enquanto eu vou ali àquele lado num instantinho ver o mar?
Consultei o relógio. Ainda faltava meia hora e trabalhava a dois passos. Agarrei o saco, desviei-me do caminho e indiquei-lhe a senda palafítica que leva à praia.
- Pode ir por ali e não se preocupe, só entro às nove e meia e trabalho naquele edifício, está a ver?
Ela certificou de soslaio as indicações e abriu-me um sorriso grato, quente, como só as mulheres sabem. Depois, deu meia volta e internou no passadiço.
Fiquei parado uns instantes, roído na curiosidade dos seus olhos primordiais a olhar o mar. Observá-la frente ao imenso azul-verde de Tróia. Convicto de que seria uma oportunidade única, levei o cesto até ao edifício em que trabalhava, deixei-o na portaria e meti pelo passadiço imediatamente à direita do que indicara a Zita. O frio húmido e os fiapos de névoa não predispunham, e a praia deserta reinava sobre o tempo, entregue a si mesma. Na maré baixa, a rebentação era suave e a areia cama desfeita. Aqui e ali, a esmo com a caligrafia das gaivotas, notações da noite de amor em vestígios de espuma, pequenas conchas de búzios, caracóis marinhos e outros atentos caprichos de amante. 

Zita não me apercebeu. De pé, sapatos enterrados na areia molhada, a rasar a rebentação, encantava na paisagem agitada de brisa e sal. Especada. Quieta. Cabelos e cachecol a esvoaçar para trás, olhos presos na fixidez repetida da ondulação, transfigurava. Imbuía no desusado ser magnético do mar e como que se envenenava dele, em indisfarçável feitiço de alma. Zita, criada na modorra dos estios e no sofrimento de agruras invernosas. Zita, sorvedouro em aguda atenção. Zita diluída no universoórgão que pertence ao corpo na adequação mais funda de si. Ela e a sua raiz de limo à tona do olhar.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Zita do Caco

 Indiferente a singularidades atmosféricas, a mulher olhava desvanecida e parecia conversar ainda que nem um som lhe escapasse. Porém – e isso eu podia observar -,  mexia os lábios tão docemente que esforcei a vista sobre a névoa. Era inegável, não tinha interlocutor visível.
- É o rio Sado – disse eu didáctico, a quebrar-lhe o solilóquio -. Aqui, é rio. Do outro lado, mar, a praia de Tróia. A senhora de onde vem?
Ela sem se virar, olhos a medir o espesso de névoa.
- Da Igrejinha. É ao pé de Évora, o senhor conhece?
- Conheço de nome, nunca lá fui. A que horas chegou à cidade? – retorqui admirado; e em confirmação digital e nevoenta acrescentei - ainda não são nove.
Zita continuava meio alheada, remexendo no saco, ajeitando o que, pelo som, me parecia loiça
- Saí às quatro de casa, apanhei o carro em Évora eram cinco e meia e cheguei aqui ainda era escuro.
Relanceei-a meditabundo, o barco em oscilações que faziam dançar cordame e cesto. Julgava que mulheres de tipo sacrificial já não existiam, que as leis da democracia as tinham finado. A minha aérea juventude conformava a realidade à lei, mas, e a despeito das filosofias que fazem coincidir o ser com o pensamento, no mundo físico e humano não basta pensar para ser. Contudo, esta verdade era-me estranha, vivia ainda desacordado dela. Atentei-lhe melhor na figura e ela, desabituada de atenções, atabalhoou o jogo  de mãos a impedir o cesto de deslizar banco fora e perorou num esgar
 - O senhor não repare, isto que trago por cima é tudo da minha filha, não sou destes preparos, mas ateimou que cai aqui muita humidade e que saía de noite. Coisa de gente nova, que eu até me parece que ando ensaiada.
Pensei no quanto a mulher foi e ainda é treinada na obediência, ensinada a desculpar-se do que culpa não tem, a varrer o chão que pisa, de recuas, tornada uma intocável.
-A sua filha estava certa e fica assim mais agasalhada – respondi ao arrepio do pensamento e dos seus gestos engasgados.
A mulher deixou-me cair a resposta na inutilidade e quase lhe senti o pensamento a desviar. Insatisfeita com o saco das preocupações, recomeçou a alinhar os pertences uns sobre os outros, num desvelo ímpar. Senti a obrigação de me interessar
- Vai muito carregada.
Virou-se num ápice, a destapar conteúdos envolvidos num alvo e avantajado pano de cozinha rematado com biquinhos de crochet e saiu-lhe num alívio
- Isto são umas coisas para o meu Lucas que está preso no Pinheiro da Cruz. Coitadinho, ficou doente, são febres com certeza. De modos que lhe levo uns comerzinhos caseiros lá da gente, que ele pela-se por eles, sempre a pedir-mos quando ia a casa; e mais uns mimos: doces - a mão aberta, a abarcar entre polegar e mínimo a largura de dois tupperwares pejados -, uma frutinha sem cura - exibia uma maçã vermelha -, uns queijinhos de azeite - e acenava com um saco plástico - e alguma roupa de baixo - passou um dedo a revisar uma rima de cuecas e T-shirts e acrescentou numa dor de alma, acabidando tudo -.  Que aquilo, o comer na prisão deve ser uma lavagem de porcos. – uma nuvem atravessou-lhe o rosto – Sabe o senhor, custa-me a crer que o meu filho foi preso. Veio para Setúbal sozinho a arranjar trabalho ainda nem bem tinha os dezasseis, que só os fazia daí a dois meses. Telefonava que estava como Deus manda e tinha um bom emprego numa fábrica, estimadinho de frio e calores. Que não queria namoradas para juntar mais dinheiro. Ia à Igrejinha todo janota e tão bom pra mim, levava-me sempre uma prenda, até um frigorífico me comprou. As vizinhas a invejar, a Zita do Caco é que tem sorte, filho mais amigo que aquele não pode haver. E depois, vai-se a ver e um dia telefonam lá para a loja onde a gente se avia, que estava no Pinheiro da Cruz – e num à parte -. O senhor pode não acreditar, mas eu nem sabia o que era. – elevou um derreado de tristeza -  Depois, num aperto de coração, que isto está-se vendo que os filhos são sempre filhos, pedi à minha Manuela que fizesse uma chamada para a prisão que eu sozinha  não me entendo com os telemóveis. Ainda tinha esperança que fosse uma mentira que pregavam à gente. 
Endireitou o corpo. Depois, olhos baixos e mãos atarefadas, ensimesmou nas pontas do cachecol a emparelhar-lhes o tamanho como se fosse ponto de honra,  e reatou
- Mas é que era verdade e ainda disseram que o apanharam a guiar um carro roubado e há que tempos que não sabia o que era um emprego, imagine lá a minha aflição – e, dedos grossos a rodar a inconsciência do cachecol no pescoço a um lado e a outro, em mágoa de ferida aberta, surdinou -. A vergonha que não é…só eu é que sei. Nem a mãe de Deus a teve assim, que o filho dela foi sempre de boas contas – e alteando um suspiro –. A vida não é como a gente quer, é como tem de ser.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Zita do Caco

Entro na ponte a tempo do último carro, bendizendo o número de viaturas que me permitiu chegar. Sigo em direcção à pequena cabine e sento-me a olhar o parque automóvel em que o barco se transformou.  Alguns condutores abrem o vidro e ficam à mercê da frescura matinal. Há quem saia, se debruce na amurada a fazer-se vizinho do corrupio de gaivotas rente à água e regresse de jacto ao assento, quem não desgrude do telemóvel, quem adormeça ou relaxe, olhos fechados e cabeça apoiada no assento. Depois de um apito rouco, o barco sai da dormência, espevita de motor e avança molemente, trôpego em caminho de água. Inspiro. Acalma-me o cheiro a limos que infiltra, o ar pejado de vapor de água a fazer-se um com pestanas, sobrancelhas, cabelos. Bolhas minúsculas acumulam e engordam até escorrer em fio na superfície dos veículos enquanto a proa pede licença à massa aquosa e passa a desviá-la, dois lados a nascerem e os peixes de olhos crescidos, num alerta de barbatanas, as guelras como um fole, fuge, fuge. Suspiro quase feliz e relanceio o olhar. Surpreso, descubro por debaixo do mastro, mesmo na minha frente, no assento mais protegido do convés, a mulher do saco. A despeito da carga, chegou primeiro que eu e segura-a a seu lado, mão direita em cioso prolongamento do cesto. O cachecol cai-lhe a trouxe-mouxe uma ponta junto ao tornozelo quase a rasar as tábuas do chão, gorro e cabelos em desaguisada comicidade.  Estranha a pormenores e a mim, observa o rio com atenção escolar. Aproveito-lhe a distracção e escrutino-a. Tem a pose séria e paciente das mulheres que tudo podem e pouco querem. As rugas espraiam pelo rosto, qual semente em boa terra e a flacidez da pele acentua o austero do semblante que os olhos suavizam.  Senta-se direita, a fazer peito ao destino, viga mestra de vidas que a circundem. Desconhece que é escrava da história e ainda pena na assimetria das relações. Para ela o mundo é como é, nunca terá pensado em mudá-lo. E tudo isto o corpo lhe diz, desde a firmeza sôfrega e áspera das mãos a mover dedos riscados por cortes encardidos e unhas sujas e rentes, ao olhar directo de farol onde as sombras de sujeição petrificaram, passando pela amargura da boca, alheia a sorriso amplo e gargalhadas. A meio do rio, um compacto de névoa agride o espaço e a humidade pesa-lhe no cabelo que sobra dos abafos e pende inanimado sobre o cachecol. Quase a sentir-me um invasor de propriedade privada, saio e convido-a a entrar, que ali está melhor. Olha-me incrédula, sorriso contrafeito e curioso, num deslumbramento acanhado de rato de campo perdido na cidade
- Muito obrigada, mas eu ainda nunca tinha visto o mar, sabe? Não lhe conhecia o cheiro, nem o ventinho frio. Tão pouco sabia do nevoeiro aqui rentinho à água – e num desabafo inesperado – tão bonito andar assim no barco como se fôramos dentro de uma nuvem. O senhor não acha?
     Creio que só nesse momento a vi inteira. Seria da névoa que nos rodeava, mas pareceu-me que as sombras lhe fugiram dos olhos ao  descobrir o mundo  singelo e a sua beleza interdita. Ou de que os homens se interditam olhando-o sob o véu da sua mesma complexidade. Pareceu-me tão autêntico o comentário que dei por mim num aceno afirmativo. Não era possível que eu, pragmático convicto, que espavoria sonhos e devaneios, conseguisse imaginar-me dentro de uma nuvem. Para mim um barco no nevoeiro é um barco no nevoeiro. Mas o certo é que confirmara e que em duas passadas fechei a porta da cabine ora deserta e me debrucei sobre a humidade do banco a embeber as gotas de água com o lenço. Ouvia-se um rádio que divulgava o estado do trânsito na capital e, em fundo, a deslocação da água a fazer cama ao ronronar manso do motor.  Quase podíamos pensar que éramos nós dois e o barco sobre a água, tão difuso me pareceu então o mundo em que ela, motu próprio, se instalara. Sentei-me cosendo o casaco ao corpo, o saco a separar-nos, e pensei na loucura que era abandonar a cabine de passageiros para ficar ali a arrefecer e encharcar de humidade.

domingo, 8 de março de 2015

Querido Deus

Peço desculpa por te escrever no tarde da vida e espero que, ao fim de tanto ano, saibas ao menos quem eu sou. Para te falar com franqueza és mesmo o meu último endereço. Devias ser o primeiro, mas que queres, dá-me mais jeito escrever a quem é como eu, as cartas para um deus, por mais que se não queira, são sempre de baixo para cima, logo, pouco democráticas. Certo, oralmente já te pedi muita coisa. Mas adaptei-me ao teu ser de ter o mundo todo às costas e penso que lá terás as tuas razões para permitires ou enviares  o que bem entendes e nem sempre é o que desejo. Na certeza porém de que os teus desígnios são insondáveis, não é apenas burrice de je.
            Antes de pedir seja o que for – sim, sim, vou pedir qualquer coisa; se não queres nada comigo, para de ler - gostaria de rever algumas particularidades em que, certamente, puseste ou o prego ou a estopa. Senão vejamos: nasci com peso a menos; que morria, que morria e compus-me. Aos dois anos adoeci dos mamilos (achas algum jeito a uma doença destas em tenra idade, vá, diz lá) e parece que ia morrendo; fiquei com defeito, mas fui em frente. Aos dezoito arrasaste-me e convenci-me que não escapava, mas renovei. Aos cinquenta afundei em desencanto e a inanição apetecia-me, a morte era de somenos. E agora, aos sessenta, resolves massacrar-me com uma data de coisas que só acontecem, por norma, depois dos sessenta e cinco?! Ora bolas!, então eu que sou atrasada em quase tudo, só me adianto no avesso. Assim não vale. Cumpre as estatísticas, caraças. Morres aos trinta e três, sabes lá tu o que é ir prescindindo das coisas de que gostas ou te entretêm. Ok, foste crucificado que é bem pior. E tens razão, eu queria morrer toda gastinha e é o que está a acontecer. Por esse lado, não faz sentido reclamar. Mas faz por todos os outros.
            É em nome desses outros aspectos que te peço: deixa-me nadar mais uns tempos; arranja forma de eu voltar a fazer tricot, não me tires já a bicicleta, manda-me sff alguma alegria que estou precisada. Sobretudo, porta-te bem comigo nas férias: que a minha perna não arme em parva no calor do norte de África e o ombro não despenque.
            O resto a vida levou, tu levaste, eu desbaratei. Ou está cá a moer-me o juízo e o corpo.

Pronto, não me queixo mais. Podes ir atender outras criaturas. E não te esqueças de pensar no meu caso. Se precisares de ajuda já sabes, estás à vontade…
Um abraço e cumprimentos aí em casa


PS: e faz favor de me deixares gozar o Dia da Mulher cujo eu acho uma parvoíce pegada, mas vou aproveitar com a amiga que tu sabes. A comemorar nada, salvo a nossa amizade. Porque haver um dia da mulher já me ofende.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Isalinda

A princípio, a escola pareceu-me um lugar esquisito. Não podíamos levantar-nos das carteiras sem licença. Nunca tinha visto uma mesa inclinada pegada a um banco e isso até gostei, púnhamos os lápis lá em cima e eles escorregavam que era uma beleza, se fossem esquinadinhos – e eram quase todos - davam uns pulinhos pequenos que até parecia que iam a saltar degraus. Era local silencioso, em voz alta só a professora e nós para ela; uns com os outros, apenas murmúrios e  em caso de necessidade. Experimentei falar por sinais com o meu parceiro, mas fazia-nos rir e levámos uma chapada cada um que nos deixou os olhos alagados e uma vermelhidão a alastrar na bochecha, a outra toda lampeira, a saltar a protuberância do nariz num acento vingativo, toma que já almoçaste. Não podíamos sair dos lugares sem pedir, minha senhora dá licença. Ninguém ia fazer chichi sem autorização e havia umas casinhas chamadas casas de banho – pensava que eram para as pessoas se banharem, mas não - onde ela nos levou a apontar uma coisa branca que eu nunca tinha visto, “chama-se sanita, ali é que se faz o chichi e o resto”. Olhei com atenção e reparei que aquilo não era um penico nem nada e cheirava muito pior. Na escola ninguém mijava, toda a gente fazia chichi. Se algum catraio se enganava e lhe saltava a língua para o hábito, a mestra logo a travá-lo num agastamento, então, o que é isso?! Um dia espreitei a casa de banho dos rapazes e era diferente, eles chamavam-lhe urinóis. O meu pai para o meu irmão, é um cheiro a órina que na se pode. E o meu irmão a rir, cheira mal, tá tudo cheio de mijo, a gente não acerta nos buracos e é muito gaiato a fazer pontaria; e os homens da taberna também lá vão, e sujam tudo; às segundas feiras está tudo cheio de vomitado roxo. Deve ter sido por esse tempo que comecei a gostar de ser rapariga, o que eu inchava se a professora, “as raparigas” e eu lá dentro, até parece que crescia. Fazia chichi sentada na beirinha da sanita, os pés no ar, mãos fincadas no frio da louça, a segurar o corpo em equilíbrio, temendo escorregar e cair dentro daquela fundura. Só por urgência maior ali entrava, respiração contida por mor do mau cheiro e, para me tranquilizar, trazia à mente o desafogo de atrás das moitas cheirando a mato e terra aquecidos de sol, olhos entretidos com formigas e outros bicharocos que, talvez estupefactos de mim, que é isto, intrigavam pés acima enquanto eu, de cócoras, puxava as cuecas e agarrava as saias pela cintura para não haver surpresas mal cheirosas.
Mas a escola era um mundo diverso e todas as raparigas se sentavam com mil cuidados naquele apetrecho desconhecido, receando deixar cair alguma coisa dentro da sanita. Corria o boato de que objecto perdido, nunca mais se encontrava. De lábios enojados e a repelir confianças, contavam histórias de ganchos de cabelo, lenços de assoar, alfinetes e outras coisas que desapareciam sugadas pela imundície. Depois do recreio, a professora para o Alberto que era crescido, barba a despontar, vai lá deitar dois baldes de água em cada casa de banho. Ainda hoje não entendo como é que o Alberto aguentava aqueles cubículos fedorentos.

Quando me habituei à escola, respondia a ser rapariga e andava cheia de contente por ter uma carteira minha e do meu parceiro com um tinteiro só nosso, um lugar para lápis e canetas e o descanso da minha mala a proteger-me as costas. No dia da vacina, mal a figura do médico se desenhava no aro da porta, sem outra escapatória,  eu recuava as costas inteirinhas e sentia a dureza do cartão como uma mão amiga a segurar-me o medo. Se a professora me tem deixado levar a vacina encostada na mala, palpita-me que não faria a triste figura que sempre fiz. Nesses momentos de aflição, o meu parceiro entrava numa risota de nervos que quase sempre a professora calava com um tabefe enquanto a enfermeira dava um toque de dedo sábio no frasquinho do pó e ele caía sem barulho dentro do soro. Mas, descontando o inteiro terror de esperar pela vez na toma da vacina - as agulhas eram mais que grandes e arrepiava-me pensar que me entrava uma coisa daquelas no braço – a escola era uma alegria. Embora não pensasse muito nisso, e contrariando os prognósticos do meu pai face à minha inépcia com letras e números, “esta gaiata vai ser ainda mais burra que as filhas do ti Galinha que nunca fizeram a quarta classe”, ia contente para a escola. Em minha casa limitava-me a ser dona de um mocho pequenino feito por meu avô. No mais, dividia cama e roupa com os meus irmãos e dormíamos na cozinha. Por isso, ter ali um lugar só meu era uma coisa bonita, de valor. E, ao contrário do que acontecia no lar, ninguém me disputava o lugar. Se eu faltava, com certeza a carteira ficava a entristecer e notava-se a minha ausência. Alguém faltar à escola era como cair um dente a uma pessoa, ficava só o sítio. Fazer quilómetros a pé não me moía o juízo e nem me importava com chegar molhada, gelada até ao osso, ou almoçar na escola um farnel ligeiro e frio. Era apontada com inveja pelos outros, ela atravessa um pinhal para cá chegar, as mães numa pena compungida, coitadinha, vem sozinhita de tão longe! E eu a insuflar de ser assunto em conversas de gente grande. 

quinta-feira, 5 de março de 2015

Isalinda

Os nomes dizem, espelham-nos. De tanto nos chamarem por eles, pertencemos-lhes. Basta ver que nenhum bebé tem cara de ter seja que nome for. Chamamos-lhe o nome escolhido entre mil (listas e listas para às vezes acabarem as garotas a responder por Carla, Vanessa ou os dois a emparelhar) e ele não cola nem condiz. Olhamos a criança e vem-nos um remorso, o nome fica-lhe mal, sobra-lhe da figura, é de uma estranheza que raia o desconcerto. E depois, o tempo vai-o afeiçoando, pulindo aqui e ali arestas de vogais, prumos de consoantes, entranha até ao zénite em que a dupla, nome e criança, se pertencem mutuamente e não são um sem o outro. Esse é o momento em que a transfiguração ocorre: aquele é o único nome que serve, está à medida. Podem pensar, também é assim nos casamentos, as duas pessoas levam anos a burilar e a relação conseguida é estreita e biunívoca. O tanas. Levam tempo, as que levam. A maioria circunvaga os olhos pelas redondezas e por ali se perde ou corta-se numa esquina mais afiada de maus costumes e manda tudo às urtigas: que é impossível viver assim, que o outro lhe tolhe as liberdades, que mais assim e mais assado, e pega lá o que é teu, se quiseres o que é nosso puxa da nota, que isto, meu amigo, a vida custa a todos e está cara. E depois de uns gritos ou uma conversa muito educada que quase sempre diz o que deve e o que não, cada um vai à sua vida a desejar que o outro não lhe apareça na frente durante quilómetros de anos e faz espécie como é que se dormiu tão a desejo com aquelazinha lá que interesse não tem nenhum e a cabeça fede a caca de galinha, mas como é que eu não vi isto, a minha mãe bem me avisou. E lá se deitam os dois ou mais a recomeçar.

Mas é que não. Não é mesmo nada assim. Qual semelhança entre nome-pessoa e casamento/união de facto. Para que conste, os casamentos do século XX, muito cheios de nove horas e modernismo, há que Deus que têm de ser por amor. E depois dão no que dão, está mais que sabido que amores eternos são mais difíceis de encontrar que agulha em palheiro e onde há duas pessoas há duas opiniões. E etc. Ora, com o nome não sucede tal. O nome ajeita-se à pessoa sem reclamar. Ninguém ouviu um João com birra por pertencer a um mau feitio (mas devia), ou um Ulisses a rebelar-se por ser de glamoroso vigor e calhar a um impávido anão, ou um Álvaro Pais por pertencer a um xóninhas de metro e oitenta. Enfim, os nomes governam-se com o que têm. Diria kant que pertencem ao mundo da natureza  (estendo demais a natureza kantiana, mas enfim) e sofrem as suas leis inflexíveis, uma das quais e não a menos importante, é que são isentos de consciência e vontade. Julgo que esta asserção torna credível a falta de rebelião por parte da nomenclatura. Ora, é sabido que nomes fáceis induzem as crianças a serem pessoas de mente descomplicada. Nomes difíceis, como Hermengarda ou Hermenegilda, só trazem trabalhos a quem os tem (aprender a escrevê-los dá uma trabalheira), geradores que são de pessoas nodosas e mais retorcidas que uma cama de bilros. Ora, ora, então e quem é como eu que me chamo Isalinda. Nome sem jeito, Isalinda. Só tu, muito baixo, a voz a escorrer-me ao coração, “Linda”. Toda a gente na escola a destacar-me as sílabas, I-sa-lin-da. E foi aí que percebi que não me chamava Zalinda. A minha mãe que Deus haja era a ti Zalinda e eu a Zalinda da ti Zalinda. No primeiro dia de escola – dia sete de Outubro -  a professora solene a fazer a chamada, Isalinda! Um silêncio fundo. E logo muitos pares de olhos virados a mim e a professora numa impaciência, então…O Manuel António a cutucar-me as costas, és tu; diz presente. E eu ainda desajeitada, a esticar o pescoço para passar o aperto de vergonha, os neurónios a tropeçar nos refegos do nome, presente. E por que seria que tínhamos de responder presente se a professora não tinha ar de nos dar o que fosse e nem havia sinais de uma prendinha. Chamava nomes uns atrás dos outros e toda a gente, “presente” e eu ainda a cogitar que aquele “presente” também não podia ser igual ao de casa quando íamos ali atrás de uma moita fazer o presente. Até me envergonhava pensar isto, a escola era uma limpeza e havia lugares marcados e à porta fechada para presentes desses. A professora pintava a boca e as unhas, cheirava bem e usava meia de vidro, não era pessoa de se ajeitar capazmente atrás de uma moita. Mas só imaginá-la em brancuras imprevistas me dava vontade de rir. O meu parceiro, estás a rir de quê. Eu, de nada