quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Marca D'Água


Cirandando nos conteúdos de pen antigas encontrei o escrito que se segue. Oxalá fosse meu. Mas não, sou incapaz de tal depuração escrita, ainda que algumas expressões e frases comunguem da minha brisa. É tão bonito que resolvi postá-lo. Assim, posso voltar a lê-lo. Sempre. Beleza incógnita que terei copiado de algum blogue ou comentário.  Se acaso a autora por aqui passe, os meus parabéns e obrigada sincero. Também a desculpa pelo atrevimento.

“A marca de água é uma atração do papel, o súbito de uma frescura que me sabe ao rasto da seda rente à linha dos dedos, frágil suavidade debruçada nos movimentos. Na verdade, não sei o que seja a marca de água. Mas as palavras me traçam imagens pedintes, numa cegueira de pés  que sentem sem ver, mister que lhes não pertence. E assim caminham.
E me surgiste não sei como e me rodeaste inteira, e os meus pés cegos, porque todos os pés assim,  palmilharam as sílabas do nosso desencontro. Contigo. Fora de tu seres tu.  E a tua representação – que não sei – uma borracha de apagar dúvidas. Tens razão, usei o que não tinha, as aparências iludem, como tanta vez repetiste sem que eu um vislumbre sequer. Era o meu ópio  de ir sem medo. Oferecias-me canções e riso e a minha mente sem olhos corria-lhes música e letra a procurar um qualquer tu nos intervalos de tudo o que fruía, leve inconsciência de usar o que pertencia a outrem, podendo dispor; a afastar-me por momentos de mim mesma. Julgava eu. Como se alguém pudesse nascer das palavras e ser essa a sua verdade. E houvesse romances que corporizam na atmosfera. Mas romances são folhas e folhas de letras a dizerem sentimentos que conhecemos com a violência de quem os diz sentindo-os sempre na realidade depurada que é o mesmo que dizer, não ela, outra coisa. E, por excesso ou defeito, assim se vai semeando um eu condicional e pretérito e se marca a distância entre livro  e leitor.”

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

As Mulheres que Eu Conheço


E se é necessário poupar? Bom, aí, ela passa no supermercado com a obediente lista de géneros e preços, a tentar abrir  folga no orçamento.  Ele concede, deixa de almoçar no restaurante, ela cozinha e prepara-lhe a marmita do almoço – diferente do jantar por ser aborrecido ele estar sempre às sobras. Em época de poupança, se existe,  corta-se nas horas da empregada e ela “dá um jeito” para que tudo continue a rolar como antes; acabam-se as esporádicas refeições em restaurante, ela cozinha sempre; ela corta no vestuário – no dela que tem muito que vestir, os garotos estão a crescer e ele precisa estar bem trajado, o fato sem brilho. O marido dela é um senhor. Ela arca com todos os trabalhos e limpezas antes que ele goze férias porque um ano inteiro de trabalho é coisa cansativa para ele.
Em épocas de aperto, não há férias para ninguém. Mas, enquanto ele lamenta ficar por casa, a ela tanto se lhe dá. Evita rumar a lugar diverso e, numa casa que não é sua e onde algum utensílio indispensável está em falta, fazer o de sempre: passar, lavar, providenciar as refeições. E tudo isto acrescido do fazer e desfazer  das malas, de acautelar a rega das flores e alimentação dos animais deixados para trás, de ambas as casas ficarem em ordem. Nos aniversários e festinhas dos garotos ela poupa fazendo os bolos e o mais; ele, leva ou trata do vinho.
Se ela adoece, ele leva-a ao médico num desamparo aflito porque a casa, porque as compras e as roupas, porque tudo. Mas depois da receita médica que em pressas pressurosas vai aviar, ela cura-se e melhora de imediato e não se fala mais nisso. Seja o que for que teve, já não tem. A vida volta ao de antes. Mas se ele adoece, ai que está tão doente e não pode fazer isto e nem aquilo. Na verdade não pode fazer coisa nenhuma das poucas que antes fazia e ela arca com mais uma criança em casa, cheia de queixas, aí não que me dói e vê lá se não estou com febre, a testa fresquíssima e o termómetro a marcar 36,5. E que me dói aqui e esfrega lá, e é que ali também tenho dor, e nunca estive tão mal. Enfim, a doença dos homens é o purgatório das mulheres.
Que diabo acontece às mulheres que eu conheço para aturarem tais espécimes. Contudo, as separações vingam  por motivos mais esporádicos como haver um terceiro elemento metido ao barulho ou os adorados cônjuges jogarem o ordenado em noitadas de tudo a que ele chega por junto. Quanto ao primeiro motivo, a existência de um terceiro elemento poderia até ser útil, constituir alívio, sempre é menos uma função, ficam mais folgadas. Mas em vez disso, ofendem e arrufam se outra lhes disputa o macho. Não se ofendem do disfarce de escravatura acostumada por anos e anos.  Ah, pois, o amor. O ciúme que só  quem ama sente. O ódio que tudo seca e não permite em redor uma erva verde. E mais todos os sentimentos e emoções que entretêm os homens.
As mulheres que eu conheço são estúpidas. A sociedade estupidificou-as desde sempre. Algumas – não assim tantas como isso -, com conhecimento próprio e, portanto, ainda mais esparvecidas.  
Temos de esperar nos vindouros. Que sejam outros. Ou não há remédio. Fósseis são fósseis. Ignoro é se a educação que lhes damos não está ela também fossilizada.

domingo, 12 de agosto de 2018

As Mulheres que Eu Conheço


O mundo das mulheres que conheço é herança de pobreza encardida e séculos de canga. Nele, os homens, apesar do incontestado  poder e domínio, são erráticos e relativos e não permanecem substancialmente. Ajudam na procriação; carregam, a meias ou sozinhos, um ou outro objecto mais pesado; vão ao café e demoram-se em conversas de amigos; fazem um recado caseiro só por desfastio e fama de ajudar e, por vezes, são  encarregados de educação dos filhos para assinatura ou mostra em reuniões escolares. Em amor, os mais cordatos fazem uso de ternuras avulsas que são caminho de urgência amorosa e um “não” desperta asperezas e amuos de duração indeterminada. Os mais, ou tomam de apetite o que consideram que o casamento fez seu, sem discussão, ou, mais raro, contrariam a ancestralidade e em tudo agem por amor. É verdade que eles trabalham fora de casa, mas elas também. Como é verdade que são elas quem faz a gestão caseira incluindo determinar, comprar e confeccionar as refeições. Os homens chegam fartos e cansados do trabalho que, vá-se lá saber porquê, é sempre pior que o delas. Elas não, elas chegam e enfiam uns trapos. Em seguida, vão para a cozinha preparar jantares e almoços, tratam dos filhos e vigiam-lhes os estudos, lavam-nos e preparam roupas e lancheiras do dia seguinte. Jantam à pressa porque ainda falta isto e aquilo, não vêem TV, não se sentam na sala, não sabem de outro mundo. A sala é o reino dos homens que, sendo bons maridos, não saem à noite, vêem TV. Os homens deitam-se cedo porque o seu trabalho exige e precisam descansar. Elas ficam a remendar o fato de treino do mais novo, a regar as flores que estão quase mortas de secura, a fazer aquele bolo que a do meio pediu para a quermesse da escola. Quando elas se deitam, eles ressonam. Elas caem num coma que o despertador interrompe. É outro dia. (cont.)