sábado, 26 de abril de 2014

A Liberdade Passou Por Aqui

Hoje, acordei para ti. Hoje és a minha liberdade livre, o meu reencontro com alguém de mim que dorme tempo demais. Hoje sou o cesto vazio que vais encher de flores pelo dia. Pegas nos meus gestos pelo caule, delicadeza que me estremece; e sei que há-de haver um momento em que a tua voz modula umas notas só para mim e o corpo ondulado do som cheira a acenos de malmequer. Mas hoje somos mais. Talvez. Eu mais quieta e extasiada do que sempre, tu no piano, ouve esta. As minhas mãos paradas no tricot e o que deve ser um eu escondido, a ajoelhar em gratidão pura. Tão bonito o teu canto do século XIX! Tão bonita a voz em difíceis torneados de mobília, a espraiar queixas de romantismos funestos, estranguladas tristezas de amor, súbitas decisões de eternidade... nesse infinito momento, perdemos o pé da realidade e habitamos a originária perfeição do tempo, sem onde ou como.
Quem sabe, errámos o século de nascer.
Depois, pões o canto de Pedro na Paixão, arrependimento que me fascina doentiamente; e descobres que sintonizamos naquele tenor espanhol, Carlos Mena, que afinal coleccionas. Há qualquer tragédia no híbrido da voz que toda me move por dentro, uma amplidão de sentimento condensado a atravessar-me como lança. E desamparo sem densidade, vaga de mim.
 Então,  a tua elegância nota - como se o não notasse - o meu estar de precipício e traz outro gosto nosso: António Zambujo e a sua mescla particular na dolência alentejana, uma espécie de desejo triste e quente que lhe cresce e fica a pairar no vagar das sílabas. Deixamo-nos ir no calor parado da planície, sereno fatalismo da solidão. Enfim, recomeçamos. Quotidianas e diurnas, que o tempo comum nos foge e cada encontro é breve fósforo de alegria.

O que eu gosto de tu haveres, Luisinha!

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Tecno Variações

Não gosto de postar-me em mágoas e interrogações. Prefiro contar histórias, inventar personagens e pô-las a viver situações que conheço da experiência e invento parcialmente, a fazer posts. Se leio um post de outra pessoa quase sempre me maravilho com o que pensa e o quanto é capaz de transformar em palavras o seu quotidiano, transferir para texto elucubrações que não me ocorrem, preocupações com o mundo que tento ignorar e ali me surgem dissecadas, razoáveis, envoltas em razões quase científicas de tão válidas, escorreitamente deitadas à net. Sou uma nulidade a postar. Falta-me assunto. Uniformidade. Constância temporal. E outros enfins.
Acontece que comprei a Visão – leio-a em duas qualidades: leitura rápida, no primeiro dia; e na íntegra, de 5ª a 5ª, ao pequeno-almoço. Riam. A actualidade nunca me interessou. Continua a não me interessar. Não sou pela notícia e vivo desinformada. Ignoro olimpicamente os jornais, salvo se trazem entrevista que me interesse. Quanto a revistas, são-me acessório de praia. Numa manhã, li o artigo “Tecno-Utopias O plano louco dos novos senhores do mundo”. E constrangi.
Ora bem. Sei que não sou livre, ainda que o pretenda. Que estamos todos dentro de uma malha social e política a obrigar-nos ao caminho. Que a história nos condiciona – tanto a individual quanto a de H maiúsculo – e pesa e age sobre esse ser genético e diverso que cada um é. Como se toda esta carga não bastasse, há um movimento libertarianista que projecta criar micro nações flutuantes que fogem aos impostos e a todo o tipo de barreira (incluindo a da tão corroída ética), constituídas por – Hélas! – grandes cérebros informáticos, os actuais senhores do digital, que se arrogam direitos e proveito para destruir governos, originar crises mundiais e and so on.
Pronto. Agora poderia enveredar por um texto moralista e falar da ausência de valores, de onde pára a dimensão de humanidade…e não é que não me interesse. Acontece ser pouco dada a romantismos sem consequência. O que me assusta é o irrestrito de liberdade que esses cérebrozinhos potentes querem para si. Os deuses terrenos são um escárnio da divindade e um mal para os outros homens. Fora do lugar, são tão inestéticos como uma mão no fim do tornozelo. E são perigosos. Porque a sua humana vontade – razão tinha Kant – não é necessariamente boa. Logo, tem que ser controlada. Temos na história o exemplo das oligarquias tirânicas. E não detinham o poder destes tecno oligarcas.
Detenho-me a pensar que efectivamente a tecnologia nos invadiu o quotidiano. Sabemos que as cartas mais dizem de nós que os mails, mas usamos mais os últimos; temos presente que a conversa presencial ou até telefónica é mais próxima que os chats de conversa, os comentários em blogues ou em qualquer rede digital, mas gastamos muito mais tempo nas redes sociais. E cometemos erros crassos.  Por ser meio onde raramente se diz o que se é e mais se quer parecer o que se deseja. Apesar de reconhecer alguma razão na afirmação, “nas redes sociais a gratificação é imediata”, intrigo: que espécie de gratificação se pode procurar com likes, estrelas, ou visitantes que nem lêem o que escrevemos e se limitam a deixar beijinhos – que nunca dão – e a dizer que gostaram muito do que nem se dão ao trabalho de conhecer. Por que razão adversa hei-de gostar de ter centenas de visitantes cusqueiros?! (certo, há outros géneros e aprende-se qb na net, desde que a isso nos proponhamos e tudo dependo do uso, bla, bla, bla…)
Vejamos outro caso: na infância, todos aprendemos a pedir desculpa.  Em primeiro lugar sentíamos arrependimento, e, para lhe dar fim – sabíamos que tínhamos sido injustos e a injustiça não é de convivência fácil -,  havia um movimento para a outra pessoa, passo algo difícil, mas tão necessário à outra pessoa como a nós; sempre mais a nós. Era olhos nos olhos, como nos ensinaram e também ensinámos, “tens que olhar para os olhos dele e pedir desculpa”. Porque é tão fácil pedir desculpa e não se sentir arrependido como desculpar e continuar ofendido e rancoroso. Então, era o único caminho para que pudéssemos ambos – eu e o outro/a - continuar. Os erros, os enganos e os atrofios hodiernos perdoam-se virtualmente, desculpam-se sem na verdade serem desculpado. Quiçá nem se precisa que o outro desculpe, bastará haver o pedido de desculpa usando  qualquer coisa que nem me pertence e de que me aproprio para o efeito.

Faz-nos falta voltar aos bancos da escola….

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Forças de Acaso

“O homem põe e Deus dispõe”. É atordoante. Como se uma entidade exterior – Deus - seja constante na mensagem de “não pode ser” ou “eu não quero o que tu queres” ou, em leitura mais realista, “o mundo não obedece à tua vontade”. E isto irrita quase tanto como unhas a riscar no vidro. Mas existe. Vamos até prescindir de um Deus que tudo pode e vê – como distorcer-nos o campo do agir e modificá-lo. Cinjamo-nos a esse emaranhado de relações interpessoais talhadas no imprevisto da imanência; atendamos aos acasos de existir. E compreendemos que projectar não é realizar; e que a antecipação do futuro pertence-nos bastante mais que ele. A inscrição do projecto no presente obriga-o a conformar-se à realidade. Foi o que me aconteceu no concerto de Páscoa.
Era ainda Natal quando comprei dois bilhetes e ofereci um deles. Depois, aproveitando uma série de coincidências nessa data, marquei um jantar com amigos. Mas o acaso, que às vezes nos persegue, truncou a refeição e também a companhia no concerto. Não desisti. Em cima da hora ofereci-me e ao bilhete para João Sebastião Bach, A Paixão segundo S. Mateus. E fomos aceites. Eliminado o jantar, limitei-me a propor uma visita prolongada a um sorriso bonito e suave que muito prezo - Maomé não podia ir à montanha.
No dia do concerto, perdi-me a escrever qualquer coisa, atrasei e cheguei esbaforida à Gulbenkian ainda os carros das televisões não tinham saído -  decorrera uma conferência sobre o 25 de Abril com gente de altas esferas, bem mais importante que um Cristo morto há tempo demais. A minha companhia aguardava-me na entrada. Amei aquele encontro, “quem sabe se não é melhor assim”. O auditório em completo silêncio mal os músicos e os coros entraram e o eu que é mim a encantar na paisagem do fundo. Na quietude clara da tarde, o jardim da Gulbenkian detinha uma aura de graça  japonesa: debruçava-se-nos. As árvores em arcos de flores semi abertas que abriam esboços de nuvem rosada e pontilista, a emergir do veludo verde da folhagem. Em grande plano, um arbusto oscilando exuberâncias de alva floração. E os pássaros. Em sua casa. A voarem-nos à frente. Dolentes e sinuosos, rémiges em leque. Dei uma olhada ao palco e, lá atrás, bem no meio, um coro infantil vestido de vermelho.
Depois a música cresceu e fui sendo levada. Deixei de sentir-me como ser individual, transportada a uma angústia do universo, como se conseguisse encarnar todo o sofrimento e toda a esperança do mundo. Ali, no meio da atenção de tanta gente, sou a voz dos que não puderam ouvir nem ver, dos que sofrem, dos mortos que vivem em mim o seu impossível. Oh, excessiva gente que reúno! Somos nós todos que choramos as lágrimas de Pedro e o seu arrependimento comovido; e, se cruzo os dedos no solo da flauta, não são apenas os meus dedos cruzados. As notas arrancadas aos instrumentos não nos levam ao colapso; tem de acrescer-lhes a força das vozes em uníssono, a destruir barreiras, corroer muros, evadir.

É sempre uma surpresa a interrupção, seja intervalo ou fim. Saio reabilitada, a interessar-me por quem me acompanhou e esteve afinal mergulhado no seu mundo paralelo. Saímos em passos indiferentes de caminho, a comparar percursos da alma que desvanece nas sendas do ser.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Os Anjos também Morrem VI


Ao longo da peregrinação, a despeito das mulheres que acorriam para ver o bebé e acompanhar, “eu sou tia velha”, “eu fui vizinha”, “deixem-me ver o anjinho”, o senhor prior foi sempre cantando e rezando, a incentivar a resposta de quem seguia lá atrás. D. Vitória, se avaliava demora na paragem, acorria com o banco, punha-o por baixo da caixa branca e os garotos descansavam. Solenes. Direitos. Comidos da tristeza de quem chegava. O pai, quase ao lado do padre, a pisar alheado, indeciso das mãos estendidas de quem vinha; perdido. Se alguém, então e ela, ele encolhia ombros estrangeiros e eram os garotos que, vem lá atrás, no carro do senhor João. A Laura espiava-o e intrigava num cochicho, não mexeu a boca nem uma vez, só se assoa e mais nada. A Laura não tinha ainda aprendido corações que sangram sem derrame e gotejam para dentro, em carne viva que se não vê. Nenhum deles suspeitava de desgostos que fazem ninho em tristezas enraizadas. Por isso, apenas estranhavam.
E até ao final da aldeia foi um vir às portas em cada casa, o grupo a parar uma vez e outra. E outra ainda. Depois, penetraram em território desconhecido e ninguém a assomar. Ganharam terreno, atentos às orações e cânticos do Padre Alberto, olhos afadigados em paisagem nova e estranha, casas diferentes, jardins com flores, baloiços que não eram cordas de poço atadas numa pernada de figueira, que eram de ferro alegre e tinham uma tábua ou um pneu onde, imaginavam, devia ser bom sentir-se voar sem dor. Uma criança a andar e que deixou o baloiço para vir às grades espreitar o cortejo. O baloiço lá ao fundo a oscilar levezas e a chamá-los em cada rotação de ferro no ferro, inh…inh…inh…inh... , o Zé Manel cobiçoso do balancé, armado em raposa displicente, precisa de óleo aquilo. Eles egípcios e pré-históricos, a andar em frente e a cabeça de perfil, a atenção toda lá atrás, a imaginarem-se no baloiço que ia de certeza quase até ao céu e onde a perspicácia infantil já tinha regressado em rituais de posse e demarcação de território. A professora, virem-se para a frente, ainda caem uns em cima dos outros, e retornaram à função, o sonho na beira do caminho dormente de sol,  quem sabe na volta.... Talvez então pudessem pegar-lhe mais um pouco, continuá-lo.
 Depois do que lhes pareceu uma subida íngreme, ouviram a voz do Tóino, estamos a entrar na vila, olhem ali a placa. E todos, ao passar, leram o nome em voz baixa. Contentes por saberem ler; orgulhosos de verem e serem vistos por outra gente; satisfeitos das batas lavadas, da brilhantina dos pais a empastar, das travessas e meias arrebanhadas em casa e agora sem timoneiro,  a desgovernar cabelo e pernas.
Então, a professora, enquanto a caixa mudava de mãos, deu o último aviso, Ai de quem se portar mal. Amanhã toda a gente vai falar dos meus alunos que vieram a pé desde a aldeia, a acompanhar um anjinho. Ai de quem se arme em engraçado – e a exibir infiltrações de detective - Não se esqueçam que eu sei sempre tudo. E os garotos fecharam-se em sisudez, na suposição de que a professora conhecia toda a gente que despovoava cafés e lojas para ver passar o anjinho, os passos deles a reluzirem no silêncio respeitoso da rua: homens a aglomerar, chapéu mole e boné na mão; mais além um ou outro senhor de óculos escuros e fato que parecia preparado para um casamento, mas só viera a tomar café; taxistas perplexos, a esconderem na mão direita o pano do lustro; donas de casa de pé chato, embasbacadas, a rama das hortaliças que espreitava nas alcofas, a emurchecer; crianças de chupeta, bracinhos no ar, em satisfação de pontapés nos carrinhos empurrados por avós e criadas orgulhosas. E eles sérios. Compenetrados. Certos de serem peça fundamental no quadro. Então, um murmúrio subiu não se sabe de onde, estamos a chegar ao cemitério, já se vê o muro. E os garotos cansados de andar, encalorados da soalheira, fartos de ver e serem vistos, surdinaram em admiração, então aquilo é uma casa?! E a Luzia, canudos meio desmanchados, a testa suada da palha do chapéu, a espevitar, a minha mãe diz que não tem telhado. A Laura contente de si, desligada da morte ali à mão, ainda não tenho as meias rotas. A Conceição realista, o alcatrão só sai com petróleo e ainda temos de ir para casa.
À medida que avançavam as ruas iam esvaziando, cruzados apenas pelo vagar de um ou outro automóvel onde senhoras compungidas faziam o sinal da cruz. Depois, chegaram a um muro a que não se via fim e alguns homens a espreitar sobre ele, encavalitados nas bicicletas. Os rapazes, há treino da bola é por isso que estão aqui, quem me dera ir ver. Se o portão estiver aberto, espreitamos. Deitaram olho ao passar, mas do exíguo entreaberto enxergavam apenas a solidão barrenta de uma baliza com o seu guarda-redes; isolado da equipa, pareceu-lhes pequeno e sozinho, mais aborrecido da vida que eles.
Virado o muro,  entraram num largo em meia lua. Ao centro, escancarado, um portão alto, em ferro, rematado por setas. Então, a D. Vitória pôs o moxo da pausa. O senhor João aproximou-se, o desgosto da mãe a pesar-lhe a vida, e, contristado abeirou-se da outra gente enquanto ela ajoelhava de novo a abraçar a caixa, corroída da saudade que acompanha as perdas irremediáveis. E o Prior voltando-se, Chegámos ao cemitério, muito obrigado a todos. É aqui que vamos rezar e despedir-nos desta criança. – e apontando a largura  do portão - Ali dentro é para os pais, não é para os meninos da escola, as mulheres lá atrás a assentir de  cabeça. E os garotos à espreita do cemitério que nunca tinham visto nem iam franquear, a Laura logo à frente, que bem que a gente brincava ali às casinhas; olha aquelas pedras tão boas para a cantareira e têm jarrinhas com flores e tudo. A Conceição peremptória, és parva, por baixo daquelas pedras é só gente morta, não se brinca aqui e ninguém te deixa fazer jantarinhos…A outra convicta, aqui é que eu gostava de brincar… - e a dar de ombros – os mortos não se mexem. E ficaram as duas a admirar uma fila de casinhas pequenas que se via da entrada, sem lhe atinarem a serventia.
Depois, quando o prior entrou de rezar as orações fúnebres, a garota esqueceu o cemitério siderada com a expressão “entre os resplendores da luz perpétua”, a decidir que tinha de perguntar à mãe sobre a sua prima preferida no meio de uma oração com palavras difíceis.
A um sinal do prior, o pai e a mãe seguiram-no com o filho, ela numa inquietude aflita, eu queria-o pôr ao colo, como é que eu o vou deixar aqui ao sol e à chuva, ele tem medo de ficar sozinho, não me posso ir embora, tenho de ficar com ele…. E enquanto as gentes abriam alas,  as mulheres choravam-lhes o desgosto como se fora seu, sussurrando para lenços lacrimosos, só quem tem filhos é que sabe….
E quando os crescidos entraram e os garotos já pensavam no regresso, surgiu-lhes uma professora contente, agora vão para baixo na camioneta da carreira. Eu pago os bilhetes.  Respeitinho à D. Vitória, ouviram bem? Exultaram. A D. Vitória num desabafo murmurado aos joanetes, não era capaz de fazer outra vez o caminho.

À noite, em casa, todos contaram tudo. Um amontoado de notícias, cada um a enfatizar a sua participação e fortaleza. A Laura antes de dormir, ó mãe, chorei poucochinho, não foi? E a mãe, tínhamos que cortar as meias, filha, o sangue pegou-tas aos calcanhares – e ajeitando-lhe os cobertores – não faz mal que chores quando te dói. Olha Laura, tristes, tristes, são as lágrimas dos pais da Elisa. E ela, aquele menino está no céu não está? E a mãe, um sim inamovível. Depois, debruçando-se a beijá-la, dorme bem. Ela, mãe, gosto tanto de si, nunca morre pois não? A mãe a apagar a luz do quarto, a voz a destilar doçuras, dorme. E a Laura contente, pezinhos de mercurocromo, a sonhar com um menino de caracóis loiros que espreitava sorrisos por entre as nuvens. E quantas casinhas e jarras de flores misteriosas semeando o algodão em rama!


terça-feira, 8 de abril de 2014

Os Anjos também Morrem V

Num rompante, a parceira da Elisa chegou-se à amiga e puxou-a para o gesto quente do Garcia, a fazer-lhe espaço. As mulheres à boca pequena umas para as outras, em comedidos gestos de desaprovação, vestir a gaiata toda de preto… Entretanto, a mãe da Elisa, boneca desarticulada a pender para todo o lado, foi carregada para a carrinha do merceeiro, num estertor sem palavras, enquanto o pai aguardava o prior que chegara na lambreta cinzenta. As mulheres, ah, agora é que sim, e outro olhar ao monte e às portas fechadas.
O Padre Alberto parou no meio da rua, desceu e puxou a lambreta atrás. O Garcia sabedor, olha para aquilo, agora vai pô-la no descanso. E uma rapariga intrigada, como é que tu sabes que a lambreta vai descansar, vá…e ele, tchiii, és mesmo burra, tu, e deu-lhe as costas. Um funeral inteiro a observar o senhor padre com uma chavinha na mão a abrir um compartimento da lambreta e a retirar um tecido roxo, que desdobrou e deitou ao pescoço enquanto apertava a mão ao pai da Elisa e ia até ao carro onde a mãe desamparava. O Toino, que fazia vezes de sacristão em domingos de missa, entrou em explicações, aquilo é uma estola e é um paramento. Um quê?! E ele a soletrar, muito cheio da novidade, um pa-ra-men-to. O Zé Manel, e isso é o quê? E ele, sei lá, o padre é que me ensinou. Entretanto, padre Alberto fechou a porta do automóvel e as facturas sobre a pilha de sacos de arroz, no lado esquerdo do banco traseiro, ensaiaram um voo que a mão do senhor João acalmou de relance, o braço lançado atrás, quase sem se virar. Ao volante, soturno e de lápis ainda atrás da orelha, desejava-se na quietude da loja, entre os sacos de milho e de feijão, a respirar o cheiro dos cominhos e da erva doce arrumados na ferrugem da medida de litro, por cima balcão. Mas, no banco ao lado, um encapelado desgosto. E ele, silente e inapto, a afundar.
O prior em conferência com a professora, agilidade de hábito a ajeitar a estola. Depois, a encaminhar-se para a frente dos garotos e posto em espera, a obstruir a visão da Laura. Em seguida, os quatro garotos, cada um em sua pega, seguiram com a pequena carga atrás do prior que iniciou o andamento. E parte das crianças a experimentar bicos de pés e pescoço de girafa para verem a criança morta, em sussurros respeitosos que corriam de uns a outros, tem a cabeça deitada numa almofadinha com laços e rendas e está todo penteadinho, espreita lá, parece mesmo que está só a dormir. A Laura a coxear, imediatamente atrás do féretro, ui, o pé tá-me a doer mais. Volvidos alguns metros, esquecida da voz baixa, a cutucar o braço da colega, já viste, aquela caminha, é tão bonita, toda forrada de branco, olha lá…cheia de rendinhas e tem um lençol todo a brilhar…- e a parar de repente, olhos marejados, os outros a amontoar, quase a caírem-lhe em cima, inesperados – ai! Não sou capaz de andar mais. O senhor prior, que tinha começado uma avé-maria, esperou pela segunda metade - a vez da outra gente -, voltou-se para trás e disse-lhe num meio sorriso, não podes falar alto; e mirando-lhe os pés de verniz, descalça-te, levas o sapato na mão. E ela a ganhar tamanho, toda importante e agradecida ao prior. Os outros atrás. Parados. Um murmúrio de assentimento a percorrer a formação, pois é, pois é, coitadinha, as borregas doem muito, enquanto a garota desafivelava os sapatos; e depois, todos a espreitá-la, um sapato em cada mão, a Conceição de mão dada à biqueira, a ensaiar o dever da tristeza a que as bolhas nos pés se tinham sobreposto. O corpo inteiro da Laura concentrado nas peúgas a aquecer no alcatroado. E um sorriso a contar-lhe o descanso; ela a pairar, em pés-pluma. A parceira num soslaio, o melhor é saíres um bocadinho da forma, senão o de trás ainda te pisa os calcanhares e até vês estrelas. E depois de responder a um Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, logo, a tua mãe se calhar bate-te, vais rasgar as meias todas no caminho. Mas a Laura a sentir o calor do chão, desimportada do irremediável, bichanando no ouvido da outra, em descoberta, a estrada pega-se às meias – e sem transição -, o bebé é tão bonito não é? Parece que tá a dormir, olha lá os caracolinhos tão loirinhos – e logo, pensativa – como é que se morre? E a Conceição, eu acho que o ar não entra e morremos. A Laura agora levezinha, sem o tormento da dor, a poder pensar nisto e naquilo, opinativa, vamos experimentar morrer, só pa ver como é – e assaltada pelo receio - mas antes de morrer, respiramos, tá bem? Vamos a ver quem aguenta mais. Um, dois, três. E sustiveram a respiração. 
E foi assim, embatucadas e muito vermelhas, boca firmemente apertada, que a professora as encontrou quando veio à frente. Olhou os sapatos e os pés da Laura, a pose das duas, chegou-se a elas e bichanou irritada, que é que vocês estão fazer?! E elas entreolhando-se sob o aço das lâminas de âmbar, embezerradas de falta de ar e esforço, a medir consequências e a desistir de imediato. E depois de funda inspiração, ahnnn…., nada, minha senhora, olhos no alcatrão, à espera da palmada que não houve. A professora muito séria, a fazer de conta que não tinha entendido, juízo! E mandou parar todos para fazer a troca dos garotos. 
Então, a D. Vitória aproximou-se com o moxo e eles poisaram o fardo em minúcias de desvelo, como se a criança pudesse sofrer nos balanços da viagem. Nesse momento, um carro passou lentamente na outra metade da Nacional e como que participou do ritual. As pessoas, por detrás dos vidros, a olhar e a persignarem-se, bocas a exclamar involuntárias penas, olhos de sexta-feira de paixão a escorrer tristezas vidros abaixo à vista da criança dormida no eterno, em seu alvo nicho de renda e cetim. E era como se o veículo fizesse corpo com eles: seguia a par, freado da rapidez que lhe pertence, pesaroso e contrito, em romagem de dó e compaixão de motor, a mastigar pensamentos de gente que saia devagar do estranho quadro, com acenos de cabeça, incompreendida do caminho que percorre. Até que, enfim, o automóvel se resolveu e acelerou, os passageiros virados para trás, braços e tronco a serem vultos sem detalhe que emagreciam na distância, mancha pequena a minguar no vidro traseiro; depois o carro só um pontinho azul, a perder cor até se dissolver no horizonte. O grupo de crianças de novo se concentrou em si, a interrogar mudamente, como é levá-lo, pesa muito. E os quatro lá de trás, à socapa, a exibirem as mãos vincadas e vermelhas. E um jeito limpo a definir-lhes as linhas do rosto, fui capaz, ajudei; os olhos: se for preciso, pego de novo. 

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Os Anjos também Morrem IV

Não sabiam ainda o caminho louco do desgosto, carro desgovernado que pisa sem dó e a esmo; ignoravam-lhe o ser de erva ruim em comprimentos de raíz invasora. Mais tarde, o aguilhão da dor havia também de perfurá-los e lembrariam esse primeiro balbuciar só presente aos olhos, exterior. Postos em formatura, o espanto emudecia-os na atenção ao cicio das vizinhas que se perdia entre as mãos dadas, a mãe não está capaz de fazer o caminho a pé, já desmaiou e tudo. E um coro de tragédia retorquia em surdina, coitadinha, já nem tem forças para chorar.  Depois, olhos a errar pelo grupo, como que descuidados nas batas imaculadas das meninas ou a acertar no quadriculado dos rapazes, um anjinho tem que ser carregado por outros anjinhos; mas alguns são tão pequeninos, coitadinhos dos gaiatos. E a Laura a ouvi-las e a calçar-se muito depressa, um lenço da parceira sob o calcanhar, ai isto dói-me tanto
Entretanto, a D. Vitória, uma lágrima teimosa a escorrer sob os óculos que até parecia que tinha nascido dos aros, aproximou-se com a Elisa pela mão,   ela vai com vocês, e todos a quererem dar à mão ao vestidinho preto, eu, eu, eu, dá-me a mim a mão, se quiseres dá-ma antes a mim. A professora veio vindo do nada onde se escondera, a apertar o lenço sob o queixo, delicadeza de dedos na seda e, a Elisa dá a mão à parceira –. Avançou um braço e trouxe o vestidinho preto pelo ombro, até ao lugar; a parceira a sorrir a medo sem saber se sorrir seria demais para quem tinha a morte em casa, o braço branco a cruzar o preto e a trazê-la ao exacto da forma. A seguir, desceu o braço dado a puxar-lhe os dedos para os seus e a entrelaçá-los fechando-os com a mão livre, um a um, sobre a sua mão, como tanta vez tinham feito, num pacto de união silenciosa. E a boca da Elisa, tão pequenina no meio do preto, entreabriu a mostrar os dentes de leite. Então a notícia do sorriso correu de uns a outros, a confortá-los, a Elisa riu-se para a parceira. E aliviaram, já tinham feito uma coisa boa. 
D. Maria dos Anjos, alheada das entrelinhas, mirava-os a comparar cabeças, Vou escolher os primeiros a pegar no caixão; lá à frente, paramos e vão outros. Se alguém não quiser, diga. Porém, desconhecendo o que era um morto ou um caixão, ou talvez mais por isso, todos queriam e, sim minha senhora, sim minha senhora, os rapazes a endireitarem argúcias na tentativa de inaugurar a experiência. Anteviam-se em gabarolice, fui o primeiro e não tive medo nenhum. A professora separou quatro e refez a forma, venham atrás de mim. E entrou com eles em casa. D. Vitória, que desfiava distraídas contas de um terço a que só por bom comportamento os garotos tinham acesso, ter-se-á  lembrado de alguma coisa porque se moveu em pressas de passinhos desasados nos seus sapatos-barco e fechou o cortejo da professora. Então, as vizinhas disseram umas às outras, vai sair, e prestes fecharam portas, um olhar rápido aos cacaréus da rua, a esconder sob as flores isto e aquilo que julgavam de valor e ninguém quereria. E os garotos da escola, olhos pregados na porta. Em espera.
A primeira a voltar foi a D. Vitória. Eles espantados, uns para os outros, ela traz um moxo para quê?! Nenhum sabia. Disseram-se surdamente, ela é que é esperta, é para se sentar de vez em quando, que custa muito a andar, coitadinha. Em seguida, o pai da Elisa com uma caixa branca comprida e uma mulher toda deitada sobre ela, agarrada às pegas amarelas e a repisar a premência de parar o tempo, não mo tires, não mo tires, não me faças isso, dá-me só mais um  bocadinho com ele. Então, a D. Vitória colocou o moxo no chão da rua e o pai da Elisa poisou-a. A mulher ajoelhou abraçada àquele volume branco a murmurar nomes pequenos de, meu queridinho, meu queridinho..., a Elisa correu para ela num repente, esquecida da forma, e toda a gente a fungar. Até que o homem se baixou, agarrou a mulher com os dois braços, levantou-a em peso e ela entornou a escorrer o desgosto por cima dele, como um cobertor ou um alforge que se põe às costas a pingar. Porém, à voz da professora, cada um pega numa asa, ela num pedido só de lábios a mexer, não. Esperem…. Desprendeu-se do amplexo, ajoelhou de novo à beira da caixa com desenhos dourados, tirou a tampa com cuidado, pôs a mão dentro dela que parecia que queria lá deixá-la e disse num sussurro quase inaudível, levem-no assim, que ele gosta tanto de rua. E desfaleceu.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Brueghel e Rubens na Rua das Janelas Verdes

Decidi-me por esta exposição logo no início. Sugeri, convidei e acabei em planos solitários abortados uma vez e outra porque sim. Até acontecer. Que os museus vêem-se a sós. Mesmo em visita guiada. Mesmo rodeados de amigos. São lugares de pausa e respiração profunda, abrem em nós solilóquios de abismo que escorrem dos quadros se ousamos franquear-lhes a porta.
Pouco me liga à pintura dos séculos XVI e XVII; o museu de Arte Antiga não me percorre o sangue nem humedece os olhos. Mas apazigua a alma, oferece o fôlego de sombra fresca  no estio. Olho-o naif, a prescindir visitas guiadas sem desdenhar da aparência, a querer surpreender-lhe lampejos do que me alimenta o espírito.
Comecei pela pintura nórdica do século XVI. E siderou-me a imponência do céu em extensões de azul cordato, por vezes atravessado de nuvens pueris; amachucou-me a não importância de edifícios e homens colocados à boca da pintura, diminutos no vasto celestial. Que difícil ser humano neste tempo! Depois, aproveitei e revi os canais que atravessam cidades e aldeias e os efeitos da luz sobre a neve e o gelo. A vida é bonita para quem consegue vê-la. E quanto o viver pode travar a visão!
Por outro lado, no mesmo período, a pintura italiana expandia-se na paisagem ora a exacerbar dramatismos ora em estado lírico. As montanhas sobem nos quadros meias ser vivo, dramáticas e lancinantes; ou apresentam-se em quase sonho.  A tonalidade azul rosada de alguma pintura é um lirismo de devaneios irisados a sobrepor-se à realidade, as nuvens atravessadas  a projectar sombras de tinta. Nestas obras, para além da sugestão de densidade inamovível das montanhas, destaca-se a dimensão das árvores. É o caso de Simon de Viegler que as mostrou agitadas, sofredoras, empurrões de vento a inclinarem ramos; e elas descabeladas, esqueléticas, mil ímanes a prenderem a angústia de quem passa aos troncos feridos de fúria natural.
Por fim, Rubens e a eterna surpresa de cruzar luz e sombra; de um entardecer estar completo na cor de uma árvore, de assim haver a luz amarelo doente dos crepúsculos. Olho Rubens e compreendo porque se diz, “Em Itália pintam a luz”. É tão outra a luz de Rubens!
Entretanto, uma pintura de Adão e Eva acenou-me de um paraíso escuro e folhudo. A primeira mulher, uma desnuda leitosa e irradiante, a oferecer a displicente maçã ao parceiro de deslavado e contrafeito semblante. E não há como olhar o quadro sem a sensação de que está propositadamente todo errado. Pareceu-me até ouvir um riso escarninho a desprender. Uma brincadeira de artista.

Já no final, um outro quadro me alcançou: “A caça”.  Por entre aquele mundo androceu e de poder canino, uma mulher na sua montada. Por que razão um pintor do século XVII coloca uma mulher a apreciar o triste espectáculo que é perseguir uma lebre espavorida e semimorta?! Talvez um guia me esclarecesse. Mas o tempo. Então, guardei a tarde e regressei-me.