quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Cartas para Olívia


Olívia


Esta semana são as festas de Natal. Provavelmente também tens as tuas. Na catequese. A representar presépios. Escrevo-te sobre isto porque hoje assisti a uma. Tão linda! Que tem o dom magnífico de ser a única. Tal como o meu jantar de Natal será um e grandemente feito por mim.
Pois, fui ver o natal de um Jardim de Infância. Como eu gostei de ver aqueles miúdos, alguns tão pequeninos, um deles, literalmente de palmo e meio. E tão ou mais bonitos que eles, os pais e os avós. Na minha frente, uma avó babada, a acenar à neta sem descanso, aflita de que a garota a não visse – e não a viu porque, como bem sabes, do palco iluminado para o meio da plateia escura, nada se distingue. Porém, quando chegou o momento da neta cantar a “Estrelinha cintilante” – uma cantora perfeita - , os garotos cheios de brilhos por detrás a fazer coro, a avó levantou-se apressada e foi sentar-se - não sei como, os lugares até me pareciam todos ocupados - na primeira fila. A fazer com a neta todos os gestos. Do outro lado, a educadora, mais moderada, ia lembrando cada parte. Mas, cá de trás, era impossível desgrudar das costas entusiastas e dançarinas da avó, braços no ar a lançar deixas que perturbavam a visão de quem estava logo por detrás. Nem sei do que mais gostei  naquela canção. Temo que da avó.
Se tu visses…O Jardim está a desenvolver um projecto para conhecimento da história local. E lá veio uma canção com o rei D. Carlos e a Rainha D. Amélia. A rainha, fantástica no seu orgulho de um colar de quatro voltas ao pescoço e coroa na cabeça, junto ao pretenso iate com o seu nome. E D. Carlos pintando o seu quadro, uns extensos bigodes que teimavam em cair-lhe e que ele segurava de vez em quando, já farto de tanta escorregadela, com o pincel – o elástico que corria atrás da cabeça devia estar largo.
Como tudo que é natural pode ser comovente. 
E houve quem viesse confidenciar-me depois, “a educadora é muito boa no que faz, é genético”. Caiu-me tão bem. Não devíamos precisar, mas ouvir dizer bem de nós faz-nos falta. E falta muito nas pessoas a capacidade de reconhecimento do outro.


PS: andas benzinho? Não adoeças, tem cuidado contigo que este gelo que se agarrou ao astro traz muito perigo. 

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Para Lá do Mar

Quando a mana mergulhou na parte sombria por detrás da tenda, deixámos de vê-la e o nosso coração minguou até ao tamanho de uma noz (o meu, seguramente). E logo ela reapareceu sorridente, um rapaz pela mão. Vestia um pólo amarelo e, à luz da fogueira, não o reconhecemos. A minha irmã sentando-se a meu lado muito composta a apontá-lo, ele estava ali atrás da tenda. O intruso de pé, a olhar-nos, Boa noite a todos, andava por aqui a passear e lembrei-me de vos visitar. A minha amiga de mau humor, ah… e para o lado, toda secura, bela hora. E a minha irmã a pôr água na fervura e desfazendo o enigma, eu conheci-lhe a blusa amarela é a mesma que tinha esta tarde na praia. Eu ainda estupefacta daquele homem ali, deviam ser mais de vinte e duas horas, vivia em Palmela (tinha-nos dito à tarde) o que é que ele podia procurar entre os pinheiros da Caldeira. No entanto, limitei-me à apresentação, é um colega que fez exame na mesma sala que eu e encontrámos hoje na praia.
Depois, ele sentou-se sem pedir licença mas as suas conversas eram recebidas com frases curtas ou monossílabos a contrastar com o calor do fogo, e breve nos deixou. Quando ele sumiu no escuro, a minha amiga para mim, olha lá, mas tu conheces o homem daonde, tens a certeza que ele fez mesmo exame, que entrou na sala e isso… é que o homem parece que é maluco. Tu já viste bem, aparecer aqui às dez da noite (e prolongava-se nas reticências) De certeza veio atrás de vocês quando saíram da praia, o parvo – inquisitiva, para a minha irmã -, tu não deste por isso? À tua irmã nem pergunto que ela nunca vê nada. E garantia severa, o homem é maluco, tão não viram que é parvo, esteve aqui só um bocadinho e já nos convidou às duas para irmos a casa dele a Palmela (parava um bocadinho para pensar e continuava) Ainda por cima disse que os pais não estavam lá, o estúpido - visando-me directamente -.  E tu, feita parva (e imitava-me), "a gente não costuma ir a essas festas" e a dizeres onde vamos. Tu queres que o homem nos apareça em todo o lado, queres? Não tás mesmo a ver que ele anda atrás de ti, o paspalhão. E olha que não é com boas intenções. Uma pessoa bem intencionada não aparece às dez da noite como se fosse um ladrão. – e voltava a apostrofar determinada, o estúpido. E regressando-lhe a memória do convite que a ofendia, para que nos quer aquele emplastro  lá em casa quando os pais lá não estão. Parvalhão. E o que é que ele estava a fazer atrás da tenda…Depois, ponderando prós e contras, olhem vocês não se esqueçam é de trancar a tenda por dentro. E se ele aparecer gritam com força que é para acordar toda a gente.
        A minha amiga tocou a rebate e “o amarelinho”, nome que generalizámos a partir da minha irmã, não voltou a aparecer. E sim, aquele rapaz não as batia todas. Sim, parece que queria alguma coisa comigo – na altura do campismo  pareceu-me exagero e malevolência da garota sobre as boas intenções de quem só estava a ser simpático e deixar-nos à vontade contando que os pais não estavam –. Ocorreu-me tal hipótese, passados meses, depois de me surgir no local de trabalho a contar-me que escrevia letras para canções. Achei imensamente parva a confidência. Andava com a universidade a tiracolo, morta de sono e cansaço, e disse-lhe que tinha pouco tempo para o ouvir  - era verdade, gastava o tempo a apanhar comboios e barcos - e não me interessava nem um pouco por letras de canções (por acaso hoje, algumas, até me interessam). Aconselhei-o a encontrar uma profissão e colocar as letras de canções num lado mais alternativo, porque, confidenciei, não me parecia que alguém pudesse viver disso.

E depois, só voltei a vê-lo de longe, fingindo sempre que não o estava vendo. O que até era fácil porque como sou míope ainda hoje não sei se o viJ) até porque,  à época, desconhecia a miopia que me habitava; logo, via mesmo muito mal ao longe ah, ah, ah….

Para Lá do Mar

Optámos por domar com alguma inteligência a anomalia crepuscular. Comprámos repelente e, conhecedores do horário dos insectos – tinham hora de jantar, eram disciplinados - , ou nos fechávamos nas tendas ou, preferencialmente, procurávamos andar por outros lados como seja, tomar banho num jacto que corria para o exterior, em cascata, proveniente de um depósito enorme,  talvez pertença do parque de campismo. A falta que nos fazia na quinta aquela água desperdiçada. E como ficaria bem a preencher o fundo minguado do nosso poço. O olhar fatalista do meu pai nas laranjeiras que desmaiavam pelas folhas, caldeira empoeirada de secura, as árvores estão a precisar de outra rega, mas ainda não há água no poço. E ali, jorrava horas a fio para coisa nenhuma. Pronto, nós tomávamos banho de cascata o que, na verdade, pelo menos a mim, não voltou a acontecer. Sempre que na TV surgem as cachoeiras do Brasil, verdejantes e de água azul, planta-se-me o cinza daquele paredão de blocos de cimento, e o jorro encorpado da água que se escapava lá de cima e tão bem nos sabia, sem necessidade de fechar ou abrir torneira. Eram uns banhos de frio revigorante  e saíamos desencardidos e frescos.

E assim nos corriam os dias. Numa das noites em que estávamos todos circundando a nossa lareira ao ar livre, como de hábito em barulho de risos e conversas, soou-me uma cautela de passos. Em seguida, soou parecido a mais gente. Calámo-nos em escuta. Nesse momento pensei que o nosso amigo nos fazia falta, muita falta. Estávamos num pinhal, algo distantes de outros campistas (queríamos o nosso espaço), sem qualquer defesa (nem corta unhas tínhamos). Mas tudo que ouvimos foi crepitação da lenha e concluímos o que desejávamos, era apenas rebate de temor e má audição. Por isso, volvemos ao estado de riso e conversa, com meio ouvido alerta. De súbito, mais nítido, o restolhar da caruma a partir. Eu a pensar alto, anda aí alguém. E o conjunto  em silêncio expectante - o alguém também expectante, não se ouvia um som -, todos receosos de investigar atrás da tenda, onde parecia morar o cerne da desconfiança, o meu irmão a chegar-se a mim. Repentinamente, a minha irmã, à época uma medrosa maior, disse fixando a escuridão, está ali uma cara maluca, em seguida levantou-se do meu lado e caminhou decidida e sem solicitar ajuda, para a traseira da tenda. Eu, transida da sua audácia absolutamente inesperada. Se por um lado desconhecia o que ela ia encontrar, por outro, estava segura de haver ali algo móvel. Mas, sobretudo, perguntava-me como é que alguém tão medroso ia assim afoitar-se no escuro, exactamente o seu maior temor.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Para Lá do Mar

Tróia do meu sonho, ninfa da minha realidade mais íntima….

No ano seguinte, decidimos não repetir a Zambujeira do Mar. Queríamos mudar de ares.
Primeiro, acampámos um fim-de-semana em Troia, a fim de lhe conhecermos pormenores. E, pura palermice, conhecemos mal. O nosso amigo ingressara como voluntário na tropa e não podia acompanhar-nos e montar as tendas. E eu levei o Pedro para o efeito. O meu primo encontrava-se em Portugal e presumo que nos tenha vindo visitar nos feriados e tratar de alguns documentos, quem sabe se mesmo os do serviço militar (nessa altura o Pedro já não nos acompanhava; a minha tia tinha, finalmente, a sua casa, e uma Blanca madrilena retinha-o lestamente). Sei que aproveitámos também uma ponte entre feriados, talvez no 10 de Junho. Éramos quatro, eu, a minha amiga, uma amiga dela e o Pedro. E acampámos logo ali na linha dos barcos, junto ao rio e perto do cais, onde o barulho e o gasóleo andam de mão dada. O local não foi o melhor, mas verificámos a existência de supermercado, farmácia, cafés. Concluímos ser bom lugar para campistas. E Troia campeava nas preferências. Nesse tempo, vivíamos ambas em Setúbal, ela hospedada numa moradia central, com vista para o Sado e eu no Bairro do Peixe Frito, em casa de um amigo do meu pai cuja família, ela mesma, seria digna de descrição. Por vezes, íamos à praia juntas, mas nesse ano e no seguinte a minha amiga bateu-me aos pontos no seu novo hábito de banhos ao entardecer. Na maioria do tempo, limitava-me a olhar Troia de longe, às vezes junto ao cais dos barcos, hábito em que persevero se tenho (ou crio) tempo livre em Setúbal.
Entretanto, ela descobrira um lugar onde podíamos acampar (havia um pinhal que servia de abrigo às tendas), com banho e água potável perto. Era tudo grátis e parecia-nos o melhor dos mundos. Ficava em Troia, numa enseada do rio, reentrância bojuda conhecida como “a caldeira” onde a água era mais quente que em qualquer lugar. Um paraíso. O nosso amigo continuava na tropa, mas de imediato nos garantiu os fins-de-semana e logo lhe aproveitámos os braços. Foram as nossas primeiras férias sem homens a tempo inteiro (ainda não conhecíamos o Jorge). Chegámos matinais, armámos as tendas debaixo dos pinheiros, fomos às compras e tudo foram maravilhas até ao entardecer.  
Porém, ao cair da tarde, uma nuvem de mosquitos, saída não se sabe de onde, estragou-nos o éden. É que não havia lugar do corpo onde não chegassem. A minha amiga e seu pendura, arrasados, resolveram ir para a água, onde a bicheza não ousaria. Mas a nuvem escurecia rente à água e foram obrigados a sair. O inveterado optimismo do nosso tropa, com a cabeça debaixo de água até se está bem - e instruindo o pessoal -;  vens à tona, respiras rápido e mergulhas de novo; afogas logo uma data deles. Ela indiferente a conselhos com piada incluída, uma coceira no corpo todo, a choramingar, ai a minha mãezinha que não sabe o que a filha está aqui a sofrer. Ou então, minha rica casinha sem um mosquito e eu aqui toda picada para onde quer que me vire. Não aguento quinze dias, vou-me embora antes, se calhar amanhã.
A sua imagem de mulher forte e segura, vergada por compacta nuvem de mosquitos, tinha alguma graça. Jamais a ouvira chamar pela mãe ou pela casa paterna e ainda hoje creio ter restringido tais lamentos a esse impasse de frenesim mosquiteiro em que a pele nos gritava por dedos que não tínhamos, inchando solene a cada picada. A léguas da deserção, nós quatro, também aflitos com a mosquitagem mas habituados ao bera da vida, só ríamos dos solilóquios deles.
Quando o agastamento estava no zénite – todos picados -, os mosquitos desapareceram.

Após o jantar, fizemos, enfim, a famosa fogueira que nos crepitava há anos no imaginário. Ela contente e já a esquecer propósitos de regresso, aquilo dos mosquitos é só uma hora, depois passa, digam lá se não é bom estarmos aqui à fogueira, a deitar achas no lume como nos filmes. - e mexia no fogo com um pauzito satisfeitíssima, a chegar-lhe mais uma pinha a que nós chamávamos cascabulho, afirmando num leve acento de prevaricação - é pá, gosto mesmo de fazer isto. E o nosso tropa ria bonacheirão, esta noite fazes chichi na cama. Ai deixa, vê lá se te viras para o outro lado que não quero acordar todo ensopadinho.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Cartas a Olívia

Olívia

Escrevo-te por me apetecer. Sempre e apenas porque sim. É certo, vou aproveitar para me inteirar sobre o que pensas dos homens. Não casaste. Houve um rapaz que te gostou e de quem, talvez, tenhas ameaçado gostar. Porém, as saias da mãe muito compridas; as tuas irmãs com mãos demasiadas, todas estendidas para ti; a casa de teus pais a necessitar-te a carteira. Imagino que tenha sido assim. Mas, quem sabe, foi diferente. Quem sabe, não arriscaste provar braços masculinos, um beijo, um ardor compartilhado. Fizeste mal. Não to digo na cara, face a face, seria muito mau porque já não emendas nada, és já outra depois de tanto ano. Nem eu torço por torturas gratuitas, remorso, dor a mais.
Acredito que, mais tarde ou mais cedo, te chegaram os  anseios de toda a gente. Sim, porque eras normal (ainda deves ser, apesar de abolido o assunto) e a qualquer mulher chegam os anseios da paixão. Os do amor não sei. Amor é sentimento que exige presença e só cresce com ela. Não precisa ser física, mas tem que existir. Ou será mera fantasia, cuja serve também na mesa da paixão. Em amor, se venha só, a fantasia esboroa, não se aguenta de pé.
Imagino-te a vida sintética: tratas da tua roupa e da casa sempre limpa, pouco cozinhas porque não gostas e nem sabes, as manas poupavam-te sempre, temes o silêncio nocturno do lar e foges a dormir num quarto que não é teu (não entendo esta parte, palavra). Sempre só. Sorris por fora das graças dos outros, a ouvir-lhes contar a lufa-lufa dos dias.
E tanto que não sabes. Desconheces o calor de uma companhia mais íntima, não imaginas a que cheira a pele lavada de um homem jovem, os teus dedos não se cruzaram com a elasticidade firme dos braços, não os descalçaste qual gueixa a palpar-lhe a incomensurabilidade dos passos no músculos da perna, não tiveste o ensejo de ser grata à vida por um corpo junto ao teu, a mimá-lo. E isto, Olívia, sempre lamentarei em ti. Sempre. Não. Não é não teres casado. Não é estares sozinha. Estamos todos sozinhos, Olívia. Num momento ou noutro. Ou até talvez sempre.
Não vês? Faltam-te memórias felizes. Memórias de corpo e alma. Que te pertençam por inteiro e guardes como tesouro que ninguém pode retirar de ti. Foi sempre essa a razão que me fazia desculpar, imaginando que te compreendia.
Mas isto sou eu a pensar-te. Quem sabe, és feliz na igreja (com a comunidade,  como dizes), e no trabalho que desenvolves em prol de reuniões que só são absurdas para mim.
Mas, realmente, penso agora, que sabes tu dos homens para além do corriqueiro das mulheres, que é dizerem-te mal deles e me desinteressa...Sobre o género masculino não és senão de escutar. E não me apetecem momentos confessionais. Dou-tos e a teus padres.
E no entanto, passaram-me na vida alguns excepcionais. Não porque fossem santos, ou mesmo bons. Somente porque o amor é sempre uma excepção. Se queiras, para ti que vives imersa em água benta, um acto sagrado.
Porta-te bem e não mastigues a hóstia que é sacrilégio J
PS: desculpa, mas um bocadinho de humor ficava-te bem. Falta-te à piedade:))

Beijinho

Para Lá do Mar

 Como é linear o pensamento aos vinte anos! Apesar dos benditos vizinhos afirmarem ter-nos ouvido cantar, desligámos do assunto. Não baixámos o tom de voz, nem alterámos um ínfimo no comportamento. Para nós, a tenda era casa, lar que nos isolava. Vivíamos imersos na nossa visão irreal da realidade, mofando de verdades taxativas e desligados da vida quotidiana, linha tão longínqua que parecia não nos pertencer. Detentores de um tempo novo, sentíamo-nos bandeirantes da vida e inaugurávamos um sagrado só nosso. Por isso, continuámos rindo e cantando ao serão – o candeeiro era só um, por norma na outra tenda.
Certa noite, resolvemos parar a cantoria e a risota e fomos todos fazer chichi. Saímos cuidadosos, a dar voz ao ditado popular, “onde mija um português…”, os pés a palpar terreno que no escuro tudo são buracos, armadilhas, vidros que lá não estão de dia, pontiagudos de farpas em pedaços de madeira que a noite, numa maldade inomeada, arrasta para a boca das tendas. O céu era de estrelas e escuridão sem luar, e ainda assim eu coibida, vamos ali para trás da tenda que tenho vergonha, pode vir alguém (como se à frente da tenda uma rua iluminada cheia de transeuntes). E lá seguimos a tropeçar nas espias laterais, a minha amiga a abreviar, fazemos já aqui. Eu, mão a orientar a mana mais nova, não, temos que ir ali para trás que é mais seguro.
Depois, atrás da tenda, foi aquela torneira aberta. Já aliviada e de pé, a compor-me, vejo cinco ou seis pirilampos a distância escassa. Basbaque de estátua na maravilha, tão engraçado, meia dúzia de pirilampos aqui na areia da praia. Ela, um tudo-nada perplexa, pois é…. A minha irmã, onde? Onde? E eu a apontá-los e a reparar melhor, desvanecida com a natureza das coisas, a cutucar a amiga, já viste que estão todos alinhados à mesma distância uns dos outros e quase em linha recta. E ela como quem desvenda o segredo de um axioma, aquilo, não são pirilampos. Eu intrigada, não são?! Então são o quê? Ela, não sei bem, mas não são pirilampos, e virando-se para o meu irmão, vai lá espreitar mais perto.
O mano deu uns passinhos curtos e virou-se em surdina risonha, são os alemães, estão deitados ao lado uns dos outros nos sacos cama a fumar, ia-me deixando cair em cima de um. E nós o uníssono aspirado de um AAaaaaah!, a imaginar-lhes o sorriso que não ouvimos. Os alemães são assim, todos polimento (aqueles eram). Invertemos a marcha ainda cheia de bocas escancaradas em ás de aspiração contida e, mal entrámos na tenda, demos corda ao riso. Tanto prurido e afinal, quase lhes encharcáramos os saco cama.
Também, quem é que os mandou dormir na rua e atrás da nossa tenda?! A liberdade também é isto.
Ora, certa manhã em que estávamos toalhando a curtir o sol depois de mais um banho – havia nos nossos rituais um continuum de banhos -, olho em frente e vejo o meu namoradinho, tenda ao ombro, cigarro à Belmondo, camisa aberta,  descendo para a praia com suas grandes pernas molaflex, na companhia de um ou dois amigos. Não gostei da ideia e, embora ele tivesse feito uma meia promessa, talvez eu apareça por lá, era-me inesperado. Mas vê-lo fazia-me bem a tudo. É assim quando se gosta, a outra pessoa infiltra-se cá dentro e, se a vemos, espalha-se em nós uma paz onde apetece permanecer ad eternum, o nosso querer, não vás embora, fica. E somos conscientes que, nela, respiramos um ar liberto, desejado.

No entanto, seria ali o nosso princípio de fim. O meu adolescente, “Inglês” para os amigos, era-o em tudo. Porém, fora do capítulo amoroso, a sua adolescência era-me difícil. Essas férias iriam reforçá-la. Contudo, tenho absoluta certeza de que nos gostávamos um imenso. E nem precisava a mãe, em vésperas do seu casamento, a foto do meu filho mais velho na mão, olhando-me séria, sabe que foi o grande amor do Luís Alberto. Por ele e pela música que preferia de paixão e não é a minha, sinto funda ternura grata. E tanto de bom que me trouxe, obliteradas as divergências incontornáveis e desejando que no seu coração tenha ocorrido fenómeno idêntico. Anos e anos em que não o lembrei. E depois, uma semana inteira a memória a trazer-mo, estupidamente, um dia atrás do outro. Presentificando, como em filme, os momentos bons. E depois, com igual presteza, esvaneceu.

Passou o tempo e soube que morreu. Inútil perguntar quando. Há  incompreensíveis na memória. Do coração. 

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Para Lá do Mar

Era uma vez, na  Zambujeira do Mar…
O pós 25 de Abril era-nos um mundo sem crispação, tolerante. Talvez por isso, no início acampávamos na praia, bem ao fundo, para não impedir os banhistas. Logo ali. Saíamos da tenda e podíamos dar uns passos e mergulhar. Na Zambujeira do Mar, as nossas tendas ao fim da praia num tête-à-tête perpétuo e na encosta de rocha um chuveiro disponível a ajustar clientes em seu sinuoso de aço, vinde a mim.
Mas também ali o princípio levou marca. As tendas ainda ensanduichadas nos sacos, resolvemos lanchar na praia, a descansar de tanto carrego. Estávamos nós a mastigar, olhando sem objectivo para um grupo de homens e rapazes que jogavam futebol, quando a bola se escapou para a água e um deles, calça arregaçada, a foi buscar; deu-lhe um  xuto pequeno e ela aportou de novo ao grupo. O homem ficou-me de frente, costas dadas ao mar. E começou a regressar enquanto os outros continuavam o jogo interrompido. De súbito, os joelhos dele dobraram como se a vida os tenha abandonado repentina e logo caiu de lado, na areia. Os meus amigos, primo e irmãos, imersos na futebolada, e ele caído, a atravessar-me a retina. Pensei, morreu. Pus-me a repuxar a roupa de quem me estava mais próximo e disse alto: aquele senhor sentiu-se mal. Depois os do jogo viram-no também. Chamaram-no. Primeiro um tom jocoso, depois um alerta de preocupação na voz e a seguir uma aflição que já não cabia no nome, que enchia a praia e lhe sugava o ar. Num ápice, o acaso debruçado de um médico entre os banhistas a sentenciar, está morto. Impressionámos.
Mas a Zambujeira do Mar foi também o lugar onde desistimos de acampar no areal. Foi ali que repeti uma noite de angústia ao rubro quando uma maré viva entrou pela madrugada e nos ficou a meio metro das tendas. Aflita, senti a invasão da água metro a metro, a cruzar e descruzar a palidez de dedos sem figura, num tormento de alma. Rezei bastante a pedir ajuda que travasse a maré. E acredito que se a minha mãe em algum eterno lugar – e se haja, estou segura que sim -, terá intercedido. Ou, tivemos imensa sorte. Antevia, porque as sentia a roçar-nos, que uma onda nos levantava as espias e nós à deriva, sem distinguir lado de terra ou mar. E acudiam-me as rochas tão no seu lugar, densidade inofensiva onde o meu irmão brincava solar. E imaginava-nos a embater-lhes na escuridão. Duras. A esfrangalhar-nos as carnes. Pensava que ninguém nadava além do Pedro e do nosso amigo. Se fôssemos atirados ao breu da noite, éramos todos míopes sem óculos. E pesou-me ter tanta gente à minha conta, sabendo em cada articulação do meu corpo, que nós todos contra a força invisível do mar éramos nada.

Na praia da Zambujeira vivemos a primeira experiência séria de campismo. E ali cimentámos amizades que inda perduram. Eu convidara uma amiga para se juntar a nós e ela apareceu por lá, dado que se atrasou a vir da Guarda – não admira, aquilo é mesmo longe - e quando apareceu em minha casa já eu tinha saído com os meus irmãos há um dia e tal. Tínhamo-nos conhecido em Évora, cidade de portas muitas. Pois eu e essa minha amiga sabíamos várias canções em francês e inglês e quando cantávamos ia de enfiada o que nos viesse à lembrança. Perto das nossas estavam uns estrangeiros em tendas baixinhas - todos homens – que julgávamos suecos. Os nossos rapazes a erguerem o seu muro de lamentações, ainda se fossem suecas, agora cinco ou seis suecos...ou a rirem um com o outro por terem ido ver um filme pornográfico que nem sei como passou na Zambujeira do Mar e meias frases entredentes, viste… e riam reticentes. Nós a insistir, contem lá, pá… bolas contem à gente. E eles um para o outro, contamos? – risos – Ná. É melhor não. E nós, contem só os bocadinhos engraçados, vocês riem tanto…Eles rindo, não podemos. O Pedro com seu sotaque espanhol, si, si, no podemos mismo. E estavam nisto, a dar cotoveladas um no outro feitos tontos. Até hoje sabemos que havia um cigarro em qualquer lado estranho e a que os garotos achavam imensa piada. Quem dormia com eles na tenda sabe que passaram uma noite na risota.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Para lá do Mar

Quando descobrimos Porto Covo, o local ainda não sofria de pedigree. Era somente uma aldeia marítima e pacata na costa alentejana. Tinha um largo quadrado, rodeado de árvores com a copa inclinada para o mesmo lado, devido à força do vento. A bordejar o largo, umas casitas brancas e típicas, com barras, provavelmente de pescadores, e uma igreja caiadinha e interessante. Ao crepúsculo, as pessoas sentavam-se às portas em conversa comprida que estafava as cadeiras de lona armadas para o efeito. Era nesse largo de arbustos convenientes, que jogávamos à apanhada. Tínhamos a implícita conivência dos moradores que, por exemplo a meu irmão, faziam sinais para não ser descoberto ou chegavam mesmo a escondê-lo, ficando depois de olho em nós a averiguar espertezas. Foi ali que o Jorge esfolou os joelhos e se delatou vezes sem conta, indiscrição dos sapatos de sola. Coitadinho dele.
Havia noites em que saíamos a passear Porto Covo de ponta a ponta, cantando tudo que viesse à rede. A canção preferida do Jorge era, “Casa-te ó prima tira a certidão”, mas entoávamos “a Rama”, “Ribeira vai cheia”, “Foste foste que eu bem sei que foste”, a“Maria Faia”. E mais.
Nos fins-de-semana, Porto Covo engalanava um terreiro fechado – onde havia cinema – e fazia um baile com um tocador e tudo. E nós íamos ouvir a música para junto da paliçada e a quem de nós apetecesse, dançava. A minha amiga dançava sempre. Com um ou os dois rapazes. Dançavam a inventar os passos a todo o momento e nós em volta, a acertar palmas com pés, todos contentes. Certa vez, estávamos tão divertidos que os rapazes que iam entrar desistiam e ficavam a fazer roda connosco, um deles a convidar-me para ir ao meio com ele, como se eu conseguisse dançar com alguém, e outro já a fazer par com a minha amiga. O certo é que ninguém entrava no terreiro. Então, um dos responsáveis saiu e expulsou-nos (da rua) quase implorando que nos fôssemos divertir longe. Tirávamos freguesia à diversão. E nós fomos. Compreendemos o “temos de ganhar ao menos para pagar ao tocador, vocês estão no baile cá fora e quase há meia hora que ninguém entra”. E voltámos às tendas satisfeitinhos da nossa proeza. A minha amiga, é pá somos mesmo bons, "arrebentámos" com a freguesia ao homem – e dava uma gargalhada bem disposta. Depois rematando à canhota, vejam lá bem que eu até andei a dançar com um rapaz que nunca vi mais gordo…

Há um episódio nos duches também curioso. Os nossos banhos ocorriam numa torneira já falecida - quando há pouco tempo visitei o lugar, procurei-a sem êxito. 
Virada à praia dos pescadores – uma prainha onde descansavam pequenos barcos de pesca –, nas traseiras de umas casas baixas com quintal, havia uma torneira pública onde os campistas tomavam banho. Claro que ninguém se despia e comprávamos uma mangueira cuja medida o Isménio do supermercado – um pedaço de homem a irradiar sugestão – já conhecia. Portanto, pela tardinha, lá íamos como formiguinhas. Com a toalha, o sabonete (não havia gel de banho), o champô e, claro, o nosso pedaço de mangueira. Por norma, eu e a minha amiga não nos juntávamos, pertencíamos a grupos diferentes. No entanto, uma vez aconteceu. Já não recordo o motivo, mas atrasámos. Tivemos de esperar que outros se lavassem e a rampa áspera de cimento onde nos banhávamos escorria. Ora, todas as tardes víamos num dos quintais, um rapaz sentado, muito  entretido a ler. Nunca dei conta de como eram os olhos, as sobrancelhas, permanecia ensimesmado no livro. E todas nós brincávamos com o facto de ele não olhar o pessoal, mas continuar a sentar-se naquele lugar de privilégio. Como a hora já ia adiantada, resolvemos tomar o duche juntas, a adiantar serviço. Porém, mal comecei a ensaboar-me, os pés escorregaram no cimento engordurado de sabão e caí despedida. A minha amiga, colhida na surpresa, correu a apanhar-me o sabonete que escapulira e de súbito dei conta de uns braços fortes que me levantavam do chão, em peso, quando desfalecia de dor. O rapaz tinha saltado o muro do quintal e correra, silencioso,  a levantar-me. A minha amiga no caminho, como é que ele chegou ali tão depressa? E eu, bela amiga, caio um trambolhão e apanhas-me o sabonete, foi preciso o rapaz sair lá do quintal para me levantar. E ela, oh, se tu visses a pressa com que ele saltou o muro, parecia um raio. No dia seguinte tinha nódoas negras e escalavrões de alto a baixo, num dos lados do corpo, nem o rosto escapou. Contudo, o meu salvador silencioso desapareceu. Mas os meus amigos bem que me gozavam. Pergunto-me como seriam os olhos do herói. Ou as sobrancelhas.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Para Lá do Mar

Durante o campismo, passámos por várias praias, mas as férias em Porto Covo (em anos vários ) tinham um gosto especial. Jamais havíamos – eu e os meus irmãos -  avistado uma ilha e a do Pessegueiro alimentou-nos o imaginário até à exaustão, tenho certeza que o príncipe mouro e sua amada cristã ali aparecem em noites enluaradas, dando voz livre e final a seus amores contrariados. E invejo-os, banham-se num cenário de sonho, vindos de uma lenda a sério, numa supra vida sem fronteira. E esta história vou daqui a pouco confirmá-la no Google que nos foi contada na praia do Pessegueiro por um pescador de mau aspecto, quem sabe chegado desse tempo remoto, eu a olhar-lhe as roupas a ver se descobria um sinal, uma marca actual e nada. Estou em vias de acreditar que o príncipe perscrutou as nossas mentes curiosas e nos enviou um vilão matinal para esclarecimento, à beirinha do primeiro banho. Garanto, posso até ver ainda muitas ilhas, ir por exemplo aos Açores onde toda a gente afirma que mora a beleza pura e habitam deuses e duendes clorofílicos, mas nada apagará a nossa imagem estilizada daquela ilha-donzela em seu desmaio, o sol a beijá-la arredondando vagares de ternura, o mar a ondular-lhe tagatés nos artelhos. E o pessegueiro algures, todo braços incapazes, negritude de gestos suspensos na claridade, a lembrar-nos um amor funesto que é aquele e pode ser outro. Porque os amores de verdade são dramas e histórias que ninguém conta, mas existem em suas ilhas sem ponta de mar, sol ou lenda.
Pronto, estou segura que aquele pescador de outras eras era um mensageiro: consultei o Google e as duas lendas que existem não correspondem: uma passa-se entre os piratas, a Senhora da queimada e um eremita; e a outra envolve uma criança árabe com sua gralha e um pai tirano. Além disso o nome da ilha não deriva de uma árvore de fruto. Porém, lenda por lenda, prefiro a dele.

Cada banho na praia Grande assumia foros de odisseia, aquelas ondas são de pelo na venta, têm o seu feitiozinho, a minha irmã sem óculos não via e com eles tinha medo que uma onda mais rebelde os partisse, de modos que se ficava quase sempre pela beira da água  ou lhe dávamos a mão para ir um pouco mais longe. Mas sou destemida e optimista em meio aquático e, numa manhã de mar picado em que os outros não arriscaram, tive de ser salva por um dos rapazes a quem, na aflição de engolir água sem destino e incapaz de destrinçar a minha posição dentro da fúria aquosa, deitei-lhe os calções abaixo logo que os toquei (conta ele, não me lembro de nada) e, agarrada como lapa, dificultei-lhe o regresso. Foi aborrecido porque estavam todos a olhar-me e teimaram que a sua inanição se devia a moi-même: de cada vez que vinha à tona, surgia sorrindo (não entendo porquê, estava aflitíssima) e eles convictos que me divertia. Ora só um pensamento me obcecava, vou afogar-me à vista de todos e não consigo sequer acenar ou pedir socorro.
Mas houve outras peripécias. Algumas mais pitorescas.
Numa tarde em que seguíamos para a praia veio-nos à mão – ou estaria pendurado ou colado em algum poste da luz -  o anúncio de passeios de burro pelas praias. Alugavam-se burros pagos à hora. Demiti-me de imediato - nem no meu burro andara nunca, queria lá agora andar no burro dos outros -, mas a ideia enraizou nos dois rapazes e tenho alguma incerteza mas parece-me que a minha amiga, que nessa altura ia a um picadeiro montar a cavalo, também entrou no convénio. Fizeram logo a combinação da hora e o resto do grupo arranjou forma de ser plateia na beira da estrada, eles a jurarem-nos a pés juntos que o seu circuito passava, obrigatório,  pelas nossas tendas (já viramos passar outras pessoas). No dia aprazado, partiram satisfeitíssimos e nós no compasso de espera, a preparar a recepção dos nossos “burristas”. Esperámos e esperámos. Passou meia hora. Depois mais sessenta minutos. E recolhíamos às tendas quando surgiram cabisbaixos. Nós, então? E eles, olhem, o homem disse que lhe dávamos cabo dos burros, que somos pesados demais para os animais e por mais que lhe garantíssemos que os trazíamos são e salvos, não nos fez caso.

E foi assim que ficou truncada uma viagem de burro para a qual havia uma plateia entusiasta com apupos e dichotes seleccionados; tínhamos até uns cartões – as costas das setas orientadoras da Mariana – bem engraçados. E o pobre do homem, que só queria o melhor para os animais e decerto desconfiou do bom humor dos nossos amigos, deve ter sentido as orelhas a escaldar. Não lhe poupámos críticas e nem rimos pouco do revés sofrido. Os “sofredores” eram os mais nítidos gozões.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Para Lá do Mar

A primeira amostra surgiu-nos duas ou três noites depois quando todos tinham ido para o café e só eu e a Gina ficáramos na tenda com os meus irmãos mais novos – que o resto do grupo não gostava de levar por lhes espantar a caça, especialmente os rapazes cujo intuito nocturno era travar amizades com as estrangeiras louras de long legs e receavam que elas os julgassem seus filhos. Estávamos cantando – somos as duas afinadas – quando um rapaz muito jovem, cabelo aos caracóis, afastou o pano da tenda, colocou um pé dentro, agarrou-se ao varão da frente no que me pareceu  um desequilíbrio súbito e perguntou com um ar estranho, não é aqui o jardim? Nós, deitadas sobre os nossos colchões e já prontas para dormir, sentámo-nos espantadas e meio a rir. Ele continuava de pé, inteiro no nosso espaço, ainda com a mão no varão a olhar muito vagamente não entendi para onde, murmurando, é, é, são aqui as flores, aqui é o jardim. E nós para ele como se fora uma criança pequena, a explicar-lhe, não, não, isto não é um jardim, é a nossa tenda; não vês onde tens a mão, é o varão da tenda. E ele a insistir abanando os caracóis que por acaso eram lindos e jogavam com a camisa branca meia aberta, a deixar ver pele que gostava pouco de praia, é o jardim, sim, disseram-me que havia aqui um jardim. E começou a sentar-se. Os meus irmãos calados.
A dada altura aborreci-me de o tratar como bebé, achei que não tinha de aturar bebedeiras de quem não era da família e repontei, tens de te ir embora, vai ter com os teus amigos, eles devem estar lá fora. E ele já com uma mão no chão da tenda, teimoso, não, eu fico aqui a cheirar as flores no jardim, gosto muito de jardins. O curioso é que não tinha visto um bêbado como ele, parecia que não nos via e as suas afirmações não eram resposta cabal às perguntas. Também não emanava aquele cheiro a álcool que eu tão bem conhecia. Mais parecia que ia desenvolvendo um raciocínio em paralelo e que vivia uma realidade também paralela.
Entretanto, chegou outro vizinho, e, com ar de big boss, foi buscá-lo dentro da tenda. Desculpou-se e desculpou-o e prontamente o levou por um braço, afirmando ir deitá-lo, tinha bebido demais. Para quem tanto insistira em permanecer no jardim, o rapaz deixou-se guiar que nem cordeirinho. Não voltámos a vê-lo por ali, mas no dia seguinte contámos a história da bebedeira aos nossos amigos D. Juan, que logo empunharam espada e mosquete no intento de pedir explicações ao outro grupo, por nos terem molestado o recreio. Mas nós dissuadimo-los. À luz do dia, o episódio soava apenas engraçado.
O outro facto curioso veio de uma rapariga loura que, na sua eterna mobilidade, o outro grupo integrou a partir de uma dada altura. A garota não era bonita, tinha cabelo oxigenado e um ar ligeiramente desleixado em demasia – sou desleixada e sei do que falo. E o mais estranho é que a Gina olhava-a e, eu conheço aquela cara, mas de onde.
Certo dia, essa mesma também nos veio cair no colo. Melhor, uma noite; porque nunca descobrimos onde é que eles viviam durante o dia, depois que acordavam. Nessa noite, depois do jantar, veio até nós, sentou-se por ali e apresentou-se, chamava-se Suzy com ipsílon (ela dizia ipson). Achei muito topete, mas não disse nada. E em seguida começou a desfiar uma história de riqueza e fortuna tão mirabolante na sua fraca figura que ninguém acreditou, nem eu, crédula de pés juntos. E falava sem destino. Julgámo-la também bêbeda e comecei a encontrar razão para o sono matinal dos nossos vizinhos. Entretanto, já ela ia nas liberdades sexuais que os pais lhe permitiam, nas marcas de carro que tinha na garagem, nos países que já visitara. Mas era notório o seu português deficiente na oralidade. Que era universitária, filha única e tomava banho nua com os pais (tinha as unhas todas sujas e roídas). Achei meio promíscuo e fiz-lhe notar que isso a mim não me dava jeito, mas ela que sim, eram liberdades que os três apreciavam bastante. Enquanto eu assim conversava com ela e os outros se desentendiam daquele chorrilho a desviar os olhos tentando não rir, reparei que a Gina a olhava fixamente, pensativa mesmo. E quando ela ia a meio de uma festa dada nos seus salões, a Gina num grito contente: Maria de Jesus!!! Eu sabia que te conhecia. Ela virou-se e disse baixinho, tu és de Évora não és? Também me lembro de ti quando estive no Calvário. E desatou aos abraços à Gina num pranto cheio de lágrimas e soluços.
                  Afinal a história era muito oposta. O Calvário era uma casa de correcção (?) em Évora, onde se encontravam as menores por quem ninguém perguntava e tinham sido apanhadas na prostituição. Disse-nos que tinha fugido do Calvário e que já se arrependera mas que a sua vida ia ser sempre uma desgraça. E depois desejou-nos boa noite e foi ter com os amigos. Não a voltámos a ver. Compreensível.
Quase no fim das nossas férias, os guardas frequentavam-nos os vizinhos com assiduidade. Até que eles se fartaram e foram embora. Ou terão sido expulsos, já não recordo. Tive saudades daquele sexo livre que adivinhávamos dentro dos sacos cama ao relento, da francesinha tão bonita a chorar na carreira por um português que ficou a dizer-lhe um adeus para nunca mais e a seguir rumou a outras paragens, daqueles dois que descobrimos a beijar-se em cima de uma árvore e nós cá em baixo à espera que caíssem de um fogo mais aceso. Dos nossos amigos bonacheirões para os meus irmãos, tão, que é isso, vocês não têm idade para comprar bilhete, fora daqui. E ficavam eles a olhar:)


As coisas que a vida ensina a um grupo de campistas imberbes…

domingo, 7 de dezembro de 2014

Requiem

Há anjos que não voam. Conhecemos que são anjos pelo sorriso de bondade natural e sem malícia.

A Paula tinha essa natureza angelical, era simples, alegre, bondosa. Morreu hoje.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Cartas a Olívia

Olívia

Não gostei. Não gostei mesmo nada da tua voz ao telefone. A descartar-me. E não tive coragem para te dar o meu grito de alma de isso não se faz. Não te enganes, rejeitei a tua recusa. É sem regresso, Olívia. Nunca mais. Oh, sim, vou escrever-te daqui, onde o teu ser físico não me lerá. Conheço-o. Nem sequer sabe mexer no Pc. Aqui, existes-me no imaginário e é dele que te levantas. És, portanto, a destinatária e companheira certa.
Não sei se mais me desiludo contigo se de mim. Como é possível que, depois de tanto ano, apenas recordes o tempo de Évora, como se a seguir, o nada… e eu na certeza de que sobre Évora pus tanto de nós (tens razão, fui só eu a acrescentar), a supor que seríamos outras mas ainda inteiras na amizade, apostando que mesmo mais crescidas nela (terei em ti a imagem feliz que não te deste ao trabalho de desfazer, sou um embrulho). Aceitei as tuas recusas, os teus silêncios esquecidos, as tuas não respostas…a religião atarefada a preencher-te o vazio dos dias. Fiz mal, alimentei a ilusão. Que, olhando com mais objectividade, sempre te apressaste a desfazer. Mas eu contínua, a lançar-te sobre os ombros o fatalismo alentejano. A tapar-nos com ele. Desculpa o ocaso da decisão. O que crescia era o meu abcesso de ti, tu eras o corpo estranho a debater-se dentro do meu.
Mas em amizade as coisas são ou não são. E nós não somos. Dois dias a purgar deve ser suficiente.
Vou enviar-te o que tricotei para ti. Com amor, pois. Com a amizade toda que te tive ao longo de décadas, entretecida em cada ponto. Espero que gostes e uses. Tu hás-de, então, ligar a agradecer o inesperado. E vou rir-me, porque já me morreste mas falo ainda contigo. E na tua estrada comprida de planície, para ti, não piso mais.
Não sei se hoje nasce a minha Olívia ou se só ela me existia se pensava em ti. Surges intacta nesta correspondência de um só sentido que afinal foi sempre o nosso. Quatro dezenas de anos. Repara na burrice. A verdade é que apesar da promessa, um dia arranjo um tempinho e mando-te uma carta, desististe também das palavras. Desculpa a tua realidade ter-me escapado, mas é que não me serve, não consigo viver com ela.
A cada um sua loucura. O Eugénio ia com as aves, eu fico com a escrita.

Um beijinho

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Para Lá do Mar

De entre os itinerantes do grupo, salienta-se o episódio da Marianita. A Marianita era a minha doce vizinha do lado, na época em que me hospedei na casa mais vazia de tudo que conheci e onde gostei imenso de viver enquanto cursei filosofia (tenho queda por coisas que não prestam). Era uma garotinha de olhos verdes e carita redonda, com boquinha de bebé, acabadinha de fazer o décimo segundo ano e a quem o revisor perguntou muito à vontade, e tu, queres meio bilhete para aonde? A Marianita avermelhou até ao cabelo nesse momento tapado com um chapeuzinho branco muito beto que então se usava, empertigou o busto que era a única coisa bem saliente que possuía e o senhor atrapalhou: desculpe, quer bilhete para onde? E nós todos na risota, o vermelhão da Mariana a dispersar. Pois a Mariana acampou connosco durante dois anos, mais precisamente, até namorar. No seu ano de estreia foram os pais que a levaram até nós. Ora, nesse ano, tivemos uma sorte incrível: encontrámos um lugar mesmo à conta para nós, debaixo das árvores, num bosquezito hoje inexistente em Porto Covo e que era o nosso sonho anual, mas onde nunca conseguíramos lugar. Carregámos a bagagem toda, montámos as tendas, escolhemos sítio para a cozinha improvisada…e, encantados da vida, começámos a gozar as férias.
Os nossos vizinhos mais próximos, ausentes o dia todo, acordavam tão tarde que durante a manhã os deixávamos dormindo em rancho, grande parte na rua. Eram uma miscelânia de portugueses e estrangeiros e faziam grandes fogueiras nocturnas, para que cortesmente nos convidaram na primeira noite, convite que declinámos.
No dia aprazado para a chegada da Marianita considerei que, entre tanta dispersão de tendas, ela não nos encontraria por si mesma e fiquei a esperá-la enquanto os outros seguiam para a praia. Só que estava calor e cansei-me de olhar o caminho. Então, eu e a Gina – minha companhia solidária - resolvemos colocar setas a indicar o nosso sítio. Com o meu nome, está visto. Pedimos caixas de cartão na mercearia, rasgámo-las em rectângulos, e fomos pondo setas encimadas com o meu nome, gina, gina, gina, do largo até às tendas. No final, contemplámos a obra com orgulho achando-nos o máximo da eficiencia, e seguimos para a praia a encontrar os outros. Já não me lembro se pertencia ou não ao grupo que saía mais cedo da praia, mas sei que ao chegarmos às tendas, em vez da Marianita estavam dois guardas republicanos com um ar muitíssimo intrigado a olhar o desenho da nossa última seta, por acaso apoiada nos arbustos que rodeavam as tendas. Passei por eles e nem liguei. Mas vieram atrás de nós com a seta e perguntaram, quem é a gina. Por acaso as duas correspondíamos, mas como estavam com o cartão na mão, assumi, sou eu. Eles ficaram a olhar-me em seriedade e alguma confusão e, a menina não pode andar por aí a pôr setas com o seu nome. Eu, porquê? E eles em vez de me responderem, outra pergunta, então estas setas eram para quê? Expliquei-lhes que estava à espera de uma amiga, mas queria ir à praia e que me lembrara de montar aquele esquema para que ela pudesse encontrar-me se eu não estivesse visível. E eles dubitativos, vocês não andavam a vender nada?!- e peremptórios - De toda a maneira, isto é proíbido. Eu a antever multas e dinheiros que não tinha, mas eu só queria que ela soubesse onde nós estávamos. E ele a estender-me o cartão, não me interessa, tem de tirar isto, os outros já nós retirámos. Depois, fixando melhor o grupo que entretanto chegara da praia, vocês não acham melhor mudarem de lugar? E nós todos muito depressa, não, não, gostamos muito deste sítio, tem sombras, é sossegado e está perto de tudo. Os dois guardas meio indecisos, vocês é que sabem, mas se calhar era melhor mudarem. E afastaram-se. Nós uns para os outros, mudar.. Deus nos livre, eles não avaliam o trabalho que dá montar este estaminé todo; além disso, nunca ficámos num lugar tão bom.
Mas quando a Marianita chegou os guardas ainda insistiam passaricando na estrada junto às tendas, a olhar-nos uma vez e outra. E nós para eles, a exibi-la como prova de verdade, esta é a nossa amiga, já chegou. E o Guarda teimoso, deviam mudar de lugar. E nós uns para os outros, baixinho, o homem é parvo, não façam caso.

Mas o tempo havia de mostrar-nos a visão dos guardas.

Para Lá do Mar

O núcleo duro de campistas manteve-se inalterável ao longo dos anos e, apesar de alguns ameaços, nenhum de nós escolheu namorados dentro do grupo, o que foi bom. Porém, houve algumas adições: temporárias e definitivas. Por várias razões, o Pedro deixou de nos visitar nas férias grandes e foi substituído pela Gina Antunes, amiga da minha irmã, que se tornou membro efectivo e passou a integrar a minha tenda, fazer parte do meu grupo de trabalho e de espera nas estações rodoviárias, melhorando a qualidade de tudo. Por norma, almoçávamos em Sines onde mudávamos de autocarro. Como só havia tempo para o outro grupo almoçar, nós comíamos as sandes que nos enviavam – um deles vinha trazê-las -  misturadas com o cheiro pouco apetecível do gasóleo e encostados à pira da bagagem. Creio que foi ali que eu e a Gina começámos uma amizade de anos, entremeando canções, dado que tínhamos frequentado as irmãs salesianas e, ainda que em lugares diferentes, o reportório era, em parte, comum. Agarrámos o vício de cantar juntas e, bem mais tarde, ainda ela me passava letras de canções que a rádio divulgava e eu preferia, como Amazing Grace, Yesterday e assim, que cantarolávamos em qualquer lugar. Além disso, não havia como ela para guardar os restos do jantar. Dizia certa noite a fechar dois tuperwares com sardinhas assadas e arroz branco, eu guardo e amanhã como ao pequeno-almoço. E ao nosso riso respondia convicta, sim, sim, ponho leite e açúcar no arroz e faço arroz doce e podem apetecer-me sardinhas assadas. É claro que nunca comeu o que fosse do que guardou e que nós atirávamos fora sem mais conversa, mas a sua convicção nocturna era supremo bem, um bombom que nos servia de bandeja. A Gina foi talvez a nossa melhor aquisição - uma amiga que nunca esqueci. Como a nossa amizade cresceu, deu flor e também fruto, desenfreávamos como potros cantantes em incursões de veraneio nos barcos para Troia, encantadas da vida e com ela.
Mas houve mais gente: alguém que convidei certa vez e apareceu mesmo. Lembro-me que gostava imenso das nossas refeições – almoço e jantar  com sopa, segundo prato e fruta - , achava tudo uma maravilha e rematava as frases com uma invariável palavra que nunca deixou de me ferir os tímpanos; porra. Eu perguntava, está bom, e ele respondia, tão não tá, porra. Nesse ano, éramos nove pessoas a acampar e ninguém teve coragem para lhe pedir que evitasse o termo, pensando – creio que bem – que podíamos retirar-lhe a naturalidade e que talvez começasse a sentir-se mal no meio de nós. Quando falava desse período, a mãe costumava dizer que chegara encantado e lhe apontava olho crítico à monotonia do cardápio, elas não repetiram uma refeição em quinze dias.
Outra aquisição que passou a definitiva foi o Jorge. O Jorge era convidado do nosso amigo e seu companheiro dilecto de tropa e arredores. E um menino de sua mãe. Da primeira vez que o vimos reluzia sapatinho de verniz preto e meia branca a fazer pendant com o alvo de uma Lacoste. Acrescente-se que surgia bronzeado em seus ray-ban. Franzimos o sobrolho. Tinha uma mochila óptima, marca não sei quê, enfiada num saco de protecção e sem uso, entalada entre a tenda e o sobretecto. E preferia transportar nuns sacos compridos da tropa todos os seus bens. O Jorge era tão diferente de nós que alguns atritos iniciais se tornaram de obrigação, um ponto de honra. Levara tenda própria e todas as manhãs acordávamos com ele a escovar-lhe o pó. O ruído da escova no nylon era, para os mais dorminhocos, deveras irritante.  Porém, no final da quinzena, estava adaptado e tínhamo-lo adoptado. Atirou fora a protecção da mochila que pôs a uso directo, comprou umas alpercatas e arrumou os sapatos de verniz que não davam jeito nenhum quando jogávamos à apanhada no largo da igreja de Porto Covo (escorregou algumas vezes, as solas na calçada não dão bom resultado) e guardou as peúgas brancas dentro dos tupperwares, prova definitiva que estava pronto para continuar a acampar connosco. Supõe-se que a mãe se tenha desgostado ao desfazer a mochila do rebento, lamentando, quem sabe, a ciganagem com que andava metido. Bom, a senhora devia era agradecer-nos, além de lhe termos ensinado a lavar as meiinhas brancas no lavadouro público, o filho aprendeu, na prática, o nosso slogan para a lavagem da loiça, “o bravo não se mete dentro de água” (o bravo, para quem não saiba, é um esfregão de lã de aço embebido em sabão, muito útil para lavar tachos - ainda existe - e que, empapado,  rapidamente deteriora).

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Desconcerto

Os dias em geral correm-me bem. Mas hoje não. Nunca corre bem o dia em que dizemos a uma amiga aposentada e sedentária qb, vou ver-te para a semana, que dia escolhes? E ela não tem nenhum porque uns primos não sei quê e vêm de Lisboa. Numa semana inteira uma aposentada não tem um bocadinho para eu.

Desejava dar-lhe a prenda que lhe andei fazendo. Com amor, sim. E algum esforço. E de que ela não sabe nem sonha.

Certo, há o correio, chega lá na mesma.


Eu é que hei-de ser outra. Só que hoje ainda não sou capaz

Para Lá do Mar

Posto que me sinto incapaz de contar cada um dos nossos períodos de campismo ao longo dos nove anos – todos selvagens pois claro, que não havia carteira que chegasse à diária num parque – cinjo-me ao espírito que então nos possuía, justapondo alguns episódios que a memória, fiel depositária do passado, guardou em local seco e arejado.
Antes da série episódica, relembro que continuámos a manter o ponto de encontro: Setúbal; o hábito de eu e os meus irmãos mais novos ficarmos a guardar o montão de bagagem onde quer que fosse; o ritual propedêutico da família Pinto, em vésperas de partida: carregar a bagagem no carro de mão do meu pai, com excepção da malita ou saco de cada um com roupa e artigos de higiene. Abençoados vizinhos próximos da paragem que deixavam ficar no alpendre o nosso amontoado de fruta, batatas e outros legumes de cultivo, o candeeiro, a tenda os sacos camas e as mantas dos meus irmãozitos. Por norma, fazíamos três carros de mão a abarrotar, o vizinho alentejanamente sentado em seu alpendre, um olho expedito nas coisas, é pá…vocês levam muita coisa; atão a panela de pressão é para quê. Eu armada em mãe, para fazer a sopa. E ele, sim senhora, quer dizer que comem sopa na praia. ..e ficava a remoer a ideia enquanto com a lâmina do canivete de algibeira partia bocados a uma maçã e os levava à boca. Entretanto, nós girávamos de volta, eu um bocado intimidada com a confiança da lâmina a entrar-lhe boca dentro, imaginando sei lá que desgraças cheias de sangue e a roda do carro de mão numa chiadeira maluca, a minha irmã do meio, temos de pôr azeite nisto antes da próxima carrada.
Nessa noite, deitávamo-nos teoricamente mais cedo para madrugarmos no dia seguinte. Eu e a Maria Adélia chamávamos os manos mais novos e tratávamos que a casa ficasse limpa, (camas feitas, louça do pequeno almoço lavada, etc). Saíamos de casa ainda o dia deitado, a rua quieta, o luar de Agosto em absoluta beleza a pratear-nos as folhas das laranjeiras, todo derramado no espelho liso da água do tanque. As árvores acenavam-nos  num leve estremecer de folhas e ficavam a mirar-nos imponentes, esticando o tronco o mais que podiam, no despique de umas a outras, ainda os estou a ver, ainda os vejo, e agora já são só uma manchinha no caminho. Até que desaparecíamos na estrada e elas descansavam daquele bicos de pés, o vulto a relaxar apequenando, ufa, já me doíam as raízes. E nós como soldados imbuídos na missão, sobraçando saco ou mala, apressados para chegar ao alpendre do vizinho, sem outro medo que atrasarmo-nos e não termos tempo de carregar tudo até à paragem, dessa vez sem carro de mão. Seguíamos na carreira das seis e vinte e jamais alguém refilou com a hora, antes desejávamos de todo o coração que chegasse. Íamos contentes, contentes. 
Quando o autocarro parava, o revisor saía carrancudo de tanto volume, a perguntar enquanto abria o porta-bagagens entre as rodas do carro, mas vocês vão aonde, como se nos quisesse esconjurar para os confins da terra, ou, ainda melhor, pulverizar-nos. Enquanto isso, os meus irmãos mais novos, obedientes a ordens de idade e poiso, escapuliam para o interior e nós duas ficávamos a passar-lhe a bagagem. Depois, enquanto ele fechava portas, nós subíamos e só então respirávamos fundo e descansávamos, sentadinhas lado a lado, num autocarro semi vazio, a salientarmo-nos, vivazes, de rostos ensonados e corpos atirados ao assento ainda em restos de cama. E, depois de verificarmos se os manos estavam bem sentados - se não, fazíamo-los mudar de lugar – ficávamos à conversa nós duas, primeiro em dúvidas de certificação, fechaste a porta, viste as camas deles, trazes o bolo partido em fatias, puseste as maçãs junto com as cebolas e os alhos, tiraste algumas para a viagem. E depois, mergulhávamos no futuro, em antevisão, achas que a Isabel leva o quê, um doce ou um salgado, quantos minutos é que a gente espera por eles. E o entusiasmo encurtava-nos o caminho para um nada de tempo.

Nessa primeira manhã, o lanche metia sempre bolos que fazíamos para o efeito e o nosso encontro em Setúbal era de uma alegria tão exuberante que as pessoas paravam a olhar a trupe e o monte de bagagem em gestação acelerada, de cada vez que chegavam novos elementos. Nós inaugurávamos e abríamos a clareira aos vindouros, escolhendo lugar que não perturbasse passagem. E depois esperávamos ansiosamente, a pesquisar todas as janelas de autocarros que entravam na estação rodoviária, esperançados de que os nossos amigos nos fizessem um aceno. Porém, quase sempre eles surgiam inesperados e o reencontro ainda ficava mais bonito.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Para Lá do Mar

As nossas previsões mais catastróficas não ganharam o alcance daqueles quatro dias em que tudo falhou excepto nós. O frio foi bem maior do que supúnhamos, as refeições difíceis - as gentes andavam todas a comemorar a liberdade recém-nascida e não havia onde comprar -, não tínhamos qualquer prática em fogões de campismo a trabalhar dentro de tendas, fazia-nos falta uma casa de banho com chuveiro. E mais. No entanto, todos nos divertimos e guardámos como bom esse interregno. As noites tinham serões risonhos a correr devagar, cada um contando aquilo de que se lembrava. Dos dias, pouco mais lembro. Sei que não deu para um passeio à beira mar e nem experimentámos os fatos de banho.
            No último dia, levantámos tudo e quando olhei os meus irmãos mais novos para a distribuição do material a carregar, embatuquei. Não me lembrara de lhes dizer para trazerem outra muda de roupa – iam correr na praia em fato de banho de manhã à noite – e estavam tão sujos como os ciganitos que batiam na minha porta e a nossa mãe atendia desvelada. A minha irmã usava o vestidinho que chegara amarelo e quase não tinha cor depois de quatro dias no corpo, a frente asfixiada por um compacto de nódoas em camada que me intrigou, onde é que ela o tinha conseguido se quase não saíamos da tenda. Olhei os braços dos dois e eram uma mistura de escorrimentos de sumo e sujidade. Quanto a mim, apesar de a ter virado do avesso, enchera de borboto a blusa emprestada que nunca despira e suponho que devia estar esguedelhada, o que não era desábito. Cada um de nós desejava um banho, o pijama e a nossa cama com um colchão que, nessa noite, nos pareceu de penas. Não sei o que se passou com os meus irmãos que embarquei na camionagem rodoviária, mas eu e a minha amiga chegámos a casa um bocadinho descompostas e ganhámos duas nódoas negras nas ancas, que o chão não é algodão.
            Corolário da experiência, os acrescentos na nossa agenda: passou a constar vestuário para chuva, sacos-cama e mantimentos.
  Provámos ser um grupo com capacidade de singrar e gosto pela experiência; portanto, nos dias seguintes marcámos o campismo das férias grandes: quinze dias na Zambujeira do Mar. É claro que os meus amigos é que escolhiam, eu, no bê-à-bá marítimo, limitava-me a perguntar apalermada, isso é onde, perto de quê.
Na Zambujeira do Mar, para além dos meus irmãos, levei o meu primo Pedro que passava todas as férias connosco, vindo de Madrid. Todas as noites nós duas fazíamos contas aos gastos, a lista de compras para o dia seguinte e organizávamos os grupos de trabalho e compras. Em termos económicos a minha amiga pagava duas partes – a dela e a do nosso amigo ainda estudante – e eu o dobro; os meus dois irmãos mais novos valiam por uma pessoa e apenas lavavam e arrumavam a loiça do pequeno-almoço. Fizemos dois grupos de trabalho,- para o almoço e o jantar -  um comigo e outro com ela e em cada dia uma de nós ia às compras com um dos rapazes, ela com o amigo e eu com o Pedro. O grupo do almoço seguia para a praia imediatamente a seguir ao pequeno-almoço, mal arranjasse o lanche de todos - que lhe calhava carregar - voltando à tenda perto das onze; o do jantar procedia de forma idêntica. Em cada dia, um dos rapazes comprava o pão do pequeno-almoço enquanto o outro punha a mesa e aquecia o leite. Era bem agradável comer o pão morno com manteiga e pensar que tínhamos um dia todo nosso pela frente.

Não sei o que devo a esses dias livres, mas certa é a alegria se antevejo umas horas ou uns dias assim, de apetite. Entra-me um bem-estar meio estranho que torna vívida essa brevidade ainda futura onde cada minuto me vale por anos de relógio. Talvez viver seja assim, uma espera entre momentos de qualidade.

Lamechice à Portuguesa

É isso, hoje escrevo sobre o sentido da lemechice à portuguesa:) Sim, porque uma coisa é o significado teórico das palavras e outra o sentido prático e quotidiano que lhes damos. E nós, portugueses, somos danados para inventar sentidos a vocábulos que já os têm. Em nenhum lugar do mundo uma riqueza vocabular é tão acrescentadamente galopante como em Portugal. E depois vêm para cá com acordos ortográficos e o camandro. Pois que venham que a gente logo lhes diz, levam uma bolachada que até andam de roda.
            Então é assim, no dicionário do Google – já utilizo menos o meu guerreiro de capa vermelha que bem me agradece a pausa -, o termo lamechas é sinónimo de dramático, mariquinhas, queixinhas, lamuriento. Tudo termos pouco lisonjeiros para o sujeito. Se formos pela definição do priberam encontramos coisas bem mais interessantes. Por exemplo, piegas e bajoujo, sendo que o último me era completamente alheio. Porém, a dicção de dois jotas na mesma palavra é deveras sugestiva. Ora experimentem: ba-jou-jo. E agora muito depressa, bajoujo. Mais duas vezes seguidas muito depressa e sem tomar folego, bajoujo bajoujo. É uma coisa assim de boca, como dar beijinhos pequenos, quase tudo com o lábio inferior, não é? Bonito. Pronto, tem o inconveniente de também parecer a pronúncia nortenha de qualquer vocábulo, mas que se há-de fazer?! A perfeição desexiste até nas palavras. Agora podia esgrimir o argumento da perfeição divina de Descartes, mas não me apetece, portanto ficam-se pela minha proficiente afirmação e chega. Ou seja, tudo é imperfeito porque eu o digo e isso basta a este texto palerma. Digamos que a minha omnipotência sobre o escrito é agradável. Se quem leia julga que a perfeição quadre melhor, também pode, desde que não venha chatear com isso. Ah, pois, e o que significa bajoujo?! Pois que dizer a quem se mostra muito apaixonado, senão que é/está bajoujo (não sei se é do ser se do estar). Tem um bocado ar de palerma o bajoujo dito assim, numa de amor perdido.  Indubitável: prefiro um apaixonado (acho que me caio todinha pelo ditongo e a consoante x soa-me a xeque-mate, coisa que em amor, condiz) a um bajoujo, porque o último corre o risco de babar e o ditongo é, ali, uma cinzentice. Outra coisa que me ocorre é se existirá o verbo bajoujar. Basta googlar: há; mas, de tanta coisa diferente, nenhuma é apaixonar. Pode ser por exemplo, bajular; ou acariciar; ou canonizar; ou deleitar-se e cortejar. Enfim, um nunca acabar de sentidos, sendo que em nenhum cabe o óbvio da nossa suposição.
            E piegas? Piegas é uma palavra com o seu quê de doçura entranhada, o primeiro ministro é que não conhece senão a sua voz, ou saberia que o povo só usa o termo piegas quando diz ternuras a quem gosta e sempre acompanhado de gestos a condizer. Ora como ele parece gostar de ninguém do povão, o termo não se adequou e o eterno réu sentiu-se ofendido. Só sou chamada de piegas por quem me gosta. Se outra pessoa utiliza o vocábulo, passa a descabido e ofensivo. Portanto, senhor primeiro ministro, fora com o piegas que nós não lhe demos autorização. Ponha-se no seu lugar se faz favor.
            É assim, as pieguices são meiguice, ternura que temos com quem gostamos. Por via oral ou em escritura. E são lamechas? Claro. Bastante. Não são literatura? Pois…não devem ser. O que as distingue da literatura é o ridículo e o sentimento na orla das palavras, despreocupado delas e do sentido que possam ter. Pieguice é mansidão de ternura aos gritinhos de estou aqui e isso leva a requebros e mesuras repetitivas e queridas que estragam a literatura. E é que neste discurso se levanta outra ordem e exigência que não a do sentido literário. No entanto, quem não gosta das cartas de amor de Fernando Pessoa à Ofelinha?! Vá, venha uma pessoa que diga, são uma bodega. Ou uma que afirme, não são lamechas.
            Pronto, ia falar do ridículo, mas já não merece.

Sejam Felizes. E bajoujos. 

domingo, 30 de novembro de 2014

Para Lá do Mar

Estava ainda entretendo tempo quando senti uns passos cautelosos junto à tenda. Relanceei o cadeado e continuava quedo. Quando julgava que seria um pescador a passar e a minha atenção se desviava, voltavam em cautelas, próximos, próximos. Ainda pensei que fossem uns dois ou três pescadores em fila indiana, mas a teoria começou a tornar-se insustentável pela proximidade que mantinham, alguém rodeava as tendas. Atentei melhor e verifiquei que eram sempre os mesmos pés, passada nem muito curta nem muito longa, o pé assente com a mesma falta de força, como se um cuidado na forma de calcar a areia molhada. Intrigada, retirei o cadeado e corri os fechos. E, mesmo na frente dos meus olhos remelosos, entre as duas tendas, o pai da minha amiga, capacete na mão, meio atrapalhado. Quando me viu respirou fundo e disse, Ah, menina! Sempre são vocês que estão aqui. – e um sorriso alargou-se-lhe pelo corpo.  
Nesse preciso instante, correram-se os fechos da outra tenda e a minha amiga toda caracóis dorminhocos, olhos a piscar surpresas, o que é que tu estás aqui a fazer pai?! E em cenário, os estremunhados ponto de interrogação  da minha irmã e do rapaz. O senhor virou ligeiramente o tronco para o lado da tenda dela e ficou a sorrir à filha e a rodar o capacete nas mãos entre o desajeitado de nos ter acordado e a satisfação de saber que estávamos todos bem e adiantou, estávamos preocupados a tua mãe e eu, a trovoada foi tão grande que subi para a lambreta e vim até cá – e num desabafo - . Não sabia se eram vocês…e depois a brincar com os meus irmãos, então, não tiveram medo? As mãos da minha irmãzita numa pressa, apalpadelas cegas junto ao varão de trás da tenda onde deixara os óculos, e o meu irmão a ignorar a pergunta, curioso, veio numa lambreta? Onde é que ela está? A garota com o tempo da resposta esgotado, apenas sorrindo, olhinhos minúsculos por detrás das lentes,  os óculos a remoer, é sempre o mesmo, nunca nos encontras à primeira.
E depois ficámos por ali a acordar e responder ao que perguntava, a minha amiga, talvez constrangida, sempre a instá-lo a deixar-nos. Mas o pai não lhe fez caso, aproximou a lambreta e só foi à sua vida quando se convenceu que estávamos bem. Pensei no meu progenitor, nunca a sua preocupação o faria deslocar. E tive inveja da minha amiga e da atenção que merecia. Terá o meu pai pensado em nós nesses dias?! Creio que sim. Do que não se sabe, é preferível escolher o melhor.
Entretanto, descobrimos que o restaurante só reabria no verão e o suposto pequeno-almoço esfumou.  Os nossos vizinhos da frente foram lá acima comer e trouxeram depois  alguma coisa à tenda das crianças.

Pela tarde, a chuva regressou em força. A essa altura já destináramos o jantar, tínhamos água potável e estavam marcadas as bacias de abluções matinais, no em baixo e no em cima, e o lugar da retrete que não havia. O mar quase só o espreitávamos pela janelinha de plástico em que o meu irmão fazia gala, o rostozinho moreno e miúdo a assomar-se.
Nessa tarde, resolvemos ler, cada grupo em sua tenda para criar mais ambiente. De notável só o nosso amigo, que era - e ainda é - um rapaz divertido e resolveu colocar um sutiã da nossa comum amiga na cabeça, atá-lo debaixo do queixo e aparecer-nos à tenda naquela figura atraente. Quando enfiou a cabeça no interior e, boa tarde!, eu tinha mergulhado fundo. Olhei e nem o reconheci, parecia-me o Sacadura Cabral ou o Gago Coutinho com o equipamento de vôo que devia ser um capacete com os óculos a encimar. Retirada ao meio das letras estava ainda mais obtusa que normalmente, embora estranhasse a figura. Depois, e para meu espanto, o Sacadura Cabral trouxe também o corpo para dentro da tenda numa confiança de pernas que achei um despropósito, atirou uma gargalhada e, num alentejano arraçado de algarvio,  atão... não me digam que já não me conhecem. Os meus irmãos desataram numa risota e eu idem. Porém, desatendida do sutiã, arrematei, é pá...parecias-me mesmo o Sacadura Cabral, onde é que tu arranjaste isso? E ele, tás a falar a sério? Eu, sim; é tão engraçado, compraste? E ele, tão mas afinal quem é que vê mal, não é a tua irmã? Eu, mau, então isso é o quê. Ele puxando os pontiagudos do sutiã sobre a cabeça, como se fossem umas orelhas, ainda não viste o que é? Os meus irmãos riam a bandeiras despregadas e ela benemérita, por entre gargalhadas, não vês que é um sutiã? Eu numa admiração de riso, ah, pois é, vira-te lá, levanta o pescoço. E etc. Mas sem abdicar da primeira impressão, é que pareces mesmo o Sacadura Cabral. Palavra.

Para Lá do Mar

Desembocámos na praia sem tempo de olhá-la, aflitos de chuva e tralha, olhos e mente numa avaliação do melhor lugar para as tendas. Escolhemos a entrada mais perto do restaurante à beira mar, onde faríamos abastecimento de urgências, eu a formular mentalmente votos para que os dez minutos de montagem não excedessem. E lançámo-nos todos a cumprir ordens do orientador experiente que decidira armá-las face a face, tradição que respeitámos durante os nove anos em que as férias mais nos uniam.
Depois de armada a primeira barraquinha azul-laranja, a nossa, agasalhámos pertences e resolvemos almoçar. Limpámos cabeças molhadas a toalhas de banho, eu a apalpar os braços dos meus irmãos, é melhor tirarem os casacos. Depois, sentámo-nos em roda e almoçámos. Divertimo-nos tanto ou mais que os cinco nos seus petiscos de que as nossas sandes escarneciam, alegres de tudo. A chuva no pano soava a maravilha, sentíamo-nos secos e em segurança e tínhamos três dias pela frente que, em futurologia optimista, seriam de sol.
Enquanto o céu se desfazia, jogámos a tudo que sabíamos e ao que que inventámos. E, quando o aguaceiro abrandou, gestos munidos de prática, montámos a outra tenda. Entretanto, fizéramos a partilha do pessoal pelas barracas: eu e os meus irmãos mais novos numa, os meus amigos e a minha irmã mais velha noutra, cenário que vigorou até ao meu casamento.
À medida que entardecia – mais cedo do que esperávamos -, nós duas avaliávamos o conjunto de necessidades. A fim de lhes pôr cobro, os ocupantes da outra tenda decidiram fazer uma viagem de reconhecimento: precisávamos descobrir uma fonte de água doce, saber onde comprar pão, leite e fruta, e adquirir os alimentos necessários ao jantar.
Demoraram eternidades e já escurecia quando divisámos, descendo para a praia, as silhuetas da nossa preocupação. Pareciam meios desanimados, mas sabiam qual a torneira mais próxima para recolha de água e traziam um projecto de jantar. Tinham calcorreado ruas do sem fim para encontrá-lo. Deitámos mãos à obra de cozinhar dentro da tenda deixando para trás o romantismo de um fogo ao ar livre, lenha das árvores a crepitar sem fumo, nós sentados à apache, a beber chá em púcaros, como víamos nos filmes do oeste. Não havia tempo para sonhos cor-de-rosa, a fome e o mau tempo ameaçavam. A ementa há-de ter sido semelhante a batatas cozidas com alguma coisa e salada. Para nos animarmos, fazíamos fé na minha amiga, amanhã vamos todos tomar o pequeno-almoço ali ao restaurante, é a refeição menos cara, e já está. Comemos o mais que pudermos para não termos muita fome ao almoço.
Não contente com a tarde que nos enviara, o céu resolveu atirar-nos uma senhora trovoada nocturna. Tínhamos comprado um cadeado que prendia interiormente os três fechos das tendas e nos dava a falsa ideia de segurança. Mas nessa noite em que pouco dormi e abençoei vezes sem conta a blusa polar do meu namoradinho, os ladrões nem me lembraram. Enquanto os meus irmãos dormiam, sentia o mar a aproximar da tenda e a trovoada a estrondear e pensava parvamente que a tenda estava debaixo de uma árvore meia morta e que podia atrair um raio. Então, tapava melhor os meus irmãos, a tactear-lhes pernas e braços no escuro, auscultando em simultâneo a distância do mar. Talvez por serem crianças, porque as emoções do dia os esgotassem, ou porque se tinham levantado antes das seis para apanhar a carreira das seis e vinte, não pareciam sentir falta de colchão nem a frigidez do chão que me trespassava.

Durante a madrugada o céu aquietou a estrepitosa casa. Desceu-lhe a adrenalina de jacto e limitou-se a uns pinguinhos suavemente cansados que cessaram com o sol. Deixei-me ficar, esgotada de preocupação, junto aos meus irmãos adormecidos, o dia a clarear no azul-diáfano da tenda. A supor que, na outra tenda, a tempestade também adiara o sono, aguardei a alvorada dos mais.