sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Dançar com a Morte


Não se sabe por que tanto pesa o que sempre nos pesa apesar dos momentos em que parece mais leve. Mas pertence ao viver que cada hora seja uma e nada se saiba da próxima ou de quando a última nos visita. Em tempos, li num livro de Savater que o autor criou consciência da sua própria morte aos nove anos. Pois fartou-se a minha infância de observar monótonos funerais a subir a ladeira e a morte continuou-me do lado de lá. Jamais a julguei minha ou dos meus, a família era eterna. Na catequese, o padre assegurava outra vida, um céu para a gente boa e que me surgia completamente desnecessário. Se nenhum de nós morria, tal mundo não me beliscava, era-me arredio. Resumindo, mantive-me eterna até meio da adolescência, época em que a mortalidade foi espinho que enterrou. Afinal, o meu mundo pequeno comungava da duração limitada.  E veio toda esta conversa a propósito de meu pai e da sua provecta idade: oitenta e cinco anos. Se o visito, não falamos da morte – da sua –, mas pergunto-me muita vez como será que a entende. Acreditar na imortalidade é crença que descarto, nunca foi religioso ou  quimérico. Está pois ciente de ser coisa próxima. E, quanto mais envelhece, mais se enche de projectos e compras. Não o visito sem haver algo novo e por estrear. Compras feitas aos pares e à meia dúzia. Não há armários onde guardar tanta roupa, abafos, sapatos, bonés, meias que saltitam como embalagens de ovos, em quantidade. Por ora, virou-se para os utensílios domésticos que exibe com a grandeza de um magnata perdulário. Ele são novos tachos e panelas, uma pá supersónica, um par de vassouras, uma altura de panos de cozinha. E depois vem-lhe aquele entusiasmo genuíno por uma frigideira, assim como quem apresenta as qualidades do seu novo Mercedes. Que nada se lhe pega – e passa um dedo pelo fundo anti aderente -, que se lava enquanto o diabo esfrega um olho e não mascarra. Guarda o melhor para o final: que, ao contrário das nossas compras – nós, os filhos, nunca soubemos comprar - foi muito mais  barata do que as que aparecem nos anúncios da TV. E volta a alojá-la no armário como guarda-jóias carregadinho de valores.
Qualquer desistente da vida devia visitar meu pai. Para ler o jornal, desloca-se até ao café diariamente, na bicicleta de senhora que adquiriu para esse fim, dado já quase não conseguir a marcha. Diverte-se a fazer compras no super e mostra-me com orgulho os bons artigos que trouxe para casa. Repete, diário, a sua ginástica matinal e garante que, sem ela, já os músculos teriam petrificado. Sente enorme prazer a confeccionar as refeições, destiná-las, saboreá-las. E tudo de acordo com os conselhos médicos. Nos domingos, empapoila-se e almoça fora. Sozinho. Jamais convida filhos ou netos e apenas nos visita por obrigações de doença nossa. A sua maior glória é a suada independência do  dia a dia.

domingo, 21 de outubro de 2018

Bem Aventuranças


Eram as sete de uma tarde quente. E eu sabia a ondulação copada das árvores atrás do coro, o vôo dos pássaros, o recorte de azul que desmaiava na tardinha. Sabia da vida lá fora; do silêncio ruidoso de semáforos; do trânsito logo ali, em pressas de fim de semana; de gente que buscava ninho. Sabia da vida dentro de mim. Mas não havia o tempo. Não havia mais que a música a encorpar, expandir-se, encher todos os espaços até à saturação. Não havia senão acordes e vozes celestiais em doce e unívoco corpo a corpo. E decerto lá estive porque ouvi e porque sei do rosto e gestos do maestro levitando energia sobre a orquestra. Terei pensado, respirado, o sangue atravessou-me o corpo igual a sempre. Presentes na memória, só música e maestro.
O intervalo chegou ainda mal me sentara. Julguei engano. Mas já o maestro saía abafado em aplausos, adornado de “bravôs”. Voltei-me. O lugar dela, vago. Imaginei-a lá fora, a aliviar o excesso de maravilha. Ou, quem sabe, apenas o olhar distraído na vária gente.
Na segunda parte, o espectáculo retomou sem o coro. E sem ela. O seu lugar uma falha na dentição. Foi quando pensei na sorte das árvores que rodeiam a sala e ouvem tudo pelas raízes. Placidamente musicadas, entretinham-se lá atrás em iluminado ninar de folhas. E nem um pássaro. Mas a música varreu tudo de novo. Sem paisagem, vencida pela vibração, morando na entrega do maestro. E breve a plateia de pé e um maestro grato, mão sobre o coração. De novo lhe regressaram os pés, a magreza alongada das pernas, os tombados anéis de cabelo. E o lugar vazio que quase não se notava, mas eu sabia.
À saída, mesmo por detrás de mim, alguém comentava, “fantástico, viste os pés dele, parece um bailarino, dança todo o concerto”. E fiquei com pena dos meus olhos que não sei por onde se perdem. É que do maestro lembro uma transfiguração de adamastor benfazejo que não aterroriza e antes guarda o palco e lhe dá vida. Facto que, desconfio bem, não está à vista.
Entretanto, ó surpresa, no exterior, placidamente, ela sacudia um grão de pó na malinha. Depois misturou-se à multidão e deixei de vê-la. Talvez seja entediante dama. Ou exasperada solitária. Prefiro pensá-la lá fora, a desfrutar do anoitecer por entre as árvores enquanto a música, no interior, fazia casa.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Bem Aventuranças


O ser humano está preso ao hábito. Nota-se no descansado olhar que pousa em objectos de uso, no mastro seguro dos afectos, na fixa placidez horária em que o corpo evolve. E mesmo nos agrados de cada um. Hábito provável das duas, encontro-a amiúde em concertos. Presumo que à minha pressa esbaforida impõe a sua unívoca calma e, porque chega cedo, talvez se sente um nadinha na entrada a degustar a novidade, enquanto eu relanceio ponteiros aflitos no corre-corre  afeito à traição da calçada lisboeta. Imagino-a a deambular por entre os livros, a avaliar uma porcelana, comprando uma recordação. Não precisa pente e as pregas da saia rodeiam-lhe o corpo em macia elegância, é pessoa de tudo no lugar. Ao piscar das luzes, entro açodada.  E já ela impera estratégica, sentada a meio da sala. No ar, o leve romurejo de pássaros que se aquietam  no folhedo. A colmeia humana preenche seus alvéolos enquanto caminho até ao meu viés junto ao palco. Tudo que era movimento se faz expectação, apenas uma ou outra mão alisa cabelos, uma tosse seca, o braço que muda de posição, um relâmpago de curiosidade que faísca. E ela. Esfíngica receptividade, abóbada pronta ao som. O palco anima e converge. Vestidos a rigor, os músicos aprumam respeitos e aproximam-se dos lugares. Nas suas mãos, os instrumentos refulgem e são activa probidade, antecipação ingente das melodias que guardam. Sentam-se, colocam-nos em posição, debruçam-se sobre a partitura. E juntam-se ao público: aguardam em silêncio. Eis o primeiro violinista, o violino como primeira figura. E logo um coro de violinos responde ao seu experimento. E emudecem. A sala espera o maestro. Quando a porta se abre já as palmas estão prontas e se acende o entusiasmo na plateia. A figura que se aproxima em passo elástico é leve e jovem. Inclina-se profundamente e noto-lhe as ondas do cabelo negro e fúlgidos sapatos.  Breve a sua figura esguia nos dá as costas e a música começa. O tempo colapsa. E logo tudo esvai e o divino se instaura.
(cont)

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Marca D'Água


Cirandando nos conteúdos de pen antigas encontrei o escrito que se segue. Oxalá fosse meu. Mas não, sou incapaz de tal depuração escrita, ainda que algumas expressões e frases comunguem da minha brisa. É tão bonito que resolvi postá-lo. Assim, posso voltar a lê-lo. Sempre. Beleza incógnita que terei copiado de algum blogue ou comentário.  Se acaso a autora por aqui passe, os meus parabéns e obrigada sincero. Também a desculpa pelo atrevimento.

“A marca de água é uma atração do papel, o súbito de uma frescura que me sabe ao rasto da seda rente à linha dos dedos, frágil suavidade debruçada nos movimentos. Na verdade, não sei o que seja a marca de água. Mas as palavras me traçam imagens pedintes, numa cegueira de pés  que sentem sem ver, mister que lhes não pertence. E assim caminham.
E me surgiste não sei como e me rodeaste inteira, e os meus pés cegos, porque todos os pés assim,  palmilharam as sílabas do nosso desencontro. Contigo. Fora de tu seres tu.  E a tua representação – que não sei – uma borracha de apagar dúvidas. Tens razão, usei o que não tinha, as aparências iludem, como tanta vez repetiste sem que eu um vislumbre sequer. Era o meu ópio  de ir sem medo. Oferecias-me canções e riso e a minha mente sem olhos corria-lhes música e letra a procurar um qualquer tu nos intervalos de tudo o que fruía, leve inconsciência de usar o que pertencia a outrem, podendo dispor; a afastar-me por momentos de mim mesma. Julgava eu. Como se alguém pudesse nascer das palavras e ser essa a sua verdade. E houvesse romances que corporizam na atmosfera. Mas romances são folhas e folhas de letras a dizerem sentimentos que conhecemos com a violência de quem os diz sentindo-os sempre na realidade depurada que é o mesmo que dizer, não ela, outra coisa. E, por excesso ou defeito, assim se vai semeando um eu condicional e pretérito e se marca a distância entre livro  e leitor.”

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

As Mulheres que Eu Conheço


E se é necessário poupar? Bom, aí, ela passa no supermercado com a obediente lista de géneros e preços, a tentar abrir  folga no orçamento.  Ele concede, deixa de almoçar no restaurante, ela cozinha e prepara-lhe a marmita do almoço – diferente do jantar por ser aborrecido ele estar sempre às sobras. Em época de poupança, se existe,  corta-se nas horas da empregada e ela “dá um jeito” para que tudo continue a rolar como antes; acabam-se as esporádicas refeições em restaurante, ela cozinha sempre; ela corta no vestuário – no dela que tem muito que vestir, os garotos estão a crescer e ele precisa estar bem trajado, o fato sem brilho. O marido dela é um senhor. Ela arca com todos os trabalhos e limpezas antes que ele goze férias porque um ano inteiro de trabalho é coisa cansativa para ele.
Em épocas de aperto, não há férias para ninguém. Mas, enquanto ele lamenta ficar por casa, a ela tanto se lhe dá. Evita rumar a lugar diverso e, numa casa que não é sua e onde algum utensílio indispensável está em falta, fazer o de sempre: passar, lavar, providenciar as refeições. E tudo isto acrescido do fazer e desfazer  das malas, de acautelar a rega das flores e alimentação dos animais deixados para trás, de ambas as casas ficarem em ordem. Nos aniversários e festinhas dos garotos ela poupa fazendo os bolos e o mais; ele, leva ou trata do vinho.
Se ela adoece, ele leva-a ao médico num desamparo aflito porque a casa, porque as compras e as roupas, porque tudo. Mas depois da receita médica que em pressas pressurosas vai aviar, ela cura-se e melhora de imediato e não se fala mais nisso. Seja o que for que teve, já não tem. A vida volta ao de antes. Mas se ele adoece, ai que está tão doente e não pode fazer isto e nem aquilo. Na verdade não pode fazer coisa nenhuma das poucas que antes fazia e ela arca com mais uma criança em casa, cheia de queixas, aí não que me dói e vê lá se não estou com febre, a testa fresquíssima e o termómetro a marcar 36,5. E que me dói aqui e esfrega lá, e é que ali também tenho dor, e nunca estive tão mal. Enfim, a doença dos homens é o purgatório das mulheres.
Que diabo acontece às mulheres que eu conheço para aturarem tais espécimes. Contudo, as separações vingam  por motivos mais esporádicos como haver um terceiro elemento metido ao barulho ou os adorados cônjuges jogarem o ordenado em noitadas de tudo a que ele chega por junto. Quanto ao primeiro motivo, a existência de um terceiro elemento poderia até ser útil, constituir alívio, sempre é menos uma função, ficam mais folgadas. Mas em vez disso, ofendem e arrufam se outra lhes disputa o macho. Não se ofendem do disfarce de escravatura acostumada por anos e anos.  Ah, pois, o amor. O ciúme que só  quem ama sente. O ódio que tudo seca e não permite em redor uma erva verde. E mais todos os sentimentos e emoções que entretêm os homens.
As mulheres que eu conheço são estúpidas. A sociedade estupidificou-as desde sempre. Algumas – não assim tantas como isso -, com conhecimento próprio e, portanto, ainda mais esparvecidas.  
Temos de esperar nos vindouros. Que sejam outros. Ou não há remédio. Fósseis são fósseis. Ignoro é se a educação que lhes damos não está ela também fossilizada.

domingo, 12 de agosto de 2018

As Mulheres que Eu Conheço


O mundo das mulheres que conheço é herança de pobreza encardida e séculos de canga. Nele, os homens, apesar do incontestado  poder e domínio, são erráticos e relativos e não permanecem substancialmente. Ajudam na procriação; carregam, a meias ou sozinhos, um ou outro objecto mais pesado; vão ao café e demoram-se em conversas de amigos; fazem um recado caseiro só por desfastio e fama de ajudar e, por vezes, são  encarregados de educação dos filhos para assinatura ou mostra em reuniões escolares. Em amor, os mais cordatos fazem uso de ternuras avulsas que são caminho de urgência amorosa e um “não” desperta asperezas e amuos de duração indeterminada. Os mais, ou tomam de apetite o que consideram que o casamento fez seu, sem discussão, ou, mais raro, contrariam a ancestralidade e em tudo agem por amor. É verdade que eles trabalham fora de casa, mas elas também. Como é verdade que são elas quem faz a gestão caseira incluindo determinar, comprar e confeccionar as refeições. Os homens chegam fartos e cansados do trabalho que, vá-se lá saber porquê, é sempre pior que o delas. Elas não, elas chegam e enfiam uns trapos. Em seguida, vão para a cozinha preparar jantares e almoços, tratam dos filhos e vigiam-lhes os estudos, lavam-nos e preparam roupas e lancheiras do dia seguinte. Jantam à pressa porque ainda falta isto e aquilo, não vêem TV, não se sentam na sala, não sabem de outro mundo. A sala é o reino dos homens que, sendo bons maridos, não saem à noite, vêem TV. Os homens deitam-se cedo porque o seu trabalho exige e precisam descansar. Elas ficam a remendar o fato de treino do mais novo, a regar as flores que estão quase mortas de secura, a fazer aquele bolo que a do meio pediu para a quermesse da escola. Quando elas se deitam, eles ressonam. Elas caem num coma que o despertador interrompe. É outro dia. (cont.)

sábado, 14 de julho de 2018

Caminhos da Cal


Portugal está cheio de vivendas e podemos determinar as datas de construção pelo modismo de cada uma. No tempo de construção  da casa, imperava o azulejo. Meu pai, que fez nascer um monte onde antes era espessura de mato, sobreiro e répteis a eito, olhava a cal que resplendia a invejar, “O Zé Custódio é que teve juízo, a casa é toda forrada a azulejo, nunca precisa caiança”. A esta afirmação, nascia-me a imagem de uma casa guarda-jóias, onde as pessoas mal respiravam, o azulejo a tolhê-las falho de porosidade.  Mau grado o trabalho, rezava afincadamente para que o azulejo fosse caro, jeito infalível  de não chegar às nossas paredes.
Por vias que o destino e as modas engendraram, o nosso monte, erguido em  claridade e  barras azul-turquesa, respira hoje a densidade da cor em azul-real. Se nele me fixo, logo me vêm à memória os anos setenta e a odisseia de verão que nos deixava exaustos e felizes após a conclusão. Prontos para o campismo, ironicamente, sempre na praia.
Acontece que, se o trabalho braçal aperta, logo em reflexo de mola me salta zanga e mau modo. É uma falta de paciência de tudo, muito desinspiradora. Encrespo, devenho ouriço. Na verdade éramos apenas seis braços de trabalho: eu, minha irmã sete anos mais nova e meu primo que passava férias. Dos meus irmãos pequenos queríamos distância. Depois do pequeno almoço, ordenava que fossem brincar longe e por lá ficassem até à hora de almoço. E, disfarçados de pedintes miseráveis (vestíamos andrajos que havia no sótão e depois atirávamos fora), embrenhávamos o pincel nas paredes, numa linguagem de tu por cima e eu por baixo, e esquecíamos o horário no desejo de “dar a primeira demão” antes de almoço. Mas o verão. Mas a sede.  Mas a água escondida no bojo das bilhas de barro içadas no poial. Meu pai sabe Deus onde, e eles a uma insistente janela aberta, ó mana temos sede. Ou, ó mana estamos cheios de fome. Ou ainda, ó mana caí ali nas pedras, anda lá pôr-me água oxigenada e mercúrio que isto está-me a doer muito. E eu impaciente, pincel acima e abaixo, a descer e subir de um escadote toda afogueada para não haver atrasos com o pincel do baixio, ó gaiatos de um raio, saiam daqui, já não os posso ver – e num desabafo -, aguentem mais um bocado, poças. Eu que tinha o almoço por fazer e, de vez em quando, me adiantava para poder ir até à cozinha dar mais um avanço na refeição, a tempo de voltar antes de atraso irremediável que a secura das paredes era saudade urgente, sugava a cal ao toque. Meu primo sorrindo, regador em punho a dissolver pingas e a esfregá-las, impedindo agarrações de cola ao cimento do poial, que o ar seco e quente tem sua inclemência.
Numa manhã particular, os dois garotos mais endiabrados ou eu mais retorcida do humor, visitas e queixas choviam em intermitência. Depois de muita impaciência latejante, de gritos a enxotá-los, meu primo antecipou-se-me. Largou o regador e o esfregão e, mão esquerda aberta sobre a totalidade do rosto, pegou o garoto por um braço e pô-lo a distância peremptória, sai daqui que já não te posso ver – e abria muito os olhos risonhos por detrás dos dedos reiterando -,  não vês que não te posso ver?!
E nós duas rimos e largámos os pincéis. Eu para a estupefacção do garoto, afinal queres o quê. E ele tolhido de inesperado, fixo ao chão, em voz temerosa, podias-me dar só a água. Eu, palavras de abrir cancela, vai lá para cozinha, não precisas ficar aí especado.  
Gesto e palavras autonomizaram e permanecem, sai daqui que já não te posso ver.

sábado, 7 de julho de 2018

Olívia


Projectava visitar-te no verão. É vero.  Não sou de juras, promessas são para cumprir  e pronto (se as não cumpro, é que não posso mesmo). Habituaste-me a esta amizade-laço com mais fita deste lado. Tens de reconhecer, dás-me uma pontinha breve, mal dá para nos atar.
Nunca quis mudar-te (bom, quis um bocadinho). Aceitei ser sempre eu a visitar-te. Por meus passos e iniciativa, vês-me uma vez ao ano. Contudo, aceitei a prioridade da prima de Lisboa que vês muito mais vezes e em eternidades de tempo. Aceitei os natais sem um cartão, o aniversário sem lembrança, os dias enfiados em coisa nenhuma. Que, até via telefone, sou eu quem te procura. Por amizade a um tempo que nos juntou e dizes lembrar. Sem gesto ou palavra que me alcance. Por te compreender melhor do que julgas apesar de sempre te retorquir sobre a religião, sobre a forma de vida que escolheste e que, ainda assim, podia ser-te mais prazenteira. Aceitei que não sei mudar-me ou mudar os outros, sobretudo no peso da idade. Tens de concordar, somos senhoras maduríssimas. Achei natural acompanhar-te nessa doença familiar, sem me impôr. Entretanto, conversa atrás de conversa, deixas cair que  fazes aqui uma refeição quando segues a caminho de Lisboa com os primos. Ou os tios. Ou quem seja. Um ritual de paragem.
Doeu, caramba. A dor situa-nos. Contudo, bastava um, estou na tua terra, vem ver-me, e saía desabalada. Repara  que nem sequer peço que desvies caminho (qualquer amigo normal o faria).  Mas não te ocorre ver-me. Por que carga de água faço eu mais de 150 km para expressamente te visitar...é coisa que não explico. E portanto. Se ligo, não te conto que a anca não me tem deixado sentar, que já o faço sem dificuldade por períodos curtos, que estar quieta no cinema ainda me deixa a barafustar no assento, que escrevo devagar e não tenho conseguido senão umas frases soltas porque o incómodo não me deixa pensar, que vejo filmes deitada com o écran do portátil na lateral. Que a vida sem escrita me amargura. E impede. Tudo coisas sem interesse. No teu entendimento sou incólume e vivo de alegria. E podes crer que faço quanto posso para ser verdade.
Não vale a pena somar impossíveis. Sou tua amiga sempre e não há mais conversa. É ponto assente. Portanto, quem sabe se para o ano a mágoa se me esbate e me ponho a caminho de S. Pedro. Sempre em frente. Até à brancura de um ninho de casas.

sábado, 30 de junho de 2018

O Rasto da Água


Já escrevi de tudo sobre a água e a nossa relação. Mas escrevo de novo. Para repetir o prazer de falar dela. Da água. Amor sem tempo ou idade, isento de quebra ou tracejado.
Infância
Como em todas as relações de crescer, começámos com certa cerimónia. Do meu lado, respeito. Olhava-a de olhos baixos, um fascínio medroso e incrédulo a interrogar o breu espelhado do fundo dos poços, se eu caísse deixavas-me morrer. Por resposta, só o eco atordoado dos meus gritos. Depois havia a água bebível, carregada à cabeça em bilhas de barro içadas a pulso, e usada em economia de gastos. O agrado de saciar a sede deu-lhe primazia, ainda é a minha bebida preferida. E a água do banho, aquecida a lume de chão, duas panelas de ferro a borbulhar. Sempre o mesmo cuidado, água é líquido digno de valor e estima. E a praia que mal vi e logo o mar apagou tudo naquela excursão de garotos cuja finalidade era outra. Eternidade na solene meia hora de fascínio estival. É possível que a lembre mais e melhor que os intervenientes directos. Depois, havia a água encanada a regar as laranjeiras e que, se desencanava, era botão a desatar a histeria possessa e asneirenta de meu pai, bem mais precioso que topázios jorrando lapidados da abertura do cano. No tanque comum de lavar roupa, preocupava-me assistir à transmutação da água que passava de líquido fresco e transparente onde as mãos apeteciam e as peças boiavam, a uma espessa e inexplicável camada cinzenta que guardava no fundo não se sabe o quê, e causava repelência. Os outros garotos a apararem a nata cinzenta, mexe!, e eu a recuar, mãos fugindo para as costas. E havia a chuva forte que batia no barro das telhas a respingar-nos, minha mãe correndo a proteger as camas com um plástico e eu temerosa do desastre, e se as parte.
 Desconhecia lagos e represas, rios, regatos, barragens. Fustigava-me a curiosidade uma fonte humilde que gorgolejava baixinho no meio de pinheiros, em doloroso desperdício que enterrava no pó castanho por entre carumas aprendizas de natação. Brotava do quadrado escuro de pequena cisterna a que chamávamos a nascente, e onde as cobras de água da nossa crença eram mais largas e compridas que braço de adulto. Puro terror jamais vislumbrado no embevecido caminho do cabelito de água a empoçar.  Por mim, era habitada por fadas, local de encontro de príncipes e princesas, assistente nocturna de maquinações diabólicas de lobisomens, talvez as cobras metidas ao barulho.

domingo, 17 de junho de 2018

Requiem para uma Flor


Morreu a minha última avó. Foi uma avó de coração, que sangue comum não nos existe. Não era uma velhota bonita e tinha voz ligeramente áspera, mas olhava todos com bondade. De longe em longe, tropegava ao amparo da bengala, olhos espargindo saudade na difícil romaria de meia volta em redor da casa florida. Uma odisseia.
Em tempos, corriam crianças pelos cantos da casa, no jardim, junto às redes de rolas, pombos, galinhas e canários. Ou em curtas escapadelas pelos regos da horta. Ali abrigou filhos, netos, bisnetas. E mais crianças que criou desde o berço, em desvelo de  ama benfazeja. Agora acorriam-lhe aos pés duas cadelitas sôfregas, esfalfando ladridos desalmados à proximidade de qualquer. A osteoporose prendia-a por todos os lados e a frequência das quedas compadecia em fundas cicatrizes espalhadas por braços e pernas revelando padecimento hospitalar. E ainda assim vivia em sua casa, arrastando-se de um lado a outro, os animais por companhia. Visitei-a menos do que devia apesar de morar no fim da rua, a escassa meia dúzia de metros. A gritaria das cadelas incomodava-me. E quanta vez lhe perguntei se não lhe impediam  os movimentos. Mas  eram a sua única companhia, a família aparecia no fim do dia de trabalho.
Foi assim até ao dia em que tropeçou numa - ou nas duas - e entornou a chaleira fervente sobre o corpo. E ali ficou caída, horas e mais horas em urgente sofrimento, até que a tardinha lhe trouxe a filha. E depois o lar de idosos. E logo, logo, a morte.  
Guardava para mim uma flor vermelha que não chegou, acabidada por filhas ou netas. Mas as rosas do muro, essas,  foi ela que, anos atrás,  as deixou ao entrar da porta. E cresceram. E quase por milagre, parece ter ressuscitado a última árvore que o marido plantou às vésperas da morte. De cada vez que a visitava vinha a pergunta, como é que ela está, ele dizia que não se aguentava, que estava quase morta.... E eu mentia, está linda, pegadíssima.
E um dia, avó, encontro-a nas ruas da eternidade, a nossa flor vermelha no braço sem cicatizes, bom de todo, tome lá minha neta.  


sábado, 9 de junho de 2018

Chico Buarque


Rever Chico Buarque depois de mais de uma década. Embevecer no superior carinho português, uma desmesurada ovação a envolvê-lo mal  pisa o palco. Ser o ar lançado nos assobios, o ímpeto das mãos, a garganta presa de vê-lo contente e comovido de e com o público. O espectáculo inteiro foi reencontro carinhoso, um esvanecer de saudade desvanecida. Homenagem do Chico ao povo português e a recíproca e apoteótica rendição expressa em aplausos, bravos e inesgotável estridência de assobios a repetir e repetir em cada canção, em cada frase e pequeno  aparte. Não posso saber como foi no Porto, ou mesmo em Lisboa nos dias que se seguiram. Mas tenho certeza absoluta que, em qualquer parte do mundo, Chico não terá melhor público. Tudo ou quase tudo foi cantado a meias e assobiado e aplaudido mal as canções eram identificadas. E o carinho português é o de quem o viu crescer na música e na vida, lhe acompanhou juventude e madureza e se prolonga na velhice. Esse carinho particular é a supervitamina que o sustenta e faz portugueses como eu esquecer o preço de duas horas de  encanto. Deixámos de ser eternos. Agora, cada vez é única e pode ser a última. Li algures que existem as noivas de Chico Buarque. Jamais me senti noiva do Chico. Estou com todos os que não lhe conhecem apenas a figura magra e quase estilizada, a unicidade dos olhos, o rosto vivido de eterno menino tímido e bem comportado. Mais além, brilha a sua inteireza e convicções, a ternura familiar que sugere sem exibir, o jeito terno e quase plano de sempre cantar o amor, a humanidade rasa das histórias que escreve e canta. Este não me pareceu o seu melhor álbum. Voz e figura ganharam uma nota melancólica, espécie de fatalismo que quase nos entristece, como se a poesia voe tão perto do chão que possa sumir-se nele. E, contudo, sou-lhe grata pelos versos da primeira canção que foi também a última,"Vem esquecer tua tristeza / Mentindo à natureza / Sorrindo à tua dor." Era para isso que estávamos ali, para enganar a natureza. Com ele, conseguimos. Depois, moveu-me canção mais intimista, abrindo portas ao que, de outro modo, não descerra, “deve haver um confuso casarão onde os sonhos serão reais/ e a vida não/uma espécie de bazar/ onde os sonhos extraviados vão parar”. O sonho extraviado que permanece nesse tão nosso e confuso casarão e que ainda assim nos alumia.  E depois houve Todo o sentimento e nele, “o tempo da delicadeza”, um desligar para voltar a ligar que se assemelha demais ao sentir que perpassa em Tua cantiga, qualquer coisa de irracional que acorre a um suspiro, ao aceno de um lenço caído, a um nome com cheiro de perfume; canção que parece tão súbtil e leve, mas tanto apela a uma força desordeira. Tudo banhado em simplicidade. Como sempre. E houve Tua cantiga, feita para amores supremos e só não entende isto quem sofre de séria parvoíce. Há quem escreva que Chico simboliza o amante delicado e ideal. É verdade, ele também canta o amor, sim. Ao longo da vida, sempre guardou o lugar de cantá-lo. Digo eu que tem vindo a desenhá-lo nos vários estados, sólido, líquido e gasoso.  
Obrigada, Chico.

sábado, 2 de junho de 2018

Feira do Livro 2018


À saída do metro, o vôo de olhos  desejantes procura a nuvem roxa, etérea primavera  dos jacarandás no Parque Eduardo VII. E eles em involução friorenta, na revessa uns dos outros a curtir o desconsolo. Dos troncos escuros desprende-se um dramatismo vibrante e os braços, que requebram em cotovelos sombrios, erguem-se da clorofila em angústia sinuosa. Envergonhados, murmuram pardas desculpas que o trânsito ilude, não sabemos o que se passa, mas há-de ser deste frio que atordoa e da falta de sol. E as gentes em demanda das barraquinhas dos livros, a esquecê-los de empreitada, ok, ok, já percebemos. Hoje, a demora promete ser inteira para as letras.
Na viagem por este mundo de papel, os alfarrabistas são tentação que requer vagar e uma partitura completa de amor ao livro.  É um nunca acabar de tira, põe, volta a tirar e a recolocar. Ali, a escolha é  bordado que se arrasta e volta atrás, qual teia de Penélope. Mas quem gosta de ler leva alegria para casa; e o facto de ser second hand só acrescenta: houve pelo menos outro par de olhos a demorar-se nas mesmas palavras. Dizia um senhor folheando o seu exemplar, “comprei um livro por cinco euros e não só tem assinatura como dedicatória, vale de certeza muito mais”.
E em cada editora há os muitos livros que nem são caros e se gostam. Os autores que se preferem. Os escritores que se querem conhecer. Os que se coleccionam. E aquela obra clássica em que  se faz gosto e pede maior largueza de gastos, quem sabe uma herança literária que se deixa a filhos ou demais família. Então ruma-se abaixo e acima a rebobinar o calendário de propostas e contrapropostas. Da decisão brotam sacos de plástico carregados a mãos ambas. E os livros contentes, na antevisão da comunidade que é sua e dos leitores.
Mas há ainda os autores com livros novos que marcam presença na Feira. Cumprem o ingrato papel de aguardarem clientes,  alguém que lhes chegue com um livro para autógrafo.  Nesta postura de quem dá mais, os escribas  provocam mal estar a uns e curiosidade mórbida a outros. A maioria está coíbida, sente-se cobaia. António Barreto, sem um cliente, a cumprir pena. Sérgio Godinho discorrendo ao micro - e ouvido em grande parte da feira - sobre a sua mesma constatação de que o livro Coração mais que perfeito, tem mais cenas de sexo do que supunha. Quem o ouvisse podia imaginar que tenha andado a contá-las, uma, duas, três, quatro...e por aí fora. E depois a conversa de que o escritor se deixa levar pelos personagens e vai por aí fora quase sem dar conta. E que na escrita de tais cenas não sofreu de inibições nem pensou em netos, filhos e demais família que mais tarde ou mais cedo hão-de lê-lo. Uma fatia de público muito razoável a escutá-lo. A editora não perdia em ter convidado Júlio Machado Vaz. Daria boa conversa, até porque a escritora que o acompanhava tinha uma obra – trabalho de pesquisa - sobre o adultério em Portugal.
Noite escura. Frio. Pelas vinte e uma horas, o povo cerrava casacos e debandava com garra. E os jacarandás enovelados em parede de sombra mas ainda a prometer,  talvez amanhã ou depois, talvez que antes do términus o nosso manto lilás a debruar a Feira. E alguns a sono solto, sonhavam já com o apetecido bem estar: um mar de flores lilases.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Um homem não chora


Há dias em que um homem se sente estranho e invisível na sua própria casa. Deita-se na mesma cama com a mesma mulher, a casa de banho habitada por after shave e colónia; o pequeno almoço aguarda no mesmo canto da mesa; junto à porta, os objectos pessoais, casaco, pasta, óculos de sol esperam ordenados. E ainda assim é como se a casa não me pertença, tenha um ritmo alheio, os objectos cativos a murmurar  de viés, este outra vez. Sinto-lhes o mau estar desde o bater da porta na entrada, parece-me que mal me sofrem os passos, como se os espezinhasse, eu que me desloco sem ruído desde criança, a proibição de minha mãe ainda nos ouvidos, o menino não pode correr dentro de casa, a enxaqueca da mamã não tolera barulhos. E as empregadas como gatos, a deslocarem-se em sapato de lona. O papá em bicos de pés, eu de soquete branco por muito ano. E a doce mamã mergulhada em penumbra.  Acudíamos-lhe ao quarto por um ai mais demorado; a nitidez de uma queixa, hoje nem consigo abrir os olhos; um pedido de doente mimada, ai como me apetece o cheiro das tangerinas. E logo meu pai pressuroso pegava em bengala e chapéu e desencantava em qualquer tempo as tangerinas de Janeiro. Que a empregada trazia numa bandeja e ela descascava com prazer, a exclamar extasiada, cheiro tão bom. Pouco depois enfastiava, dedos nervosos e odoríficos na campainha a retinir, leve, leve, atire fora. E enquanto expulsava das mãos o ácido ascórbico, a lona atarefava em pressas de veludo no sentido da cozinha, vamos comê-las que já estão descascadas. E eu em contemplação, encostado no umbral. Curioso de lugar tão diferente.  Comer tangerinas despia-as de função. Retomavam o corpo sem pose com que tinham chegado até nós, riam umas com as outras, brincavam. Naquele bocadinho de tempo eram quase tão garotas como eu, o menino não diz nada, pois não, quer um gominho. E eu importante como um confrade, a mastigar os gomos que me passavam, a sentir na boca o sumo doce , a fazer parte do segredo que vingava naquele reino de ruído caseiro, mescla de cheiros e compostos que acordavam ao calor. Além delas, havia a cozinheira de mãos largas e colher de pau, que me chamava prolongando-se em doces que descobria não sei onde, coma tudo aqui senão o senhor doutor ainda me despede. Quando recebíamos, meu pai apontava-me  às visitas, o carácter não pode ser amolecido com açúcares, o Alberto  é criado sem tal veneno. Olhem para ele, nem parece filho da pobre  Madalena. E vários pares de olhos  avaliavam resultados, cabeça acima e abaixo, bocas a bichanar aprovações. E ainda hoje engulo a sobremesa, minha mulher a princípio estranha, que pressa é essa, o que lhe deu. E eu de afogadilho, não sei, sabem  melhor assim. E nela só a sobrancelha delicada, nem demasiado espessa nem demasiado fina, a alarmar. Mas de que serve saber, explicar-lhe demora tempo e não muda nada. É que só na cozinha pacifico com os doces. Habituada ao desvario e tão velha como nós, a empregada deixa ouvir no levantar  da mesa, os restos ficam no frigorífico. E quando fecha a luz da cozinha, prato e talher esperam-me na bancada. Se não foras tu e o mundo da cozinha a prender-me, teria por certo evaporado. Que não sei como aguentar salas cheias de candeeiros e agudos de mesa, cadeiras empertigadas, sofás que nos encurvam e sepultam, écrans cheios de mundo em desfile patético e que não interessa nem ao Menino Jesus. De resto, o que pode acontecer de verdadeiro numa sala, filha. Ali, imperam reposteiros e  cortinados, quilómetros de linho e seda a velar a crueza dos dias solares. Também a guardar-nos de mirones.  As salas são fatídicos lugares de morrer aos poucos. Não foi lá que deste os primeiros passos soltos, perninha bamba que primeiro hesitava em tem-te não caias e depois corria até aos meus braços risonhos; não foi lugar do teu parque, ou a Olímpia não teria hipótese de te verificar; e nem a aranha que te amparou a pressa das pernas alguma vez por lá passou.  Bem sei, não é o teu lugar preferido. Afirmavas convicta, a sala é para as visitas e não gosto que haja visitas.

sábado, 12 de maio de 2018

Insólito e Comum


Peço desculpa a algum incauto que passe e me leia. Mas até eu estou banzada comigo – vou escrever sobre José Sócrates, coisa que jamais pensei fazer. Claro que toda a gente fala dele e é só mais um post no meio de tantos. Pois é. Mas acontece que não aprecio nem um bocadinho o sujeito em causa. E vem isto de sempre. Que é como quem diz, desde ser ministro do ambiente e de estar aos domingos à noite, em directo e na RTP1, a jogar aos dardos com Santana Lopes. É capaz de ser preconceito. Assevero, a minha opinião é anterior ao Sócrates primeiro ministro, aquele que, enquanto governava, tresloucou e fez um monte de disparates e falcatruas criminosas por junto – que até se me configura que tenha para aí uns cem anos ou viva as vinte e quatro horas em expedientes matreiros e, como disse, criminosos.  Se nada disso tivesse acontecido, eu o ignoraria na mesma. Sem raivinhas, só indiferença.
Acrescento que não aprecio o estilo do senhor apesar de reconhecer que tem bom porte, sabe vestir e fala com desenvoltura. Mas o fato não faz o monge e sempre me pareceu que monge por detrás do fato não havia. E porém. Há coisas que não tolero. Bater no ceguinho repugna-me vivamente. Ora o Sócrates em quem hoje se bate tem arcado com tudo que é podre e não presta. Todas as manigâncias vão dar a Sócrates, o que, para mim que não sou juíz, parece exagero. Mais um bocadinho e sou obrigada a dar-lhe duas vidas só para malfeitorias e a concluir que não é homem, mas um ser arraçado de gato.
E esta semana, a família política e uma ex namorada juntaram-se a bater em quem já está no chão (terá sido combinado?!). Eu que não sou mulher de papar telejornais, vi e ouvi quem o defendeu e agora o ataca. E também li artigos de Fernanda Câncio, jornalista que os bloguers exibiam como se fosse uma nossa senhora moderna e a que nunca achei piada por me parecer gente que não presta (não quero nem um pouco saber se é feminista ou não, as pessoas ou têm carácter ou, sejam o que sejam, militem onde militem, não prestam). Pois nesse tempo, a senhora D. Fernanda – a tal a que sempre senti alergia, mas deve ser problema de pele que a dermatologia resolve – juntava quatro pauzinhos e fazia uma cabana a favor de José Sócrates. E eu, nas vezes em que lia, verificava que a dama esgrimia bem os argumentos e lhe assentava o papel de defensora. E punia-me um bocadinho-pouco por não gostar dela. E agora isto. Não li o que disse/escreveu e nem preciso. Basta-me tê-lo feito. Denegrir o ex num jornal. O que ela e os antigos amigos lhe fizeram é sujo. indecoroso. Indigno. Gente que morde a mão que lhe deu comida não é gente a sério e desmerece a designação de pessoa.
Entretanto, a populaça reage às notícias e culpa José Sócrates. Anda contente a populaça. Contente com os atropelos e morosidade da justiça. Contente por ter encontrado de mão beijada um culpado para os males do mundo. Contente com o seu papel de juíz de faz-de-conta.
Também tenho uma opinião sobre o caso José Sócrates. Veremos quando a justiça actuar se é concordante. Porque, sendo as opiniões altamente falíveis, a minha pode nem ter fundamento, estar errada. Mas, a presunção de inocência até ao veredito é acto de misericordia devido a qualquer réu. E é de lei. Portanto, deixemos que haja e se faça justiça. Nos tribunais, órgãos onde é suposto as opiniões não contarem e se aterem os juízes apenas a factos. Porque a injustiça já aconteceu e tem sido aparatosa. Neste momento, sinto nojo desses “amigos” e “ex namorada”. Culpado ou inocente, tenho pena de Sócrates. Há danos irreparáveis.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Tolentino e Eu


Na semana anterior à sua sessão fui verificar a obra que escolhera e  gostei: “A paixão segundo GH”, de Clarice Lispector. Que eu lera do princípio ao fim sem preferir. E o meu amor a D. Clarice é dos que não debotam. Depois, a professora acrescentou que Tolentino fora o único orador a escolheu a obra (aos restantes foi ela que impôs). Tolentino iniciou com a mostra parcial daquela entrevista maravilhosa que anda pela net sem ser vista o quanto merece e que me deslumbrou pela primeira vez na Gulbenkian aquando da exposição  “A hora da Estrela”. E depois andou à volta da barata morta para dizer que, em última instância a paixão é isso, um tornar seu o que é estranho (daí o comer da barata); tornar seu é incorrecção minha por ser expressão que admite ainda haver alguma coisa que não sou eu e me é exterior  mas que me pertence – e que não me parece ser a paixão segundo Tolentino. Ora, o que julgo que Tolentino quis dizer foi que o amor/paixão elimina a transcendência, o estar fora.
Bom. A maioria das pessoas ficou siderada com D. Clarice na entrevista que foi a última que deu.  E com a vida da escritora que Tolentino fez questão de contar. E muita gente vai comprar a biografia que Benjamim Moser deu à estampa. De certeza.
Ora bolas, já me perdi. Eu tinha começado a escrever para contar que nesse dia cheguei tarde e para abreviar caminho e não incomodar me sentei lá atrás na última fila. Não sei o que estava a fazer. Talvez coisa nenhuma. Esperava. Ou sei lá. De súbito, no meio daquela igreja a abarrotar de gente, muitas pessoas de pé e sem lugar, havia um homem a olhar-me. Tinha o corpo virado para a frente e, para me olhar, virara a cabeça.  Não me olhava distraído, olhar errante. Fixava-me. Pensei que talvez me conhecesse e investiguei-o. Ao invés do que costuma suceder, não me pareceu que já o tivesse visto. Pensei que, provavelmente, eu apenas respondera à chamada dos seus olhos.  Não era um olhar curioso, mas era, sem margem a dúvida, todo para mim. Poderia estar a confundir-me com alguém conhecido.  E fiquei na minha. E daí a nada, o Tolentino estava ao micro. Era ele o sujeito que parecia conhecer-me. E por ali se quedou a abismar uma capela inteira com D. Clarice e o seu dissolvente de transcendências.  Beleza de mulher, estranha senhora de tão boa e incomum prosa.
Eu trouxe o teu olhar simples e meio terno, Tolentino. Parece-me bom para ter à mão. E as palavras que queiras dar ao prelo, também as farei minhas. Porque o resto, meu caro, são contas do teu rosário.


Tolentino e Eu


Leio Tolentino Mendonça há anos. Tenho  alguns dos seus livros.  Os primeiros chegaram-me via amigos, um agrado carinhoso de quem me quer bem.  Depois, por gosto e sabor, comprei mais um ou dois.  Já li vários poemas  seus, puro bom gosto de quem os mostrou na net. Em consonância, sempre que posso,   leio as crónicas que escreve para jornais e revistas. É uma escrita sempre empenhada na vocação. Acredito de pés juntos que tem vocação para se dar aos outros, que o facto de ser padre pouco me importa, embora reconheça: é talvez a melhor maneira de ele se (e a) cumprir.
Toda a gente sabe que nos media as crónicas são encimadas pelo rosto do cronista. Acontece que sou um bocado desligada da imagem, confundo os meus amigos com outras pessoas, levo o tempo a reconhecer pessoas na tv com quem é impossível ter tido algum contacto. E outros desconchavos. Portanto, o Tolentino, como a maior parte da gente que leio, não precisa ter rosto ou figura. É o Tolentino da escrita. Logo, passo pela foto como cão por vinha vindimada e atarracho nas palavras. Facto que não belisca o meu apego. Porém,  tenho funda crença que a minha preferência literária e humana naquilo que ele mostra na escrita, lhe são benefício. A forma não sei mas, existindo uma sintonia desinteressada com alguém, creio eu que o alvo do bem querer robustece.
E como me alegrou ler (na Visão) a conversa entre ele e Lobo Antunes, dois dos meus escritores de eleição. Não a vi. Li-a. Pode que esteja na net (estará), mas dispenso a imagem. No caso daqueles dois, a palavra sacia o desejo. E digo até mais, a imagem é fonte de distracção e talvez que, inadvertidamente, deixemos cair alguma preciosidade. Ora, no caso desta reunião feliz, nada se pode perder. Tão bonito terem entrado os dois de mão dada – mas isto, desculpem, é Lobo Antunes chapadíssimo. Tenho dito.
Pois este ano frequentei – com mais umas duzentas e tal pessoas – uma espécie de curso livre na Capela do Rato, onde Tolentino é pároco. E lá estava o Padre Tolentino na primeira sessão a dar o pontapé de saída ao lado de uma professora que conheço e que onde mete o bedelho sai obra apurada. Confesso que nesse dia não lhe liguei grandemente e nem me lembro do que disse. Foi dos melhores cursos que frequentei. Em todas as sessões, as paroquianas se referiam ao Tolentino num corre corre de novidades que me lembrava os ingleses e a sua relação próxima à família real. Que estava em Roma a fazer o retiro pascal ao papa Francisco e mais àqueles bispos todos e doutores da religião. E que na net assim. E que na net assado. E passavam umas às outras o endereço digital onde, suponho, ele colocava a via sacra do retiro (não seria a via sacra, mas talvez um resumo da orientação espiritual que punha em prática). Não me interessou. E depois havia aquela gente que babava com as suas homilias. Que as suas missas são únicas e as homilias um espantoso espanto. Confesso que desejava ardentemente que o Tolentino voltasse a ver se sossegavam o espírito. Aquietaram.

domingo, 29 de abril de 2018

Convergências de acaso


Gosto de igrejas. Admiro-as desde o exterior, mas é no interior que existo, penitente. O ambiente de silêncio propicia o recolhimento, ainda que nas invernias se confunda com desacerto e vazio de friúra que afugenta os mais afoitos. Ignoro se Deus as habita sempre ou apenas esvoaça de longe a longe pelos domínios que o convénio dos homens Lhe determina, a Ele que, por essência, é pura indeterminação. Talvez a candura de Alberto Caeiro O resuma cantando em brevidade lógica o Tudo que Deus é. “Mas se Deus é as árvores e as flores/ e os montes e o luar e o sol,/Para que lhe chamo eu Deus?/ Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar/”. 
Ora, supondo mesmo que tal ser supremo as não habite ou des-exista, fica-nos o sonho, o desejo místico dessa omnipresença palpitando em cada ogiva, poalha coada com a luz que entra por janelas altaneiras; olhar que nos mira dos frisos das colunas,  haste volteando nos arcos de volta perfeita. E a certeza de que o temor dos homens Lhe outorgou as mais belas criações dos artistas de época. Do pequeno mundo que conheço, em nenhum lugar como em Itália as igrejas devieram repositórios de arte. Só ali o povo oblitera o lugar e, num  deslumbramento, se excede em retumbância exclamativa.
Corria o calor da tarde em Ravena quando passámos perto de uma igreja e ao chamado de órgão mavioso, entrámos. Decorria talvez um ensaio para concerto e por longo tempo nos subtraímos ao calor da rua, presos à sincronia de dedos e teclas. Ali, acendi uma vela e copiei um propositado poema.
Ora, foi  por gostar de igrejas que na Calle Alcalá entrei na Iglésia de las Calatravas. Sem imaginar que, no interior, decorria o ensaio do Concierto Davidson Chorale and Orchestra from Augusta, Georgia.  Eram teens entre os quinze e os dezasseis, dezassete anos. Todos made in USA.  Ensaiavam o que nos pareceram cânticos espirituais negros. Com solos lindíssimos e respostas de coro em uníssono. Jovens a tocar e cantar com mestria angelical. Ficámos até ao fim. Nos breves intervalos, os garotos voltavam à idade, brincavam, conversavam, dançavam com o inato donaire da mestiçagem. E logo o que julguei ser uma professora de canto, ou talvez a maestrina que os dirigia, avisou brandamente, “é o nosso último concerto, espero que honrem esta cidade como às outras por onde passámos. Vamos deixar nas pessoas boa impressão, ok?”. E tudo acalmou.  Quando o ensaio terminou e os garotos passaram por nós, deitaram-nos soslaios sorridentes por entre passos de dança, o corpo pletórico e irrequieto, cansado de tanto respeito no altar. Um dos garotos olhou-me, cumprimentou e levou a mão ao boné. Uma simpatia. A sobrepôr, ficou-nos o cristal puro das vozes femininas que, no meio de conversas e sussurros, já de saída, trauteavam algumas notas soltas, agudos que eram flores a altear na igreja e desabrochavam até à cúpula.   
Há acasos felizes.                           

sábado, 28 de abril de 2018

Museu Thyssen


O museu Thyssen-Bornemisza  percorre-se de gosto. Visita cosida a linha de vagares,  as primeiras três ou quatro horas  passam  quase inadvertidas.  Nem daríamos por elas, não fora as pernas queixosas do carrêgo e  da proximidade ao ponto morto, num pára-arranca em contínuo gaguejar.  Faltam-lhe as obras espectaculares do Reina Sofia, mas cumpre em requinte. O turista julga que entra para uma refeição ligeira e depara com mesa de palácio posta a preceito, rendas de Veneza, talheres de prata, limoges e cristais a emoldurar iguarias inestimáveis em suplante de sabores,  qual de paladar mais delicado. O folheto recebe-nos também em português, pormenor tanto mais agradável quanto estranho nos museus de Madrid. Na capa, a enigmática Giovanna de Ghirlandaio, uma seráfica e aprumadíssima jovem, perfil  clean e penteado à la mode, num arranjo de arte capilar que lembra o uso de postiço em cabelo naturalmente ondulado; que podia mesmo ser enfeite do nosso tempo em cerimónia festiva. Havendo interesse na cronologia pictórica, podemos percorrer os vários períodos e começar pela pintura antiga dos mestres italianos, passando depois ao Renascimento e Barroco. E a arte do retrato manifesta-se em todo o esplendor renascentista, ali brilham os Caravaggio, Carpaccio e mais. Sente a gente que os olhos ficam reféns das telas, desligados de nomes, técnicas ou períodos. Não conhecem, são olhos que sentem. Fruem.  Se houvera tempo, então sim, talvez eles se desviassem da grata contemplação para comparar, distinguir, catalogar. E depois vêm os impressionistas, pós impressionistas e expressionistas, todos de elevado quilate e fino gosto, ímans do olhar , quais medusas sedutoras e ondulantes.  Prendeu-me Corot e o “Banho de Diana”; mas ainda Degas, Van Gogh, Gauguin, Renoir, Monet e tantos mais a que não quero ser infiel e para que me falta memória. A finalizar a viagem, a pintura do século XX onde cabem cubismo, abstraccionismo, surrealismo, pop arte... não que meus olhos distinguissem estilos, empenhados que estavam na fruição. Mas por tê-los lido antes e conhecer mesmo alguns, Kandinsky, Dali, Kirchner, Edward Hopper. E outros que ignorava e me enriquecem o imaginário despidos de nome. O que esta gente fez por mim não tem paga. Talvez a arte seja isso, o imenso trabalho de mostrar a centelha divina que nos habita ajudando outros a entender-se nela, fazendo-nos inclusivos. E desse entendimento resultará a misteriosa pulsação da vida. Estamos todos ligados.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

25 de Abril


Quando o 25 de Abril de 1974 aconteceu – dia de memorável  acontecer – tinha dezanove anos de ignorância garantida.  De política pouco sabia, não ia além do temor à polícia política, que podia morar em qualquer um, e do cuidado em não falar mal de Salazar, coisa que nem eu calculava por que haveria de fazer. Era o nosso Presidente do Conselho e, logo, boníssima pessoa. Foi assim que cresci, imersa num mundo que não existia e onde as pessoas honravam os cargos com a sua excelência pessoal ungida de santidade. De outro modo, não seriam escolhidas. Falar ou pensar mal de Salazar jamais me ocorreria e conjecturava com os meus botões que só o mau feitio de meu pai era capaz do estado odiento que lhe sobrevinha a desoras na amargura dos dias, “pendurado de cabeça para baixo e o cabelo corto à pedrada, ainda era pouco”. E outras afirmações do género que minha mãe tentava abafar,  olhos arregalados numa inquietação desconhecida, “homem fala mais baixo, não digas heresias, olha que alguém te ouve; lembra-te dos filhos”. E meu pai sem lhe fazer caso, a  altear a revolta e disparando perdigotos, “havia de o deixar lá a morrer à míngua, o sangue a pingar gota a gota; ele e mais a corja toda, o Tomás e os outros”; e abarcava com um gesto largo da mão todo um mundo de malfeitores. E eu que não podia calá-lo sem levar um sopapo que me deitasse por terra, julgava-o um ser sem coração e tinha até vergonha de tamanha crueldade dirigida a gente tão imaculada e que, com denodo imparável,  lutava pelo nosso bem estar.
E em Abril de setenta e quatro fez-se luz na minha alma de trevas. País velho e com alma juvenil, crepitante. Ou terei sido eu mesma que nasci para a compreensão extensa da liberdade do povo. Finalmente, entendi meu pai.
Sem a saber ou sequer lhe conhecer a obra, era com Sophia que estava (as almas são deste quilate, ficam gémeas sem pedir licença).  E é ainda na permanência dos seus versos de cabeça erguida que se sustém o Abril do povo português. O, “ Abril, Sempre!”

“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitámos a substância do tempo”.

domingo, 22 de abril de 2018

Marcadores de Página


Relendo, até parece apenas um passeio virado à cultura já feita e pronta ao disfrute.  Mas o bom de ele haver foi a miscelânea ancorada na boa companhia.  Madrid é lugar a que volto também pelos laços, aqueles fios que nos atam uns aos outros e não gostamos de perder. Lembro a casa no centro da cidade e ainda sei o cansaço das pernas em cada degrau; a porta de então, ontem sempre aberta e hoje cerrada; o largo para onde davam as janelinhas de água furtada e que mirava com olhos de pardal de telhado; a vizinhança cosmopolita  do hotel de que éramos vizinhos e foi recauchutado. Não seremos os mesmos. Mas o que nos unia é chão descalço a guiar-nos a mudança. E aquela amizade juvenil, vinda do fundo dos tempos. Em palpação mental depois de trinta anos. Quatro tolos a procurar no rosto uns dos outros as linhas de entendimento que a alma sente. E as fotos, mostra dos anos e das gentes que nos habitam. E o brinde a nós e a todos os que gostam de nós. De permeio, o passado dissemelhante do futuro extenso que, sem haver, nos existia nesse tempo de passeios descomprometidos.  Tão felizes que nós éramos nos interstícios  das dificuldades que ensombravam cada um. E que bom o reencontro. Que bom constatar que Xavi mantinha disponível para nós a mesma ternura delicada. Xavi, que continua simples e ele, apesar do que foi ganhando com os anos. Que sofre de cirrose de grau um e nunca bebeu, continua a jogar futebol três vezes por semana e tem três filhos lindos e dieta apertadíssima. Mas a ternura calma dos olhos. É nela que somos aceites. E logo o  resto desimporta.
E depois houve a serra (não sei qual) e o ar rarefeito a infiltrar, um friozinho insidioso em dia soalheiro. E a neve gelada nos caminhos, mais de um metro de altura. E os incríveis esquiadores que desciam “a bola do mundo” à velocidade da luz.  Nós cá em baixo numa angústia, ai se caem; ai se vêm por aí abaixo de escantilhão, descomandados, e esborracham no alcatrão; ai se. E não aguentámos, dirigimo-nos à pista de aprendizagem ou morríamos aflitos do coração por aquelas paragens. Filhas de minha mãe jamais seriam capazes de se armar de esquis e andar para ali ao frio, sabe Deus a quantos quilómetros por hora. E isto, vejam bem, depois de milhentas quedas. Que bem os observámos aos trambolhões na pista de aprendizagem. Contudo, bateu-nos um suave de ternura, olhos a acompanhar aquele garoto que cambaleava estrada fora.  Dois minúsculos anos,  botas de esquiar enfiadas, o pai a segurá-lo pela mão e por vezes a içá-lo.  Sob o ombro do homem, um par de esquis pequeninos, em pose de brinquedo imperturbável, espreitavam do saco.
Oh! E houve os petiscos madrilenos. Que sopa e segundo comemos em casa e só transigimos na paella. E os deliciosos folhados das pastelarias Viena que Deus as conserve e tinham certo ar do Majestic mas sem a majestade, o que é motivo de agrado, não quadramos com a realeza. Mantêm idêntico traço de época, amarelos e espelhos. E tal. Deus dê vida longa e feliz a quem ali nos levou. Que se os deuses passeiam pela terra, de certeza vão lá lanchar.
E El Rastro, que é só uma feira de rua semanal. Mas seria a nossa boutique se por ali vivêssemos. Em ruas pedonais e infestadas de portugueses, passeavam sem cansar a vista, espanholas alegres e buliçosas ao lado de espanhóis pachorrentos. E por lá se mantêm.
E Olé.

domingo, 15 de abril de 2018

Museu Thyssen


No Paseo de Prado, ou em proximidade quase contígua, encontram-se os museus mais importantes de Madrid, Prado, Reina Sofia, Thyssen.  A disposição  lembra a berlinense Ilha dos Museus, o turista entra num e logo fica de olho no seguinte. Será esse o propósito de os terem assim,  quase de mãos dadas.
            Logo na  entrada, o Thyssen surpreeende.  O colorido laranja forte, escolhido pela garrida alma espanhola de “Tita”, a baronesa von Thyssen, é efusivo “bien venidos”. No primeiro átrio, duas pinturas colossais de suas majestades os reis de Espanha, Sofia e Juan Carlos. Lado a lado. Não recordo se pintados pela mesma mão. Estão o que são ou foram: reis. Em cores escuras e sóbrias, o rei que todas as espanholas gabavam, “o nosso rei é uma estampa, a largura de ombros, o aprumo, a altura...e a voz, e a ponderação, um rei mui guapo, sem igual”. Após anos e as tropelias que se sabem (outras haverá que não se conhecem), tornou-se quem lá está, um rei para actos oficiais e olhar meio desiludido de si,  sério e de um cinzentismo que impressiona, ainda que pintado em matizes de azul. Ela, não. Favorece-a a simpatia espanhola. Em Sofia, pintada em tons pastel, fundo claro e traje de gala ainda de maior claridade, brilha a bondade que não sei se tem, um certo jeito etéreo que sempre lhe pertenceu por ser loira, miúda, magra e sorridente, gracilmente  sublinhado pelo uso de brocados e finas rendas. É como se quem a pintou tenha querido dar à figura elegante o brilho da bondade graciosa, e assim tenha criado a imagem de beleza terna e incorruptível que não se imagina que seja grega, mas é. Olhando os dois, não podemos deixar de sorrir. Na vida como na parede, puseram-nos lado a lado. Tão diferentes. Um, demasiado humano; outro, uma divindade frágil. Ou flor impenetrável.
Mais à frente, os dois Barões  von Thyssen. Ela, esguia, jovem e comum, o semblante extrovertido e sorridente da Espanha salerosa. O sorriso parece convidar à alegria luxuriante que não quadra em baronesas anteriores, mas decerto agradou ao mecenas-barão. Ele, mais velho e pausado, mas com presença. Diria que  mui guapo quando jovem. De certeza muito rico. Possuir a maior colecção privada do mundo – fora a da rainha no UK  - não denota apenas gosto pela arte. O barão afirmava coleccionar quadros, vinhos e mulheres. Tudo em bom. Parece que os quadros lhe davam menos trabalho; ou seriam amor mais fiável, porque comprou muitos. Dos vinhos, acredito que não bebesse qualquer zurrapa. E mulheres teve cinco (fora as inconfidências que o google não revela e nem sabe).  Mas os quadros, sobretudo dele e do pai, mas até do avô,  são, no seu conjunto, aquisições sem valor concreto. Números acima da centena de milhar desmedem, não são humanamente imagináveis em quantidades redondas.
Pondo de parte a actual guerrilha da baronesa com o Estado espanhol, temos de reconhecer que houve ali dedo de fino gosto na compra das obras. Sobretudo nas aquisições do Barão que refez a colecção paterna – a herança obrigara-o a repartir obras com os irmãos e a colecção perdeu mais de quatrocentos quadros. E, como o gosto artístico do progenitor contemplava a pintura até ao século XVIII, dedicou-se a colmatar o hiato e adquiriu as que considerou representativas entre esse período e a actualidade.
Desinteressa-me de onde veio tanto poder de compra ao colecionador. Nem quero investigar se do tráfico de armas, se do fabrico, se. E a Carmen Cervera, a “Tita” do senhor barão e demais gente, não lhe sei o carácter. Mas agradeço aos dois e ao que os uniu. Porque depois da Holanda negar ao barão o edifício para albergar as obras - já não cabiam no seu museu privado em Lugano - só o casamento de ambos propiciou que viessem parar a Espanha. Portanto, nada de pensamentos malévolos. Ainda bem que casaram. Tal efeméride tornou possível  - a muita e vária gente - o desafogo da vista e da alma.  E pior estará quem não lhe sente a falta.
(cont)

sábado, 14 de abril de 2018

Um Museu com Nome de Rainha


       Quanto gostamos de pertencer a um lugar!  Não sabemos imaginar-nos apátridas. Haver terra de pertença é a certeza de um chão sob os pés, faz-nos. No estrangeiro, qualquer linguajar português nos transporta empaticamente para a fonte,  ainda que se nos apresente um troglodita disfarçado. É português e basta. Mas assistir ao nome de Fernando Pessoa a encimar a exposição do museu Reina Sofia, é garantia de orgulho. No meu caso, orgulho à chuva. Que é orgulho perene ser irmã de língua de tal poeta, viver debaixo do mesmo tecto de estrelas, respirar a sua cidade. E, de apetite, reler e tresler  versos e prosa. A mostra portuguesa tinha por título uma frase de Pessoa, “Toda a Arte é uma forma de literatura”, e lá estão alguns - poucos – dos seus versos; e a pintura - mostra também curta – de Almada com aquela assinatura de um d cuja haste se prolonga indefinida, e nós benévolos e a sorrir de cabeça que a um artista tudo se desculpa, esqueceu-se, foi por ali fora com o pincel e pronto. E o genial Amadeo Sousa Cardoso. E o casal Delauney mais Eduardo Viana. E há, é claro, o retrato de Pessoa pintado por Almada. Aquele grande retrato onde qualquer português de boa cepa se sente içado ao cume, ensimesmando em contemplação de conjunto e não apenas no poeta. Está ali o que temos de melhor relativo à época. Contudo, pareceu-me pobre, tive alguma vergonha de o nosso “tudo” ser tão pouco prolífico. Por mim, estaria Amadeo inteiro, Almada quase todo, Eduardo Viana muito mais. E ainda não tinha visto o resto. Porque, no labirinto que é o museu que foi hospital, há muito a ver, de boa e diversa arte.
            Talvez por influência do dia, ficou-me um museu escuro e de percurso meio estranho, supondo eu que o facto de haver um claustro interior com um bonito jardim dificulta e até impossibilita o caminho linear. E as históricas arcadas, agora transformadas em janelas de volta perfeita, que  coam a luz exterior e o tornam fresco, emprestam ao ambiente certo tom melancólico que me pareceu mais conventual que dado à exposição de pintura. E no entanto o valor pictórico que encerra não é definível. Ali estão os quadros de Picasso e o grito pardo e animal de Guernica, que não há escuridão mais sanguinolenta na história da pintura; está Miró e o seu mundo; Braque que tanto me suspende; Dali e a sua irreverência que avança pelo inconsciente. E quantos outros.
Reina Sofia visto de uma só vez desalinha os sentidos, boicota o entendimento. O acto contemplativo requer tempo. E tudo que existe anseia que lhe demos o que a roda dos dias mais nos vai tirando.

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Na Fundação MAPFRE


Ed Van der Elsken é o mais importante fotógrafo holandês do século XX. Assim. Sem mas nem mas. E a retrospectiva do seu trabalho é agradável de ver. Na fundação se expõem fotos, filmes, livros. E a vida pessoal do fotógrafo, que, sem exaustão, quase delicadamente, vamos surpreendendo pelo mundo. Salientam-se as fotos das suas musas, que foram variando – suponho que teria vivido com cada uma pelo menos aos bocadinhos.
 Lá está a moda e seus apaniguados. E os anos sessenta em Paris e Tóquio estão tão bem que admiramos as cabeçorras das jovens fotografadas como se tivessem defeito. Mas não. É apenas ripanço de cabelo (estão lá os carramiços e tudo) encimado por lacinhos hoje fora de época e sobrevoado por muita laca. Um ninho de vespas. Portanto. E há aquelas três bonecas de mini saia, avançando perna no cruzar da rua. Divertidas e cabeçudas. Como compete. Tudo na objectiva de Ed surpreende, mesmo que aceitemos casos de surpresa com ensaio. Há uma sequência de fotos de uma jovem japonesa, muito séria, corpo elegante, nem bonita nem feia, fixada em algum percurso específico que só ela sabe. E que – parece –, não deu pela objectiva. O efeito surpresa empresta a alguns fotografados certo ar zombeteiro, um desafio no olhar, estou aqui, interesso-lhe e tu não. E há droga. E álcool. E olhos que não enganam. E os mafiosos que sem esforço se adivinham. E as mulheres de vida alegre, como dizem nuestros hermanos. Vida alegre! Não podiam encontrar expressão mais malvada. É que não há razão que a sustente. Mas enfim. Avante.
E há filmes. Alguns no propósito de chocar. Como aquele com a sua primeira musa, um abuso de asas de corvo no risco dos olhos. Ela e o parceiro enchem a tela, um acto de amor descarado, vertical e divertido, cheinho de solavancos. E só a juventude dos dois permite que não seja boçal demais. E, em fundo, constante, a voz e o riso dela a contar o espírito há muito enterrado e que, então, os animava. E há África de que ninguém fala mas existe, cheia de maldade para com as mulheres, e era lugar das preferências fotográficas de Ed. E Tóquio com sua carga de exotismo e contradição, onde não se cansou de voltar.
            No final, a mensagem de despedida ao mundo e à família. E a coragem de se filmar com doença terminal. Não o vemos morrer perante a câmara. Mas basta olhar e sabemos o que ele sabe:  falta pouco.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Museu Sorolla


De pincelada larga e vivaz, Sorolla é pintor de fino recorte, gente que não chega a descer das sedas mesmo quando parece que sim. Os seus retratos femininos deslumbram e não apenas pela pintura, há nas modelos certo ar gourmet que entontece. É certo que a mostra em exposição se subordinava ao título "Sorolla e a Moda", o que afastou telas como a do pescador morto e que titulou , "ainda dizem que o peixe é caro". 
O pintor tendia para a beleza qual flor para a luz, mulher feia ou assim-assim jamais o levaria. Talvez um dos poucos homens que gostava e sabia comprar vestuário e calçado feminino. Em solícita e amorosa carta a Clotilde, sua esposa (exposta no museu), pede as medidas para compra de roupas que viu e lhe ficarão muito bem (um elogio maior em letra esquinada a tinta permanente de qualidade, que ainda não debotou); refere ainda a aquisição de chapéu para uma das filhas e sustém que são compras a seu jeito. E que gosta e lhe   dá prazer alindar as suas mulheres.
Deparar a gente com um Sorolla pode ser grande sorte. Mas também um azar. E se ele era um chatíssimo senhor, daqueles de, veste lá o vestido que te comprei e põe os brincos x ou y; e não esqueças, calça os sapatos z. E agora repousa nessa cadeira e olha-me desta maneira, não, assim não, que te faz uma ruga na testa e te dá um ar zangado; e põe o braço assim, levanta só um pouquinho da saia a mostrar o pezito. E agora fica quietinha para fazer o esboço. E etc.
Sim, que aquele deus grego – era bonito até fartar – casou com uma mulher linda que pintou em mil posições e feitios. E duas filhas bonitas que também eternizou em tela. Contudo, uma das jovens é portadora de inquietante tristeza. Não há quadro onde a melancolia do olhar não nos perturbe. Li que teve tuberculose. Talvez lhe tenha ficado desse encontro prematuro com a morte, há embates que nos mudam o semblante. Apetece pegar-lhe nas mãos e olhá-la por dentro. Sem querer que fale ou se abra. Basta deixar correr a melancolia que traz presa no olhar.
Mas há ainda a casa. Um solar airoso, pensado em beleza  requebrada. E de duas casas se fez uma. Obras e mais obras que o pintor concebeu.   Rasgo de janelas mirando o primor do jardim onde os buxos convivem com as fontes e a pérgula e as flores são felizes. O conjunto é tão bonito e pueril que parecemos mergulhar  num filme ou história de princesas. Tudo é muito e demais.  Pode ser ilacção ilusória, mas Sorolla denota certo horror à pobreza de onde saiu, uma obstinada fuga ao submundo e que condensa na obsessão pela harmonia, nos gostos caros, na exigência da justa proporção.
E pode que nada do que penso seja verdade.

terça-feira, 10 de abril de 2018

Museu Sorolla


A maioria das pessoas trabalha para se sustentar. Não cria fortuna nem sobe na escala social, o trabalho ampara-lhes a condição de berço. Depois, há os espertos que amarinham agarrados à argúcia negocial, alturas de onde também podem cair, fatídicos.  E há os artistas. Os artistas que nos habituamos a pensar sem dinheiro, pobres, vivendo em mansardas e a comer um dia em cada dois. Pela sua arte, suam as estopinhas. Mas o reconhecimento atrasa e chega na tumba. Ou nem se vislumbra. Nem sempre. E Sorolla é radiosa excepção. Órfão, criado por uma tia casada com um serralheiro, conseguiu com a pintura o que costuma vir de berço: fortuna, posição, reconhecimento. Pintor solar. Diz-se que impressionista e cultor do luminismo. A luz é o tema comum a todo o seu trabalho. A luz e a beleza que não dispensa, é um esteta que prefere a fuga à realidade. Quem olha o quadro “As pescadoras” ou o da pescadora com o filho, repara que o trabalho na pesca não  deixa o rosto limpo nem usa alvas roupas inundadas de claridade. As pescadoras seriam antes bem morenas e de semblante vincado por desgostos e aflições sucessivos, angustiadas pelos seus homens tanta vez perdidos em águas revoltas. É como se o pintor nos diga que a luz muda tudo e as mulheres do povo se tornam leves e outras por efeito dela.
Deparamos com uma pintura prazenteira e fonte de luz. De forte vitalidade. Ali,  mar e figura feminina predominam. As mulheres surgem bonitas, elegância ataviada e, bastas vezes,  acintosamente coquete. Na água, predominam os nus infantis como se tenha querido passar para a tela o prazer sem mácula do banho de mar. Ou tenha ido mais além na compreensão do que os banhos de mar encerram: a reinvenção da inocência. E há qualquer coisa de telúrico e profuso naquela água que escorre pelos corpos e é tinta. Aquela água falsa e luminosa que nos enraíza, seiva correndo por dentro do observador. E somos aquele calcanhar, um certo dorso molhado, os gémeos brilhantes daquela perna, o sexo do garoto que retira  o cavalo das águas...
(cont)