Por
vezes, encho-me de coragem e dou uma volta em tua casa a espantar teias de
aranha e lixos, esconjuro bolores e fungos, passo-te a vida a pano. Não
agradeces, julgas a excomunhão de cheiro ruim um apêndice da minha natureza. Na tua vida
apareço de pano na mão e garrafão de lixívia a tiracolo e tão depressa estou a
abrir janelas como a invadir cantos escusos onde o pó coagula. Talvez eu seja
só ou sobretudo isso: duas mãos em demanda. Passam anos e o ritual repete-se:
primeiro a limpeza, depois a mudança que me senta à máquina de costura a fingir
que sei coser. E depois melhoras e enxotas-me, queres-me de visita como dantes,
sem interferências no fogão ou rebuliço nos pertences. As minhas visitas espaçam e, aos poucos, a
casa vai encostando a quem foi. Até serem uma. Então, as minhas mãos, doídas
dos cheiros que te rodeiam, porfiam de novo em afugentá-los. Qual de nós desiste
primeiro deste ciclo, não sabemos. Mas gastamo-nos em cada vez. A consumição é
a paga de viver.
Desembaraço-me
em espaços comuns, mas hesito no quarto, abro-te armários a medo, como quem
devassa. Calças, pijamas, camisas, casacos.
Tudo te espera. No incómodo das minhas mãos, a recuarem do meu olhar.
Compras roupa para 200 anos, tu. Mas o que me salta ao caminho, a chamar-me lá
dos fundos, é o saco preto da mãe. Empoeirado e fora de tom no reino masculino.
Pobre saco de plástico, imitação da mala que a vida não me deixou dar.
Abro-o. Os postais de aniversário e dia da mãe que enviei; e até alguns que lhe
comprei por achá-los bonitos. As cartas que continuei a escrever e violaste sem cerimónia e, quem sabe, só te entristeceram. Sento-me devagar a
sentir-lhes o gosto de saudade naif e ridícula. A um sopro de vento, um cicio displicente
das tuas camisas que oscilam de manga vincada, não leias; as calças de
ganga a azular, passou; os casacos à beira de uso, deita fora; as naftalinas
pérfidas, aterra, some com isso tudo. E as minhas mãos ásperas de cloro, correndo o papel onde outras mãos pousaram, olhos atentos a letras que já
foram lidas, a mente a mostrar-me pálpebras de larga comoção. Então, quase
contente, fito o interior do armário e respondo: tudo foi tão pouco! Mas valeu
a pena, sim.
Depois, retiro e guardo o tesouro que me pertence. E quando o saco retoma lugar, a roupa
perfila em silêncio de geometria abstracta. Já a encostar a porta, mesmo à
beirinha da fechadura, um cinto dependurado no varão abana a fivela e murmura
aliviado, talvez tenhas razão.