terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Minha Irmã Directora

Gosto de escrever cartas. Escrevo-as em número razoável, se contar com os mails. Sim. Os mails são cartas sem necessidade de selo ou porte. Invariavelmente, sem resposta. Minto. Há uma pessoa, uma única, que sempre me responde. Mais tarde ou mais cedo, responde. A uma missiva mais instante, os meus amigos urgem num telefonema. Ou enviam-me pps palermas que caem virgens no lixo do mail. As pessoas não têm tempo para cartas nem mails compridos; tenho por vezes a incómoda impressão de que impeço, aborreço. E nem sei o que pensam na hora em que os lêem, já que pareço ser a única pessoa a escrever-lhes. Por isso, é verdade, encolho a escrita. Começo e logo desanimo, só vou fazer perder tempo, não origino conversas; os meus amigos - que são poucos -  têm muito que fazer com os seus próprios estados de alma e de vida, que pelo visto não querem ou não precisam repartir comigo. Devo ser uma maçada de, lá vem ela com as charadas do costume. E desisto.
Sempre escrevi para os vivos. Porém, hoje, é oficial, inicio a correspondência para o além; um you have got mail da terra ao céu. O que quer que isso seja. Não vai haver grande diferença nas respostas. Se os garotos escrevem ao Pai Natal e endereçam à Lapónia ou ao Pólo Norte por inteiro, e ele lê, por que  estúpida razão, se eu coloque uma correspondência num blogue que até é meu, eles que tudo podem, não hão-de lê-la?! E se não? Bom, fica a intenção.
Para ti, minha irmã directora
 (minha sim, que não foste igual com ninguém mais, ou pensas que não sei?:)
Quando jovem inconciente - já a trabalhar -  marcava no calendário a data da visita. E aguardava os dias um a um, a descontar. Escrevia-te a perguntar se dava jeito. E, depois da confirmação, podiam chover picaretas que ia na mesma. Não sei se o céu não me protegia, se a protecção era excessiva, mas quase sempre chovia torrencialmente, lembras-te? Era uma chuva indiferente às estações. Eu ia para ti com coração de noivar. Isso mesmo. Fazia um caminho muito longo, desde a outra margem. E o enleio de alma, vá-se lá saber porquê, começava no comboio do Cais do Sodré, os olhos extasiados na paisagem com abertas de mar; ou preocupados a discernir na lonjura o Forte de Caxias tão sozinho no meio da água. Não sei se pelos prisioneiros se por ele só, mas impressionam-me aquelas pedras de chão sempre batido de ondas e não me lembro de ter desejado a solidão do farol. Mas ontem. No mesmo comboio ou noutro semelhante. Faltou o coração aos pulos. Levava prendas e nenhuma para ti. Por isso elas normais, agachadas dentro de embrulhos desvitalizados. As tuas prendas acicatavam-me desde a compra (quantas vezes as desembrulhava antes de dar-tas!). Gastava a viagem a palpá-las, no medo que desaparecessem, imaginando o cuidado dos teus dedos de fuso a desprender a fita-cola para não rasgar, o oval puro das unhas sempre arroxeado; e depois o teu sorriso desvanecido mesmo se te oferecia um sem préstimo – não tenho muito jeito para escolher prendas; desculpa as vezes de parvoíce feita de amor esquecido que eras freira com hábito. Quanta vez te disse que gostaria de tratar-te na doença, ter uma cama onde te deitasses em minha casa. Desculpa, o meu coração queria mesmo era fazer-te minha. E não podia. Eras tão fiel à tua causa - a congregação - e ao teu coração doente que não contaste nem quando sofreste as minhas acusações injustas. Engoliste em seco, disseste que não podias. E não parei de te acusar. Até chorei, lembras-te? Então puxaste do teu imaculado lencinho de cambraia com perfume de alfazema e secaste-me as lágrimas, não chores filha, eu não podia, acredita. E eu puxei dos meus lenços de papel e assoei-me com estrondo.  E rimo-nos de tanto ranho.
Quando ia para ti, a cada estação, o coração acelerava. Descia no Monte Estoril e tinha de ficar um bocadinho a olhar o mar sem saber o que via, que não aguentava o descompasso e não seria capaz da subida. Saía da estação deserta, desligada de por onde seguir. Subia ao acaso, cruzando com turistas de mochila e mãos nos bolsos que me desconcertavam ainda mais; eu suava em bica fosse verão ou inverno, o coração a querer saltar não sei para onde, e eles, que eram estrangeiros, passeavam-se em descontracção e hábito. O Monte tinha lojinhas pequenas, mercearias de aldeia repletas de iguarias desconhecidas; entrava numa e perguntava pela tua rua. E ia subindo numa agonia alegre, a antever o teu sorriso. Várias vezes trovejou, o vento a roubar-me o guarda chuva – há-de ter sido lindo eu a correr atrás dele. Mas, chovesse ou não, quando chegava à tua porta tinha de parar de novo. A acalmar. Depois tocava e vinhas tu a sorrir, num dia destes, só podias ser tu, outra pessoa desistia. E eu quase ofendia com a tua suposição de que pudesse falhar-te um encontro. Abraçavas-me, tentavas alguma ordem no desalinho dos cabelos e palpavas-me os braços a avaliar a molha. E isso me bastava para recompensar todos os meses em que te não via e pouco me escrevias. Então, levavas-me à casa de banho para me secar e pentear. Mas eu não uso pentes e ficava como no colégio a olhar-me e a pensar que estava normal (eu que nunca o fui). Em seguida, pegavas-me pelo cotovelo e íamos as duas para uma salinha onde me deixavas a olhar para madres de princípio de século, muito compostas no vertical das paredes. Regressavas com um tabuleiro de coisas boas que eu devorava entremeando tentativas de contar tudo em afogadilho. Entretanto, ralhavas-me com brandura: que não devia andar sempre de calças, um dia ia a uma exposição com o meu marido, não podia ir assim vestida…e eu perguntava de boca cheia, em estranheza, uma exposição?! De quê? E pensava pra mim que estavas fora do mundo, eu não iria nunca a uma exposição. Se fosse, levaria calças de certeza. Hoje, penso que me sonhavas coisas boas. Que nunca contaste.
Obrigada por me leres a tua vida toda. Por me receberes como se uma mãe – sei, sou tua filha de coração. Por escutares todo o meu arrazoado palavroso. Por ouvires as minhas queixas furiosas. Por teres achado bonito o meu vestido de noiva que fui mostrar-te sem aviso, num dia de tempestade e vendaval e levei dentro de um saco que nem era plástico; tu a correres-lhe a simplicidade, é o teu estilo. Obrigada por me deixares estudar grátis no teu colégio. Por me teres dado guarida em Santo André quando ninguém me queria em nenhum lugar. Por me teres cedido o teu quarto quando não conseguia dormir com as outras estudantes. Por me teres dado emprego quando o médico me recusou o atestado, este ano ainda não pode trabalhar. Por, logo a seguir a esta notícia triste, me teres levado contigo a Paranhos da Beira onde me deixaste em gozo de férias. Como, então, sendo já madre, me ajudaste!  Não tem fim o meu obrigada, tenho a certeza que me fizeste grandemente como sou hoje.
Em quem é um não há separação. Mas bolas, que dói na mesma.

PS: E olha, afinal enganei-me; já fui a n exposições; quase sempre de calças:)
E, por uma boa causa, ontem fiz o teu caminho verde que tinha prometido a mim mesma não repetir.  Não foi o mesmo caminho. Nem a casa era a mesma. Apenas estavam no mesmo sítio.


Quem me dera que sejas feliz na eternidade.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

As Horas do Natal

Primeiro foi uma noite em que adormeci a desoras, um comprimido a entrecortar com rangidos inquietos de vida a esgarnar a contragosto. E o corpo a deslembrar. As mãos, se calha, já nem as tinha (para onde emigra o corpo se dormimos, que deixa de pesar-nos), havia um ligeiro de pés no fundo muito ao fundo, de certeza a léguas de mim, o pescoço na almofada de mau estar, e mais nada. Imerso num certo torpor, o meu pensamento insistia naquele som cavo a tracejado, “tão doloroso, parece um tecido a rasgar contra vontade; deve ser impressão minha, melhor dormir”. E, no que me pareceu o momento seguinte, os comprimidos são assim, engolem a noite num ai, logo a vida impôs o seu estar matinal: agreste; a luz a atravessar-nos qual lâmpada progressiva, pessoas estremunhadas a ganhar velocidade e a recuperarem-se. Eu, contente de mim inteira, a verificar-me no global, ah, está cá tudo, as mãos, as pernas, o tronco. Da janela, a estrada ganhava acelerações de véspera de Natal, compradores de última hora em busca de presentes retardatários e pormenores em falta na ceia. Entretanto, o ramo tombou quase em silêncio, num amortecido de insuspeito desgosto. Na árvore, a chuva escorria ao longo do rasgão de nudez clara. E havia uma mole de verdura vicejante caída sem arte sobre a rua, a impedir-me o carro. E a chuva. E o vento. A árvore órfã de si, desatenta da ferida intestina e sem curativo, em cuidados com a pernada, e agora? Mas o ramo inerte, trambolho ainda em uso de cordão umbelical. A precisar ser retirado do caminho. A minha estupefacção quando, “mãe anda aqui ver uma coisa”, e o volume de metade da árvore no chão. E fizeram-me sentido os gemidos nocturnos.
            Depois veio o tempo dos doces em ponto, dos bolos fofos, das tartes vistosas e de apetite. Chegou a tarde. E, a mesa dos doces, repleta e esquecida, deu lugar a tempero de carnes e tratamentos de bacalhau e entradas. Horas de fogão. Ele exausto de calor e combustão, zonzo de aromas e sabores, enfadado de pingas, quando é que isto acaba. E a chuva lá fora. Pertinaz. Impeditiva. Eu ao fogão com a memória, as visitas sem chegar, à espera de uma aberta no temporal. Um aviso a minha mãe, cuidado não escorregue, o chão da cozinha está húmido; vá, sente-se aqui neste banquinho alto a fazer-me companhia,  converse um bocadinho comigo. E ela sentou-se de frente para a prateleira onde tenho o livro das receitas e, num suspiro desvanecido, ainda o tens. E eu só um sorriso para essa data presente. E rematou, não cheguei a escrever nada, filha. Eu concentrada, a acertar o lume da cabidela, pois foi, mãe, mas as duas o sabíamos; quando lho dei a mãe, fica para ti, filha; se a mãe puder, começa-o; passa-te uma receita ou duas - virei-me para ela -. E as duas sabíamos que isso não podia haver. A minha mãe meia triste, não te ensinei a cozinhar…Abracei-a, o mais difícil não foi isso, mãe. E ela numa fundura de olhos, eu sei filha, sei tudo.
E ficámos por ali conversando. De vez em quando, os amores perfeitos amarelos, fustigados por vento e chuva, temos a cabeça feita em água, estamos aqui estamos a desistir da floreira e partimos para destino incerto. E eu com a colher de pau na mão, não, não; não me façam isso, vocês são a minha alegria de subir a persiana. A minha mãe atrás de mim a repará-los, sais à tua avó, o que ela gostava de flores.
E quando a família chegou a minha mãe, vou ali. E ficou um cheirinho de violetas.
Então, eu para o fogão: pronto, acabámos; estás um bocadinho velhote, meio entupido, mas não te portaste mal de todo. –  desapertando o nó do avental -  Não te chateio mais.
E fui para a sala ser dona de casa e participar da consoada.
Tarde da noite, recebi um livrito de Herberto Helder porque os filhos me sabem mais ou menos. E ficámos os três à lareira, a falar de nada, até ser tão tarde que a dor de cabeça me insistiu e quebrou. Contudo, o pequeno almoço apanhou ainda a noite escura. Matutina, fui ler a Visão da semana passada de que o tricot me desviara. E alegrou-me que Lobo Antunes uma entrevista tão bonita como só ele.
Que me deu algum alento nesta escuridão de natal. Quando um escritor pensa como nós, não sei porquê, mas isso faz-nos sentir melhor. Vou guardá-la como a outras. Mesmo que daqui a uns anos não saiba onde. Ou já depois de amanhã.
Permito-me alguns reparos seus que só são seus porque ele os disse; eu e talvez tantos outros, comungamos-lhe o pensamento:
A gente escreve para gostarem de nós.
A amizade é como o amor, a gente encontra uma pessoa e fica amigo de infância.
A amizade que mais prezo nele, a de Cardoso Pires:
Cardoso Pires : “eu sei que sendo Pires não posso ser bom escritor mas tu és e gosto muito de ti.”
António Lobo Antunes: E foi assim que ficámos amigos de infância. É assim: instantâneo e absoluto como o amor. (…) o amor é tanto, que a gente fica sufocada de paixão e nem pensa em sexo, ficamos a olhar apenas, só o privilégio de poder estar a olhar…e existe aquela sensação de que se tocar vou estragar, porque posso fazer ali uma nódoa, um amolgão, qualquer coisa…Ultimamente acho que é uma honra tão grande estar vivo…E um acaso.

E é mesmo um feliz acaso estar vivo. Uma honra.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Amadeo - Conferência no CAM

A Gulbenkian é um lugar onde a alma ajoelha em gratidão. Pelo descanso auditivo da água, aqui e ali, a correr de manso, rãs que coaxam, vida animal com espaço; pela beleza onde os olhos se espreguiçam; pelos espectáculos e actividades em cartaz.
Gosto-lhe das raízes de árvore, braços legítimos agarrados ao lugar; dos batráquios nos lagos a olhar-nos desorbitados e fixos, imersos na recôndita paranoia que os isola; dos recantos clorofílicos e penumbrosos onde namorados inodoros se afligem de paixão. E tenho uma pena redonda de nunca ali os meus passos sem expressão, sapatos a deambular em cegueira completa de quarteto, avanços e retrocessos, hesitações e paragens; e tudo isto só deles, que o não saberia eu. Mas sei. Sei a medida da força com que piso; e, na Gulbenkian, é leve. Se trabalhasse ali próximo, faria grupo com quem está de tupperware em punho, a mastigar impressivos de relva; rodeada de flores, insectos e passantes, esquece uma pessoa a maldade ensanduichada do almoço.
Por todas estas razões e mais outras não explicáveis, desloco-me por vezes à Gulbenkian. Para a não esquecer, creio. Cheia de desculpas palermas e culturais. E desta vez foi a Filosofia. Mesmo. A despeito da minha latente e até insistente ignorância, a Filosofia move-me. Estava a conferência a que assisti ligada ao ciclo de Amadeo Souza Cardoso, em curso ao longo do mês de Novembro, no Centro de Arte Moderna, vulgo CAM. Pensei que iria ouvir uma relação entre a voz da filosofia  e directrizes do próprio Amadeo. E talvez. Digo que talvez porque comecei pela resmunguice – pagara 5€ para assistir; e porque a oradora Filomena Molder faltou, os bilhetes foram grátis. Ora bem. Não gostei e resmunguei com toda gente que encontrei no caminho da minha cadeira. E depois, o responsável, (com olhos de fuzilar pelintras como eu), que podíamos, querendo, reaver a verba. Fiquei contente com a decisão, mas não tive coragem de ir pedir o reembolso. Sou bem mais descorajosa do que se imagina. Ou eu me imagino. Pensei que parecesse mal a Amadeo, pintor incomparavelmente valioso.
Comecei por me sentar um pouco atrás por não apreciar muito o ambiente humano. Deve ser preconceito, mas pessoas demasiado alinhadas bolem-me com o ego. A bem falar, deve ser com a inteira estrutura do psiquismo e arredores. Então, fiquei de frente para um quadro de Amadeo que aprecio e esqueci-me do resto; fluí. Só que, a despeito de tudo, havia mesmo uma conferência e um orador. Inglês. Sem tradução simultânea. A erguer pontes entre Bergson e a sua durée (duração) e o cubismo (isto entendi). Que ilustrou com quadros cubistas que eu conhecia de outros lugares e museus; e até das aulas de Rui Mário Gonçalves. Sem referências ou alguma semelhança ao cromático exaustivo de Amadeo, o seu delírio de formas, a sua insinuante e peculiar pintura de exuberância que desbunda das telas. Lendo, o senhor debitou por certo parte de uma tese de doutoramento – professor de estética numa universidade inglesa – sem preocupação em integrar-se onde quer que fosse. Estava eu pensando em lhe virar costas quando a meu lado abanca uma dama abonada em formas e autoridade, puxa do telemóvel ou correspondente – já não domino competentemente estas modernices tal o súbito de mudanças – e gasta todo o tempo a teclar e falar com alguém; se falava, afastava-se um pouco, mas continuava audível. Dominaria fluentemente o inglês, mas deve ter entendido menos que eu da conferência.
Porém, o melhor estava para acontecer. O inglês terminou a comunicação e estaria talvez desejoso de ir embora – eu estava – mas levantam-se três cachopas, todas em ponto de macramé, que é como quem diz, duas delas sem um cabelo fora de sítio, um vinco na roupa, um pelo de sobrancelha a desvirar. E foram acompanhar o inglês, cheias de pose. Apresentadas na mesa, pensei, fico mais um pouco, agora já entendo tudo. Mas qual quê! As damas falaram sempre em inglês e colocaram dúvidas em e ao inglês; a que ele retorquia muito honrado. E, a páginas tantas, farta da minha colega e dos seus tiques de comunicação, virei costas àquilo (pois é, pura indelicadeza) e fui salientemente olhar os quadros e os desenhos de Amadeo. Convicta que ele não gostaria de assistir uma conferência onde um trio aerodinâmico tentava a todo o custo que o súbdito de sua majestade o referisse. Pintor  que, por certo, desconhecia e não lhe habitara a tese. E porque os ingleses não são bem o que se pensa deles e é bem possível que não tenha perdido tempo com um pintor português acerca do qual haveria uma pessoa para discorrer (seria isso que  cabia a Filomena Molder?). Patético. O fulano não sabia tanto como eu que sou leiga em pintura. Mas, nessa altura, já eu  saltitava  pelos desenhos de um Amadeo desconhecido; a apreciar por exemplo um que se chamava “O descanso do cervo” e tinha o que deve ser um cervo a descansar, deitadinho, mas com o cavaleiro montado. Ora bolas para o descanso do cervo, pensei. Mas ele com olhos contentes, e por isso passei à frente; se queria descansar carregado…; e fiquei pregada na pintura da guitarra. Não sei que iria fazer ali Filomena Molder. Pergunto-me se seria capaz de dar conta do fascínio da cor.

Depois de um chocolate quente, regressei contente de Amadeo. E de termos estado um bocadinho à conversa. Nós dois. Por cinco euros. 

PS: ocorreu-me, entretanto, que as três pastorinhas da mesa estariam quem sabe mais aflitas que eu. E daí a força na imagem. Que os ademanes e o brilho dos cabelos e do batom escondia o embaraço de ter de preencher tempo. Coisas assim. Que não melhoram nada.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves

Somos com as coisas como com as pessoas, se não haja apresentação, passam por nós ou nós por elas sem quid, jazem submersas no inomeado, essa panóplia nebulosa de mundo que existe em nós potencialmente, fora da actualização  efectiva do pensamento. Um possível. Por estes dias, actualizei aquela casa de esquina, números 6 a 8 da Rua 5 de Outubro, mesmo por detrás da maternidade Alfredo da Costa. Posso ter ali passado antes, mas não me existia. Retirei-a do mar potencial onde boiava cinzentamente. E agora existe-me a esquina e cada cotovelo da casa, existe-me o proprietário e seu gosto sóbrio, existem-me os vitrais e sua beleza de borboleta da primavera, cativeiro de olhos e alma que ali sonharam vezes inúmeras. A Arte Nova tem jeito de asa, qualquer coisa de vôo no estilizado das curvas, na atenção às minudências, das varandas de sacada aos frisos de azulejo, da entrada romântica à dinâmica do sobrado interior, do mar de luz do atelier planeado por Norte Júnior e primeiro prémio Valmor, ao magro corredor  onde os modelos se trocavam.
Entra-se com o maior respeito numa casa que foi habitada e vivida. Subidos os poucos degraus da entrada traseira, acorre-nos quem o teria feito mais vezes, criadas de dentro e de fora, governantas, comerciantes e moços de entrega…. lufa-lufa de trabalho. E, na entrada principal, mais de apetite e romance, senhores enluvados a passear conforto em seus abafos de inverno e sapatos de pele. Ou na pureza clara dos linhos de estio, o sombreado agradável da palhinha italiana a cair sobre o rosto das damas a que as sedas parisienses e o ligeiro da brisa desvelam curvas virtudes. Não tive notícia acerca de algum casamento de Anastácio, antes me pareceu um celibatário com boa mania de colecionar obras de arte. Médico oftalmologista. Abastado. Viajado e erudito. Bonito e de refinado gosto.
Mas a casa sem raiz de celibato. Mesmo que de refinado gosto. A casa em sua pose feminina, num desmentido de suave clareza. Olhe-se do exterior ou do interior e tudo nela são pormenores de família com seus amores que crescem e minguam ao sabor da vida, um quê de permanente e inamovível no ar. E, a sobrevoar o bom gosto, palpa-se a preocupação com a luz no enquadramento e disposição de divisões e janelas, sempre no rasto do sol. Perguntei o que depois fui descobrindo na viagem à sua história: foi mandada construir pelo pintor José Malhoa que participou na feitura com sugestões e pedidos e ali viveu até à morte da mulher. Depois disso, a fazer-nos lembrar aquele poema de Pessoa acerca de uma boneca que teima em não  morrer com a menina e espreita nos rebordos das gavetas fechadas, desgostoso, não suportando continuar a habitá-la, Malhoa não arrisca e coloca-a em venda. Dois anos depois da primeira venda foi adquirida pelo coleccionador Anastácio que a habitou até à morte e fez do atelier do pintor o seu museu privado. Admite-se que o intuito de a doar ao estado português, na condição de casa-museu, já então lhe germinasse o espírito.
E assim, passear na casa é viajar por dentro do gosto de Malhoa e de Anastácio. Ambos apurados. Mas o meu pendor para casas e sua inalienável unicidade, prefere Malhoa, António Ramalho e o arquitecto Norte Júnior, que a criaram e transformaram algo tão prosaico como um lugar de habitação, num nicho de beleza. A Casa-Malhoa, ainda que despida, seria linda. Pena não estar conservada como merece. Pena que Portugal seja tão mau tratador do seu património. As casas são femininas, frágeis mesmo se aparentem robustez, em luta até final pela identidade. E pouco lhes basta para sorrirem na paisagem.
A que árduos trabalhos nos entregamos que tanto nos desviam do passado que ensina? A que despautérios cedemos quando negligenciamos o que é de respeito? A casa está ali. Ainda airosa de cintura, mas já de chinelo no pé, sem manto ou véu, os laços do vestido secos de dar dó, uma seiva rosada ainda a esvair-se do pulso breve. Tão bonita em sofrimento grácil! Tão bonita que apetece uma noite carregá-la, despi-la de velharias, dar-lhe banho, alimentá-la. E ir de manhã, pelo cedo dos galos que já não cantam, a replantá-la em seu esplendor, na mesma curva de estrada.
Mas Anastácio lá está na sala museu, pintado por Malhoa, plácido e tranquilo olhar verde que reina sobre a paisagem. Junto às suas pinturas, Silva Porto - o único português que encontrei no Louvre -, Columbano, António Ramalho e mais pintores naturalistas. E estão parte dos móveis que adquiriu, das porcelanas que carregou de variados lugares, os contadores, chaises- longues, oratórios…

Em seu romantismo de bolor e tempo, a casa recebe todos . Que, à superfície de seus segredos e mistérios, se julgam substância sua. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Setúbal

Setúbal tem a patine das cidades que envelhecem. Os anos e o pouco trato despiram-na de estolas e glamour, impediram-lhe luzes de festa. Perdeu a coqueterie dos enfeites e pouco nela lembra o êxtase dos tempos em que ressurgiu em juventude esfusiante, sentada em seu dossel de mar e serra. Pronta para sair em donaire e passeio pela Luísa Toddy, com seus recantos de habittués, onde o batom e a laca de damas friorentas pontuavam com estudantes e intelectuais em mesas de obrigação, sem mistura. O leve debicar delas, a bordejar vermelhos nas chávenas, alternava com as espartanas bicas deles e o longo cruzar da ganga em pernas de invasão. À proximidade, os poros arrepiavam por detrás da transparência das meias, em veemências de desejo, deixarmo-nos tocar pelo nervoso da tíbia. E as damas escandalizadas por fora, a desviar-lhes a rota, que é isso, são comunistas, não têm maneiras. E saiam-lhes conversas baixas achegadas às golas do casaco, enquanto as pernas um desvio, a cruzar o lado inverso, a saia a subir um nadinha sem que uma mão, o ínfimo de um gesto, a descê-la. Mas os olhos. Os olhos que eram farpas,  aquela fina ainda não tirou os olhos desta mesa. Devemos ser um grande filme, é todos os dias o mesmo. E as namoradas de longos cabelos e cara lavada viravam-se nas cadeiras e olhavam a sua serenidade de senhoras bem-postas, mulheres de médicos, empresários, gente que tinha de seu. E rápido desistiam. Era outro mundo, paralelo ao das pequenas Evas proletárias, sem tinta ou creme.
Na aragem do dia, a luz clara do Outono adoçava a cidade, tornava-a familiar e saudosa, ensimesmada em seus vagares quotidianos. Setúbal entorpeceu, pensou. Há um desânimo que lhe corre pelas ruas, um cheiro de velhice conformada que emana dos canteiros de flores, uma tristeza vivaz no corpo das gentes. Deu mais uns passos, hesitou em tomar a rua do Central. Que povo o preenchia agora? Haveria ainda em Setúbal o apego familiar aos cafés, as mesas cativas de grupos, que se procuravam da entrada a ver quem já tinha chegado. Quantos encontros combinados ali, comícios e estratégias discutidos à exaustão, a Prazeres impaciente a bater os protectores das botas caneleiras no lajedo do chão até que o Abílio, é pá, cala-te com isso, está-me a entrar o barulho na mona, ainda sonho com soldados atrás de mim. Onde andaria essa quase menina que o esperava meio adormecida, a aguentar a nuvem de tabaco e todos os sonhos de revolução que tinham na cabeça; que saía para o nevoeiro a enterrar a boina basca e, queres vir lá a casa? E ele quase sempre a segui-la, na antevisão do barulho dos protectores se ajoelhava no ritual de lhe retirar as botas, embevecido nos pezitos minúsculos, a beijar tornozelos miúdos enquanto uns soquetes de criança eram afastados mansamente. E dos mistérios do amor surgia um si mesmo terno e desconhecido e uma Prazeres inédita.
Animado de recordações, o corpo alongou-se em decisão, reivindicou, "vou visitá-lo. Quero ver o ambiente que tem agora, o que lhe fez o tempo". E meteu rua abaixo até ao Central, a contar as lojas que sobreviviam. Mas a rua desintegrara. No lugar da enorme drogaria, a mais conhecida da cidade e com um ror de empregados, onde havia tudo para que as outras não tinham resposta, impava um pronto-a-vestir barato, e lufadas de gente num entra e sai, mais a  fazer contas à vida que a comprar; à porta, uma carrinha  descarregava manufacturas em pressas de tempo é dinheiro. E, sem querer, olhando uma das montras, o brilho tricotado de uma blusa verde alface por quinze euros esmagou-o. Por detrás dela, perspectivou a quase menina que a tricotara em rapidez, um vaivém de dedinhos pequenos e ágeis no manejo das agulhas. Hipocrisia de alimentar estados de miséria maior do que se pode dizer ou magicar. Seria tailandesa, chinesa, o que fosse. Exploração. Que nojo, pensou, viverem os nossos preços baixos à borla deste submundo que engordamos.
 Mais à frente, um pronto a comer no lugar da casa de mobílias onde ele e a Prazeres iam sentar-se nos sofás em dias em que fingiam de casal interessado em compras. Andou uns metros e só o supermercado resistia às investidas do fast e do prêt-a-porter, numa concorrência de saco plástico e promoções que decerto lhe garantiram a longevidade.
A meio da rua, não resistiu e desviou a marcha. Meteu pela perpendicular onde uma noite se atrevera atrás da dama do Central. A de olhos garços. Quem sabe a vivenda ainda ali. Quem sabe, com sorte, o longo muro de grades em lança onde se encostara num repente. Atravessou a rua para o lado da vivenda, andou-a até meio e logo um sossego se sentou. Como naquela noite. As habitações lá estavam, namoradas pelas mesmas tílias que agora penduravam mais baixo, a tocá-las de manso e que de mais alto as penumbravam. E uma mão de saudade ergueu-se involuntária até ao verde das grades, os dedos sobre a friúra do ferro. A mulher materializada, os olhos sem espanto, a boca sem palavras, um abraço de enfim. O corpo sob o casaco a responder-lhe ao beijo que nunca foi capaz de lembrar-se como ou quem começou. Ele com a sensação de clausura consentida, o resto da rua excluído, a sentir nas costas o redondo dos ferros e no sexo a premência do desejo; o corpo dela a tremer, as exuberâncias ansiosas da pele a corpuscular. E depois o breve desfalecimento das pernas, o corpo a escorregar ligeirezas e a sua mão a afirmar-se-lhe na cintura, a segurá-la. Talvez que um encantamento de breves minutos. Os dedos frios sobre os seus olhos, um pedido murmurado, fecha, deixa que tos beije e a minha boca percorra o teu modo de ver mundo, que o melhor estará sempre dentro de ti. E ele obediente. Ela a esquadrinhar-lhe o rosto, lábio a lábio, em vagares que não eram de rua, a saber-lhe o gosto da pele, a demorar-se em paciências ternas sobre pálpebras e pestanas, um dedo a acompanhar-lhe a linha da sobrancelha. E nele foi subindo um prazer diferente, deu por si sem a Prazeres, a pensar, é esta. Mas quando entreabriu os olhos o portão já batia e só um vulto escuro a perder-se entre as árvores.
Andou até à vivenda. A mesma ainda. Talvez com pintura e portadas novas. Com crianças, que um baloiço e um triciclo entre os canteiros. Anos atrás, enquanto se arrumava de novo dentro do corpo, que isto do amor é de se deixar de ser quem se é, espreitara o hermetismo das janelas, a sua indiferença cerrada. E nem uma fresta de luz a esperançá-lo. Quanto tempo levara depois a ganhar a coragem de bater? Talvez uma semana a andar por ali feito vagabundo, atordoado consigo, zangado com o insólito eclipse da mulher, a repisar para si, "não pode ser, fogos que se acendem têm de apagar-se". Os carros da polícia a passarem vagarosos e o pedido de documentos, desanda rapaz que isto é propriedade privada, tudo vivendas particulares. E quando finalmente se reuniu em determinação, uma empregada entrada em anos, a arrastar chinelos, o senhor embaixador só veio passar férias, a senhora não conhecia Setúbal. Saíram na semana passada. Vou ter com eles mal esteja tudo nas malas - e num sorriso só de dentes -, eu fico sempre mais uns dias para levar a bagagem e arrumar. E ele parvo, a olhar benigno e invejoso quem podia voltar a vê-la, ser quotidiano com ela, assistir-lhe manhãs de birra ensonada, noites sem fim, dias monótonos e de festa.
Sorriu. Uma vivenda tão bonita e só lhe gostava um bocadinho de muro. E um pensamento repetido, cumulativo, a juventude é vingativa. E como se arrependera  dessa vingança de soberba egocêntrica. Não lhe quisera saber o nome. Não a procurou. Apagou-a. E ela, a despeito do casamento, de namoros, de filhos, mortes e casualidades, é de natureza contínua. Regressa.
 Inverteu a marcha. Voltou à rua do Central, a completar as decisões da memória, "tenho de ir ver o Sado. Depois do Central, só o Sado". Passou a rodoviária, ainda no seu posto, a dar por outro nome. Espreitou e um tudo nada de diferença. O mesmo cheiro repelente de dióxido de carbono à mistura com gasóleo queimado, as mesmas pessoas em pressas para onde, os mesmos transeuntes que são apenas olhantes de quem tem vida viajante. E depois, no lugar do Central, um banco de moderna instalação. E ele parado, a decepção a prender-lhe as pernas, sem a sua mesa, a imagem da Prazeres e do Abílio, sem a dama tão bonita e diferente das demais. Nada.

E foi cumprimentar o Sado.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Silvas

(continuação)
Servindo-se quase sempre das mãos ágeis do ti Lourenço, o tempo e o progresso finaram os mufedos de silvas. O ti Lourenço reinava no monte do cabeço onde nenhuma mulher ousava, excepto as nativas. Era pessoa estimada na aldeia por teres e haveres, já governo dos filhos – cada um herdara foro e casa. Invariável na sua camisa branca sem um vinco, o proprietário das casas do cabeço era parco em palavras e jamais lhe ouviram um grito. Adriana aprendera a reconhecê-lo por esses sinais inconfundíveis, o bigode e cabelo brancos a rimarem com a alvura da camisa; o erecto do corpo que passara os oitenta; a gadanha às costas em pose de rei que segura o ceptro; a passada larga e certa, segura. Gadanheiro de mão cheia, conhecia todos os pastos e buracos ou saliências do chão. Era o ancião da aldeia e recebia dos mais, respeito natural. Vivia segundo as suas próprias leis, sem as enaltecer ou exibir, mas não renunciando. E fazia orelha mouca à esporádica insistência de padres e freiras que, desafiando heresias, subiam a íngreme ladeira para lhe apregoarem as vitualhas da redenção. As respostas que então lhe ocorriam passavam de boca em boca e geraram a admiração contrita dos conterrâneos, que intrigavam na evidência do original.
O Ti Lourenço era o único velho que nunca foi chamado pela idade e também o único que sabia ler e escrever, a declarar-se, olhos nos olhos com a religião, maçónico e anticlerical. A estas palavras, as irmãzinhas da caridade que pediam para as missões, desciam a ladeira a correr como se peste no monte e nem chegavam a saber dos seus quereres solidários. Cá em baixo, ainda a ofegar, faziam um sinal da cruz incompleto e declaravam aos passantes que franziam o sobrolho a tais arrebatamentos em seres de calma e cinzenta natureza, aquela alma está perdida, é preciso rezar por ele, só Deus pode fazer o milagre. E assim se demitiam de salvar uma ovelha. Toda a aldeia conhecia as duas palavras mágicas do Ti Lourenço e, apesar da ignorância significante, os aldeões eram unânimes a admitir que o velho tratava a vida por tu. Sabia muito, diziam.
 Adriana memorizara-lhe os hábitos. Vestia sempre as mesmas cores, não se apresentava com a barba por fazer, pouco frequentava a taberna e nunca ali se embebedou. Manhã cedo, a mesma hora o encontrava já na Nacional, gadanha ao ombro, a ir pela taberna para um cálice de aguardente. Adriana sabia que ele entrava e, olha a minha vizinha! Vá, dá cá o mata-bicho ao vizinho. Bebia de um gole, deixava o dinheiro à conta sobre o balcão e seguia caminho, a parecer um cowboy sem pistola ou cavalo. Ia para a batalha com as silvas, atravessava o seu deserto e os desfiladeiros vegetais onde não se podia cair ou sequer desfalecer. Que não incluíam índios. Era só ele e a sua camisa incólume no meio dos silvados, a gadanha a um lado e a outro a abrir clareiras, a terra enrubescida, nua, em pelo, rasa do fato verde, num queixume miúdo, “tenho frio”. E os lagartos e cobras antes ocultos, obrigados a rastejar sobras de hibernação desconsolada, nasci neste lugar, tenho aqui a minha casa, onde é que vou agora. E a gadanha do Ti Lourenço suspensa, desço ou não? E, se a cobra das grandes, o velho partia-a em duas, não sofreu nada, foi de repente. E punha-a à beira de um caminho de sol, já não faz mal a ninguém, mas as cobras gostam de um  solinho.  A mesma sorte não tinham os lagartos, animais destituídos de arte, na bitola estética do Ti Lourenço. Aos lagartos o velho dava caça desabrida e remoçava em fúrias espadanadas da gadanha, se empreendiam de fugir para as partes intocadas do silvado. Morto o bicho, enterrava-o a constatar pesaroso e crítico, tão feio, bicho tão feio. E tudo isto Adriana acompanhou em algumas expedições pelas extremas das quintas. A mãe, não vás para longe, fica perto do Ti Lourenço. Sentava-se quieta num muro, a meia distância do silvado e com os pés levantados do chão, medrosa da floresta de animais que supunha debaixo das silvas. E só a voz lhe passeava as perguntas para cá e para lá. Maravilhava na elegância dos gestos de trabalho do Ti Lourenço, o redondo dos olhos a passear-lhe na harmonia da figura. Tantos bailarinos depois e nenhum aquele desempenado seco de tronco, nenhum no meio das silvas e dos agudos dos espinhos, em luta contra a loucura persistente e invasora da amoreira silvestre. O ti Lourenço era um herói. Que lhe dava mãos cheias de amoras, estas estão madurinhas, minha vizinha; vou deixar umas para a neta. E ela hipnotizada pela doçura negra a rebrilhar  que escorria da mão do velho para as suas, abertas em concha. A água crescia-lhe na boca a antecipar o momento de sentir a textura de pele fina que arredondava cetins em cada conjunto de frutos, quando ainda todo o sabor é futuro. Em seguida, a uma pressão ligeira da língua, o gosto doce e escuro da amora derramava-se, escorria sem intensidades particulares, talvez até um pouco insípido; apenas doce. Enquanto engolia o sumo, pensava, “como podem as silvas tão feias e espinhudas, tão de afastar gente e morder todos que se aproximem, alcançar tanto açúcar? Onde é que elas o encontram?” E perguntava. Mas o Ti Lourenço não respondia. Olhava-a e, és mais esperta que a minha neta, isso és. No fim do sumo havia pedacinhos, talvez  grainhas de amora, que disfarçava na boca e cuspia mal o velho virava costas; não queria ofender-lhe a boa vontade. E concluía para si, “não gosto nada dos ossos das amoras”.

E um dia o ti Lourenço, entre uma gadanhada e outra, lançou a novidade, há amoras que nascem nas árvores. Há árvores chamadas amoreiras que dão amoras muito melhores que estas. E ela pasmou com a natureza das coisas. (cont.)

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Silvas

No campo, nem tudo é bucólico. E menos no campo português dos anos cinquenta. Ali, as crianças aprendiam o mundo que julgavam rodeado dos silvados fechados e raivosos que em sonhos lhes rasgavam a pele. O campo transpirava silvas. Extremavam propriedades, zonas de ninguém - agora que penso nisso deviam ser de alguém – repletas de silvas a desmedir, ardilosas beiras de estrada a que os cantoneiros não davam fim, veredas que se cortavam sobre a sua exuberância e só atravessadas em companhia. Eram lugares de temor nocturno onde nem os mais afoitos passavam. O entusiasmo das silvas elevava-se a sepultar nele qualquer homem e, se alguém fosse apanhado na clareira de um silvado, não havia escapatória; em veredas que esventrassem silvados, só se fazia caminho de sol; e, de cada vez que nelas se entrava, tinham que se agarrar as silvas em jeito de pinça, cuidados de mãos a domá-las, enquanto o resto do corpo tentava a travessia. Junto à estrada nacional, no fim da descida, havia "na cova dos Silvas", um silvado célebre e denso, enovelado pela noite, onde a lua nova fazia aparecer lobisomens hirsutos e só antevistos. E, a coberto do anonimato, também se roubavam carteiras. Era uma zona dramática, lúgubre. A falta de iluminação eléctrica e um canavial do outro lado da estrada rematavam a claustrofobia do lugar e propiciavam maus encontros. Passei ali algumas noites a pedalar furiosamente na minha bicicleta sem luz, fugindo às multas e aos maus encontros, sem sequer me assomar à ideia o perigo que representava a minha circulação invisível.
Nesse tempo, as crianças brincavam todas juntas, sem a distinção entre brinquedos de rapaz ou rapariga. Faziam os brinquedos e brincavam. E conversavam. As brincadeiras propriamente ditas duravam quase sempre pouco tempo porque ele se consumia na construção do brinquedo, o que já era brincar.  Daí que as conversas encompridassem. E assim se ia aprendendo a espessura do tempo. Porém, era bom dar existência a alguma coisa: carros que logo deixavam cair as rodas, assobios que à primeira apitadela se rasgavam, matrafonas de trapo mal cosido que perdiam um membro no primeiro colo.
Por vezes, passeavam livres pelo campo, a despropósito. A vê-lo, no vagar de serem crianças. Mas vê-lo era subir a pinheiros, esperar o comboio junto à via férrea a que chamavam “a linha”, comer amoras, apanhar flores para enfiar nas linhas de alinhavar que as avós condescendiam em dar-lhes para fazer colares. E a noite surpreendia a aflição das mães, candeia na mão ou na beirinha da mesa a tirar picos de mãos e pés, que as silvas e os cardos não perdoam invasões. A tia Bernardina, mulher rija e de pouca meiguice, entornava o frasco do álcool puro sobre os arranhões ensanguentados, indiferente aos agudos da dôr, o que arde é que cura. Apesar dos ralhetes e dos tabefes, as primeiras amoras, ainda a encarnejar numa acidez de remédio que não presta, eram deles. E as segundas, a suplicar por entre o aguçado das silvas, olhos redondos escorrendo azeviche, colhe-me. E depois vinham apressados desarranjos intestinos, diarreias de, minha senhora ontem não pude vir à escola, doía-me a barriga.  Caganeira não era palavra de se dizer a uma professora.

Anos mais tarde, chegou a luz eléctrica. Ou só cresceram. Passavam nas silvas e os olhos mendigos, cativos das amoras, só uma. Mas eles crescidos, com pensamento feito, razoáveis, estão sujas de pó, fazem mal. (cont.) 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Dentro de Ti Ver o Mar

              Ainda há pessoas que não lêem?
            Em Portugal haverá poucas. A leitura deveio, em grande parte, digital. Não restrita a livros. Nem sobretudo. Mesmo a cusquice da net é escrita ou tem algumas palavras. E não é crível que, apesar da crise, haja assim tantos lares sem acesso à internet. Ou pelo menos sem um Pc. Não me querendo tomar como medida do universo, a minha opinião vale o que vale, não conheço nenhum jovem sem computador. E conheço bastantes. Poderá ter sido da campanha do e.escola ou de um movimento natural da sociedade, mas a cultura tornou-se, em grande parte, digital. A maioria dos nossos jovens usa o computador e gasta nele muito do seu tempo livre. E também os menos jovens, os maduros, os velhos, os assim-assim. E, ainda que em menor quantidade, também se escreve. Postar, comentar, deixar bocas venenosas, jocosas ou estereotipadas, sem pensar muito nem gastar o  tempo julgado urgente para buscar a novidade e a notícia. Contudo, penso que cultivamos a não notícia. Não me cabe meditar aqui sobre o possível português-achinesado das conversas, as faltas de concordância e etc. Mas, e apesar das múltiplas funções do Pc, a verdade é que ele tem um teclado a permitir-nos a comunicação escrita e o contacto com os outros. E que podemos utilizar tripla linguagem, audiovisual e a simbologia dos caracteres escritos.
            Portanto, parece-me natural que estes dados integrem o quotidiano dos romances que decorrem no século XXI. Apesar da força imagética, todos têm de se ancorar na realidade. Já quase não existem cartas, existem mails. E vem esta arenga toda a propósito do último romance de Inês Pedrosa, escritora que aprecio e incluiu o correio digital no último romance. E alguém me fez o favor de uma prenda. Da Inês espero coisas depuradas, palavras luminosas, como um dia tive a oportunidade de lhe dizer. Li "Dentro de Ti Ver o Mar" em dois dias, velocidade muito invulgar no eu que é mim. E, só por isso, a minha vénia à autora.
Agora que terminei, estou meia penumbrosa, ainda fora de um claro sentir. Argumentam, ah, e então a racionalidade, o pensamento? Sorry, as minhas raízes de pastorícia caeiriana empurram-me para as impressões e é sobre elas que o pensamento se constrói;  talvez eu sofra de impressionismo mental, que é como quem diz, empirismo em banda larga.  Posto isto, verifiquei que Inês Pedrosa mantém o teor de escrita. Depurada. Luminosa. Mas não é a mesma. Mudou. Podem dizer, cresceu; amadureceu; aborda questões reais e de premência maior; deixou de ser lírica. E talvez seja isso. Também. Deixou de ser lírica. Mas não apenas. Há uma carga excessiva no livro. Uma carga de gente demasiado utópica a viver problemas quotidianos. Um desentendimento relacional tão profundo entre vários intervenientes que chega a não jogar com as atitudes. Ali se faz um retrato de época. Foi escrito em 2012 e situa-se entre 2003-2004. E o facto é que me põe em causa.
É descrita uma realidade citadina centrada na eterna questão amor-sexo e percorre a pé coxinho - não por ser coxa a prosa, mas porque percorre devagar a relação, a demorar-se no passo-a-passo -  a relação entre um homem casado e uma fadista com origens insólitas e a que só o livro dá resposta (pretensamente, um dos motores da obra é a busca de identidade da cantora, a sua necessidade de se demarcar como um eu absoluto no seu ser único e individual). Aflora de forma secundária o problema da violência psicológica sobre as mulheres, das mulheres em regime prisional, dos conflitos gerados em colégio interno, do complexo gata-borralheira, dos cleptomaníacos e outros sobre os quais a autora discorre em brevidade. É também um livro sobre mulheres e o poder da amizade feminina. Mas não se enternece. Como se a Inês tivesse querido escrevê-lo de pé, a olhar em frente. E eu gosto da Inês ajoelhada, rendida, os olhos a descerem até ao nível de quem está e não aguenta o erecto; foi essa que conheci em “Fazes-me falta” ou mesmo em, “Fica comigo esta noite”. Dentro de Ti  Ver o Mar é um romance onde, no amor, o aguilhão do corpo toma conta de tudo, as frases ternas masculinas são eternas capas de disfarce e o desejo físico assume no feminino profundidades ruinosas. Destrutivas, sem nada ruir. O homem que nos surge como engatatão e bom pai de família é afinal um pilha galinhas que,  insípido, morre de ataque cardíaco. A mulher, essa, é o ser que, escorado na amizade feminina, tem mil vidas. Morre tarde, tem vários homens, filhos… E não cabem remorsos por se dar um filho a criar, não há decisões difíceis nem problemas de consciência, é tudo rápido e efémero. Sem traumas.

Mas, quem sabe, o livro esteja certo com o tempo e seja eu quem está fora dele. Que todos somos efémeros, mas existe em cada decisão humana uma inteira eternidade. E isso não encontrei, Inês. Faltou-me. Mas pode que só a mim.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Um Amor Pequeno

Provavelmente não há o Deus que imaginamos a pôr alguma ordem no mundo. Um ser exterior que nos organize a vida e que, se bem pensarmos, se pauta pela paciência nas relações parentais, crianças asneirentas que somos. Apesar do atestado de menoridade que passamos à espécie, e ainda que Ele não exista, há-de haver um acaso inteligente – mesmo muito inteligente e até poderoso, que criou onde a mente humana soçobra.
Ora, num desses acasos do destino, não dos mais inteligentes – foi mais um acaso amoroso –, uma das primas recém-casadas veio a nossa casa passear a felicidade. E nós a olhá-la em meia desconfiança, à procura da garota que nos gastava mãos cheias de açúcar  a queimar sem sabedoria o melado dos pudins. Mal ele começava a granular, o açúcar está estragado, vai lá deitar fora, pomos outro. Prática, deitava novo açúcar na caçarola e logo que começava a granular, oh, este também está, deita fora. E gastaria quilos se nós os tivéssemos, ignorante de que o granulado de açúcar é o passo anterior ao formar do caramelo. Confesso que, nesse dia de visita, a olhava também a procurar sinais de casamento que não sabia quais fossem, sobretudo porque ela me pareceu a mesma loirinha bem-disposta e cheia de ideias malucas. Por outro lado, havia alguém que nos atraía mais: o marido. Mas também nele só encontrámos um rapaz alegre de melena comprida em ar de rock. Quando saíram, ficámos a olhar uns para os outros e eu, que te pareceram? A minha irmã, não parecem casados, pois não? Eu, pois é, parecem dois miúdos.
Posto que o casamento não se lhes notasse, o nosso jovem primo interessou-se pelo que fazíamos, como passávamos o tempo – lisboeta a preceito, devia estar contente por ter descido, sem querer, à pré história; e tudo inquiria -. E foi assim que contámos a nossa desgraça de nem rádio. E ele, eu arranjo rádios. Vão lá buscá-lo. Mas nós estarrecidos de esperança, abalholhados e a sorrir, de certeza um pensamento comum, "tu eras a única pessoa que a gente queria". A voz dele a sacudir-nos, vão lá, que quero vê-lo.  E logo alguém subiu ao sótão e o trouxe. Uma lástima empoeirada e cheia de cocó de pássaro.  Ele olhou e, que se ouvisse, não formulou juízos de valor. Quis limpar-lhe o pó, mas afastou-me a empurrar o aparelho para dentro de um saco plástico, desimportado de pormenores, deixa estar que eu limpo-o lá em casa. Vou ver o que posso fazer. E partiram os dois. Nós todos a acenar ao casamento de brincar e a desejar que o novo primo se lembrasse de rejuvenescer o rádio.
Passaram os meses e nada de rádio. Quando víamos o primo ele batia na testa com força e, ahnnn….bolas! Esqueci-me outra vez do rádio. Não entendíamos se tinha esquecido de o arranjar ou de o trazer. Vieram frios e calores, primaveras incipientes e bulbosas, outonos pelo chão a restolhar. Nasceu-lhes um filho. E comecei a preocupar na ideia de que o rádio do meu avô tivesse ido morrer tão longe. Já o preferia para ninho de pássaros, feito múmia no sótão. Parecia-me até que essa morte próxima era mais ao jeito do meu avô. Aos serões, falava nisso e o meu pai dava-me razão, ainda que não pelos mesmos motivos. E aproveitava para desdenhar do lisboeta e das suas capacidades com os transístores. Eu ofendia e saia da mesa arrependida de repuxar a conversa, mas, quando descia o degrau da cozinha pequena, ainda ouvia os finais, és mesmo anjinha, tu, acreditas em tudo.
Certa noite, os quatro sozinhos, bateram à porta da frente. Só podia ser visita. Munida de candeeiro e curiosidade, fui abrir. E a comitiva a espreitar atrás, o meu irmão bem no fim do cacho, um medo reticente em alarme de pernas e voz, a inventar delicadezas de larápio, e se forem ladrões
       Mas, destrancado o ferrolho, só o primo. Estranhámos. Ele sorriu e  entrou no carro. Retirou um embrulho, a porta do automóvel bateu enfastiada, num aborrecimento de deixa-me em paz e, num toque de sino, o rádio! E um sorriso lindo a envolver; que embelezou à expressão, o arranjo é grátis. Fomos todos, corredor fora, em procissão com vela e tudo, até à cozinha. E, quando poisou o aparelho sobre a mesa, pasmámos. Não parecia o mesmo. A bem falar, nunca o tínhamos visto assim. Estava novo. E ele a curar-nos do espanto, estava tão sujo que tive de pô-lo na lixívia, ficou quase uma semana de molho. Engoli em seco, um bocadinho envergonhada. Rodou o botão e ouviu-se uma música. Distinta. Clara. Nada de balbucios rudimentares. Aquela gente estava com a força toda. Já de saída, virou-se para nós e, pus-lhe pilhas novas. E desapareceu no escuro, os faróis a alumiar bocados de árvore, as laranjeiras enormes e sombrias, o meu irmão a impacientar-me a mão livre, vamos para dentro que estou a ver ali uma sombra a mexer e tenho medo. E, em peregrinação, regressámos à cozinha, a  matar a saudade do rádio.
No dia seguinte, mal o liguei, percebi que não sintonizava nos mesmos números, mas lá fomos procurando e encontrámos todos os postos excepto o Rádio Clube, já então mudado em Rádio Comercial.

Ainda não descobri o que aconteceu à Rádio Comercial, qual o caminho que tomou, mas desapareceu de todo. Um descaminho. De início, deduzi que o meu primo a derretera com tanta lixívia, que seria alérgica e não se aguentou na barrela. Hoje gosto de pensar que o meu doce avô também preferia aquele posto emissor. Que arranjou modo de levá-lo e está no céu ouvindo a Rádio Comercial. Porque, como reconhece Pessoa, as tardes da eternidade são muito enfadonhas.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Um Amor Pequeno

Os povos são todos diferentes, dizemos. Mas as pessoas tão iguais! A situação económica e a pertença de classe aproximam continentes distantes e emparelham comportamentos. Quando estive no Brasil, viajei de táxi - bem lentamente - entre o hotel e o aeroporto, os olhos a despedirem-se em tempo útil. E senti-me replantada na minha aldeia. O Táxi passava devagar pelos lugares e a mesma caterva de sombras e pobreza nos adereços, nas casas, nas pessoas. Escurecia. As portas escancaradas à brisa. No interior, os candeeiros de petróleo a bruxulear claridades, enxameados de insectos que circundavam a morte em sua dança cega; mulheres descalças ou a chinelar, entrevistas em lida caseira, sem a graça que as revistas e as actrizes emprestam ao feminino brasileiro, morenas, gordas, pesadas; talvez suadas. As tabernas vozeavam e o suor brilhante do álcool já acetinava braços, rostos graníticos riscados de vincos fundos, troncos meio dobrados para a frente, talvez sobre um copo, ou apenas sobre si mesmos, em fase introspectiva de bebedeira; Como num quadro, as pernas penumbravam informes mas, grande parte dos olhos encimava camisolas de alças, um viés para o canto onde uma televisão junto ao tecto. E, na maioria das aldeias, havia talvez um café, onde mulheres e crianças hipnotizavam, ordeiras, em bancos corridos a toda a largura da sala, a televisão ligada à bateria de um automóvel ou a um gerador que resfolegava canseiras no bafo escuro da noite. Podia ser a minha aldeia no quando dos inícios da TV. Que a minha mãe nunca viu e pouco me autorizou a participar. Daí que, lá em casa, nada destronasse o rádio.
Aos dezassete anos, fui estudar para a cidade, só regressada à quinzena. As viagens eram caras e o meu pai ditou lei. Por contingências alheias à vontade do clã, o meu avô, que começara por ficar com o meu primo em nossa casa, passou a andar em casa dos filhos. Mais tarde, adoeci e a determinada altura o médico internou-me. Felizmente alguém atendeu o meu pedido de transferência para um lugar onde pudesse estender a mão e tocar alguma visita que me chegasse, assistir o sol a nascer, usar a minha roupa, os meus sapatos, andar, correr, ver gente. Portanto, mudei de hospital. Na madrugada da mudança, o meu pai chegou preocupado e insone, um saco  colado à mão que só me passou na despedida, a voz a falhar-lhe, Toma, mandou o avô. Deu-me um beijo rápido e partiu em pressas embaraçadas de preocupação mal embrulhada na ternura triste que não sabia nem ousava mostrar mas sei que houve. A situação era tão nova que não abri o saco e fiquei embasbacada à porta, alguém a levar-me as malas, as costas do meu pai na ambulância a sumir além-portão. Quando, já noitinha, olhei o saco, o rádio refulgia lá dentro. Exultei e dei-lhe o uso que merecia.
Levei meses para regressar a casa. E quando cheguei e o meu avô uma visita, logo lhe ralhei. Ele, “tu gostas muito de ouvir música, o avô quer que fiques com ele e o leves lá para onde vais; é um gosto meu, neta. Já me tiraram tudo, só tenho a telefonia. É tua, minha neta”. E como era jovem e pateta, desatei a chorar e abracei-o, gosto muito de si, gosto muito de si, avô gosto tanto de si. E depois, avô e agora o que põe em cima da mesa-de-cabeceira? E ele, o teu retrato. - e num sorriso - Anda comigo na casa dos filhos. Vai lá ver. E lá estávamos os dois sobre a mesa-de-cabeceira eu de lenço na cabeça feita cigana e o meu avô de barrete de orelhas, cajado na mão, sentadinho na sua cadeira. Não me lembro do fotógrafo. Mais tarde, quando já não servia ninguém, os meus tios enviaram-ma ainda na moldura que lhe oferecera. E lá estamos nós dois a sumir, quase indistinguíveis na brancura amarelada daquela esquina de sol.
A “telefonia do avô” acompanhou-me a vida errante de professora primária agregada e efectiva. E todas as férias voltava à aldeia, ainda sem luz eléctrica. Nela aprendi as poucas canções que sei cantar.

Ora, objecto como outro qualquer, não se subtraiu às leis do tempo e foi adoecendo. Começou a engripar, a tossir, abriu em intermitências vocais, soluçava que só visto; e o Rádio Graça empreendeu em rugidos de leão entusiasta que não desapareceram. Perante tanta birra, as férias eram menos alegres. E deu-nos cabo dos rituais: pintar paredes ao som de música era outra categoria; serões sem Telefone Toca, perdiam encanto; não conseguíamos acompanhar os jogos de hóquei e torcer pela selecção. Estávamos pelos cabelos com tanto impedimento. Por isso, sem coragem de a deitar fora ainda que sem préstimo, guardei-a no sótão. Sem me lembrar de a embrulhar. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Um Amor Pequeno

Todos os homens preferem. E é na gradação das preferências que se instala o interesse de viver. Algumas preferências surgem naturalmente, outras são modificações do gosto. Mas aquilo que se prefere orienta-nos o agir mais livre. Uma das preferências do meu pai era encostar-se ao balcão da taberna e ir ficando. Algumas vezes, depois de muitos copos bebidos em rodada, um tendeiro ou caixeiro-viajante que tentasse a sorte, depois de muito moer, conseguia interessá-lo numa compra. Conhecendo o meu progenitor e o seu apego ao dinheiro, sei que devia arrepender-se mal estivesse nele, que podia não ser no dia seguinte nem no seguinte do seguinte, mas jamais lhe ouvi uma palavra sobre, um eco que fosse. Etilicamente, comprou um burro, duas cabras, um corte inteiro de tecido castanho que nos vestiu a todos e nunca mais acabava, um gabão e duas latas de quilo de atum Bom Petisco, de uma pureza que nunca tínhamos visto ou sentido e que nos deliciaram. Numa dessas noitadas, encontrou um pintor de azulejo e escaqueirou o velho sonho com auréola da minha mãe, o desejo de, sobre a porta, “Vivenda S. José”, em ferro forjado. Copo para cá e para lá com o pintor e mandou fazer o painel que ora existe e onde se lê Vivenda Pinto e um pinto escarrapachado, que o fulano era artista e tinha de deixar a marca. A minha mãe a observar sem palavras, numa tristura de dar dó, as pálpebras a engrossar; e o meu pai a defender-se, eu não mandei fazer o pinto, ele é que lá o pôs.
Teria eu uns doze anos, uma noite de copos pariu um rádio minúsculo. Apesar de pouco maior que uma caixa de fósforos, delirámos com a máquina. A princípio desiludi, queria um rádio como o dos meus avós. Mas depressa aprendemos a mexer na engenhoca e a perfilhámos. O nosso não era igual a nenhum, ninguém tinha coisa tão pequena. A minha irmã fazia gala no aparelho e exibia-o a todas as garotas que fossem lá a casa. Um sucesso. Entretanto, o sovina do meu pai proibia-nos de ouvir rádio durante o dia, para não gastarmos as pilhas. As sessões nocturnas começavam após o jantar com o meu chamado, mãe, olhe o romance. E ficávamos em roda do diamante que debitava frases interessantes e anormais para nós. Ouvimos vários folhetins, mas só recordo “A vida aventurosa de Wagner” e lembro-me de ter alguma má vontade ao compositor por tratar mal a mulher; e de adorar toda aquela música  muito alta e cheia de força que ainda hoje me sugere glórias militares. Também ouvíamos “Quando o telefone toca”, que nos servia de jogo, a adivinharmos o pedido seguinte; quem acertava mais vezes, ganhava. Todas as noites, mal começava a Melodia do Desespero, a minha mãe, mudem lá isso que o homem me faz impressão. É muita tristeza, o que será que ele diz? Até parece que chora. E eu ouvia hóquei em patins, vício que passei aos garotos e durou até eu mesma comprar um televisor e desinteressar do hóquei visual. De cada vez que precisávamos de pilhas novas o meu pai “fazia uma pregação”, é gaiatas desgraçadas! De certeza que deixam o botão ligado, gastam as pilhas em menos de nada.
Uma noite, talvez por excesso de uso, o rádio não tocou - o meu pai garantia amiúde, com alguns epítetos à mistura, que quem lho vendeu o tinha roubado; portanto, seria muito velho. Rodávamos o botão e uma rugida queixosa. E apenas. Somente. Trocámos as pilhas, abanámos, pusemos no máximo, no mínimo, mudámos de posto para posto, fomos ouvir na outra cozinha, nos quartos, na sala… Nada. Ficámos calados a engolir a vontade de chorar, a casa a admirar de silêncio, alumiada pelo candeeiro de petróleo que entristecia vapores amarelos. A minha mãe a olhar-nos, dêem-mo cá. Agarrou nele, abriu-o, palpou e,  oh, está tão frio, e colocou-o no chão, a centímetros da lareira. Então, começámos a ouvir vozes longínquas e progressivas, que em breve chegaram à tonalidade normal, mais pareciam pessoas que viessem a pé para nossa casa. A partir dessa noite, o rádio precisou sempre de cinco minutos de aquecimento que cresceram na proporção dos desmaios. Perdia vigor a cada noite, e, ao longo dos meses, as vozes a enfraquecer. Um dia, finou. Que é como quem diz, derreteu. O meu irmão aflito com o cheiro, os homens tão todos queimadinhos, mana.
Entretanto, o nosso rádio gozava a tempo certo, um mês de descanso. Sempre que o meu avô vinha para nossa casa, trazia o rádio dele e logo o punha sobre a mesa. Era uma alegria. O meu avô tinha uma reforma de miséria mas não queria saber se o usávamos dia ou noite, em sua casa o rádio ligado era quase permanente. Se as pilhas enfraqueciam, dava-nos dinheiro para outras. 
Foi por essa altura que comecei a passar a letra das canções que me agradavam mais. O meu avô ria baixo e gostava de me ouvir a experimentar o que tinha aprendido e se ia a correr de cada vez que dava a canção que queria copiar. Os meus irmãos solidarizavam e se não estava próxima, também gritavam, Beatriz, tá a dar aquela canção que andas a copiar. E a mais velha, queres que eu te passe um bocado? Onde é que tens o papel?

Por vezes, o meu avô com olhos de mel, o avô dá-te o rádio quando morrer. Eu a abraçá-lo, o avô não morre, tá bem? Ele, tá bem. E eu descansava.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Pré História de um Amor

O tempo toca-nos em modo próprio. Modifica-nos o corpo, a alma, os gostos. À medida do desgaste, mata-nos os amigos, traz-nos rancores antes inconcebíveis, quotidianos fastidiosos, anseios nunca imaginados. Diz o povo que ele tudo traz e tudo leva. Neste ditado, palpita a viva fatalidade  de  Anaximandro “os seres pagam pena uns aos outros..” ou mesmo as palavras de Cristo, “A quem muito foi dado, muito será pedido”. Se pensamos nas três proposições, verificamos que não serão apenas sintoma de humano fatalismo. O sentido de posse é-lhes extrínseco, antes prefiguram o efémero vital que encarnamos – somos seres passantes. As virtudes de cada homem  pagam-se sabendo que uso servem e concretizando-lhe a utilidade. Por sua vez, a religião traz o tema ao campo do dever; exige, obriga, individualiza. Concluindo: nada nos pertence verdadeiramente, nem nós mesmos nos pertencemos. Assim se talhou a minha base educativa. Talvez que, nesse tempo, a da maioria dos portugueses. E, quem sabe, dos europeus.
Mas, enquanto a minha geração crescia com a rádio e assistia à eclosão e açambarcamento da TV, na minha família ela senhoreava. Teria uns quatro anos quando vi um gramofone e sua caixa de madeira. Dava-se a uma manivela e saia música. Fascinei. Vezes infinitas, pedi ao proprietário que repetisse a proeza e enquanto ele dava à manivela eu encarregava-me de espreitar por todos os lados da maquineta, sem atinar com o milagre. Era um homem penteado, barba feita, para o comum da aldeia, um senhor. Despedimo-nos com a promessa de voltar, mas, apesar de instantes pedidos, a minha mãe não me fez caso. Anos mais tarde, contou-me que era doente do Caramulo, tinha levado o gramofone e não voltara a casa. Pensei que o Caramulo fosse doença grave; lembrei o senhor a dar à manivela para mim, enquanto as mulheres à boca pequena, está tão bem encarado, mais gordo, estimadinho, olha a pele dele, nem parece que andou ao campo. Muitos anos depois, passei ao sanatório do Caramulo e pareceu-me ouvir o som do gramofone a sobrevoar o abandono do lugar. O senhor deve mas é ter-se curado e continua a dar música ao fresco das serras.
No meu período de escola primária, conhecia os rádios das duas tabernas e  tomava-os como enfeites, tal a algazarra masculina. O meu padrinho, que era homem de aproveitar tudo, a rir com seus dentinhos de coelho – os meus professores, aquele espaço na dentição chama-se barra ou diastema - varre lá aí a taberna ao padrinho. E deve ter rodado o botão do rádio. Parei logo com a poeira, dei um pulo e sentei-me na mesa do chinquilho a ouvir. Ele rápido, a salpicar gafanhotos para todo o lado com o nervoso, sai já daí, as marcas estão a giz, apagas isso tudo aos homens. Varre mas é a casa. E rodou de novo o botão. Fiquei a pensar que bem merecia a barra ou diastema dos coelhos.
E um domingo em que visitámos os meus avós, surpresa! Um rádio sobre a mesa. Cresci de alegria. O meu avô sentou-me no trôpego dos joelhos e ficou a girar um botão que fazia um pau fininho avançar e recuar numa janelinha com números. Quando saí, já memorizara o número de cada posto, os meus dedos pequenos sobre os dele a rodar o botão, avô eu sei, eu sei. E ele a rir baixo, uma poalha de ternura  no ar. Diziam-me, em que posto está, e eu ia ler e depois, Rádio Clube, Emissora Nacional, Emissora Dois, Rádio Graça.
Na minha mente, a cada um dos postos de rádio correspondia uma imagem. Assim, o Rádio Clube era uma coisa desportiva com meninas de sainha curta e raquete ao ombro a jogar ténis, que era um jogo que não sabia como se chamava, mas apareciam meninas assim nas fotonovelas a fazer propaganda ao modess; e eu lia naqueles balõezinhos com frases que elas iam ao clube com modess pétala macia, cujo também julgava ser um homem, por sinal com nome bem estranho, mas sendo brasileiro…porque não? E no boneco havia ainda os rapazes com camisolas brancas de risquinha no decote. Na minha leitura, esses eram os modess. O Rádio Clube era o meu posto preferido. Além disso, falavam do Omo que eu pensava que era uma pessoa porque lavava mais branco. Admirava-me era que fosse homem e não mulher, mas pronto. O mundo não pode ser todo igual. E nem eu sabia de máquinas de lavar.
Depois, havia a Emissora Nacional de que gostava menos, cantavam fado, ouvia-se o presidente de vez em quando e pensava que era um palácio enfadonho e aborrecido todo cheio de alcatifas onde as minhas pernas queriam avançar e não podiam. De vez em quando, sonhava-me perdida no meio das alcatifas que inventava, as pernas presas, dava um reviravolta na cama, enleava-me nos lençóis e caia estatelada no chão.
A emissora dois era uma entidade desconhecida cheia de músicas que não acabavam. Ninguém cantava. E isto enchia-me de insistências e dúvidas que aborreciam toda a gente. Foi a única rádio a que não dei imagem.
Finalmente, o Rádio Graça, onde eu julgava que tudo era grátis e supunha ser uma espécie de parodiantes de Lisboa, acerca de quem a minha avó, “têm graça; têm muita graça”. Imaginava um armazém muito grande com a música em fundo e onde toda a gente bem disposta e bem recebida, cada um a retirar o que entendesse. Mas quando pedi à minha avó para irmos até lá, ela olhou-me como se fosse maluca e, isso não pode ser, vai para a rua brincar e deixa-me trabalhar em paz.

A compra do rádio guindou os meus avós à riqueza. Os meus avós. Que não sabiam ler, pagavam o rádio a prestações e tinham uma cozinha de chão de terra. Mas que me  interessavam tais pormenores? A minha mãe dizia-me que não comprávamos um por falta de dinheiro. E a lógica infantil fez o seu caminho. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Pré-História de um Amor


Todas as pessoas se armam contra a solidão. Mesmo as que dizem que não se sentem sós. Também elas. Porque, ou mentem, ou não sabem ainda concretizá-la. Identificam-na, talvez, com uma falta de companhia. E não estão erradas. A solidão é um estado de alma que não depende necessariamente da presença de um ser físico, mas essencialmente da falta de um estado de companhia. O que as pessoas mais sós ignoram é que as companhias desse tal estado não se compram ou se trocam; não têm a ver com risos e gargalhadas, ainda que possam existir; viram costas a muita conversa e solicitude baratas. A companhia só existe se haja uma relação profunda entre o acompanhado e o acompanhante. Dizem-me, ah, e então as companhias de viagem, aqueles seres empáticos a quem contamos mundos e fundos que não abrimos para conhecidos? Respondo que a fugacidade desses encontros não chega até à solidão. Somos um compartimento desenhado a todo o comprimento e eles são lâmpada de entrada, não contam para a luz da sala. Ajudam sobretudo na visibilidade da porta. O estado de companhia forma-se em anos de sedimentação. Como as rochas. Existe com grandes amigos, grandes amores e outras pessoas sem as quais o núcleo nos surge incompleto, haja ou não laços de sangue. Mas também com os animais. E os objectos. Sim.
“Na adolescência é suposto começarmos os amores”, quando li isto num livro preocupei e fui informar-me sobre a duração da adolescência. E constatei ser meio anormal, durante tal período da vida não me passou pela cabeça gostar de nenhum rapaz (nesse tempo desimaginava que a homossexualidade existisse). Nem me lembrei que a amizade também é um amor. E que, além das minhas amigas, desenvolvera um certo amor por alguns objectos, alheada do mundo animal.
A minha história com os animais é um bocado vergonhosa. Temia-os e enojavam-me um tanto. E não me refiro à infância. Se a minha mãe me punha nas mãos a galinha que chocava, pegava-lhe nas asas com as pontas dos dedos a afastá-la do corpo quanto podia. O passo seguinte era a queda do galináceo, a mãe sem gritar, um tudo nada de acidez, como é que não seguras uma galinha choca que nem se mexe, apanha-a lá, vá. E, face à minha recusa e inépcia, não sou capaz, apanhava-a do chão onde estava engolfada em novelo e voltava a pôr-ma nas mãos, a apertar-me os dedos sobre as asas, Beatriz agarra bem a galinha senão ainda apanhas tu. E eu, olhos fechados, a fazer força nas penas e a sentir sob os dedos a carne morna e febril que me torcia os lábios, o veio grosso das penas como um pequeno tronco, mãe isto do meio das penas é madeira? A mãe, segura o animal Beatriz, estás a deixá-la cair. Está à vista que as galinhas não me serviam as ternuras.
 Do cão tinha pavor, um medo gigante se rebentava a corrente. Se acontecia ouvir-lhe os latidos fora de sítio e me encontrava na rua, estacava e mais ou menos a chorar, ó mãe! o cão tá à solta, Ele ouvia-me, desatava a correr na minha direcção, punha-me as patas nos ombros e derrubava-me de alegria. Eu ficava no chão a chorar e aos gritos de, ó mãe, tenho medo do cão, venha cá, mas sem me mexer, ainda assim ele não se renovasse nos cumprimentos. O pobre animal ficava um bocado a olhar-me e a abanar a cauda, as patas fincadas no chão a parecerem pés de mesa e as unhas que, não sei como, me lembravam garras de águia, ave nunca vista, a enormizarem. Entretanto, a minha mãe acorria em presteza silente e ele desabria para o lado oposto. E só aí começava a levantar-me cheia de pó, ranho e queixas. 
O restante séquito de quatro patas não ia mais longe. Os nossos gatos pretos, pequenos seres de rua que por vezes devinham selvagens à força de incursões solitárias pelo montado, desinteressavam-me. Do burro tinha um medo feroz e jamais me aproximei do coitado. Muito adolescente e mais palerma, à conta da gulodice de uma cabra levei umas chapadas bem dadas, uma sova. Foi a última vez que a minha mãe bateu num filho. Os meus irmãos, ai, ai, deixaste fugir a cabra; tira-a da oliveira, olha que a mãe bate-te. E eu a metros do animal, a abanar muito os braços, xô, cabra! Sai. sai. Mas a cabra fixada na oliveira. Com os dentes. A roer, a roer, a roer. A minha impotência queixosa, ela não sai. E a oliveirita a desaparecer nas beiças daquela imbecil mal mandada. Os meus irmãos com boquinha redonda, Ai deixa, a cabra comeu a oliveira toda! E a mãe já vem aqui a chegar. Agora apanhas. A minha mãe a subir penosamente com o burro, rosto impenetrável. A rumar ao estábulo e a minha mente, talvez não me bata. Espectáculo! Só a cabra é que gostou.
 Os porcos cheiravam muito mal para o meu gosto e, se pudesse, nem proximidades. Quanto aos coelhos, comiam demais. E cheiravam a coelho. A minha tia a olhá-los embevecida,  animaizinhos tão bonitos. E eu muito séria a ponderar a vida da coelheira, ó tia os olhos deles são palermas, olham tudo igual, a dar-lhes as costas num remate, Os coelhos são parvos.

Portanto, restavam-me os objectos. Deve ter sido assim que comecei a gostá-los. Fazia-me falta vê-los, tocar-lhes, usá-los. Eram companhia silenciosa e quieta, não tinham aquele cheiro de bicho e estavam sempre em algum lugar. O rádio foi o primeiro que me deveio próximo.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Hannah Arendt

Hannah Arendt é uma figura ímpar do século XX, um ser humano raro. Porquê? Porque sim. E sim é ter lido três dos seus livros, a saborear-lhe o entendimento de todas as coisas e das pessoas. Verdade, a inteligência tem paladar. Pouco sei da sua vida, por não ter hábito de ler contracapas. Quando vi o anúncio de um filme biográfico sobre esta mulher que admiro, marquei-lhe data – a próxima que me deslocasse a Lisboa. E foi hoje.
            Animada por tal brisa, entrei num centro comercial à hora de almoço e o enjoativo de fritos invadiu-me por inteiro. No completo de mim. Era uma misturada de fast food que se debatia no ar, sou eu que pairo, sou eu, sou eu. E logo um outro a sobrepor, não, não, eu sou mais forte, tenho caril, cebola…E um terceiro a empurrar os dois, nem pensar este é o meu reino. Fora! E idem, idem. A agoniar-me. Mas as gentes sentadas no barulho, olfacto habituado a lutas aéreas, mastigando. Ou só olhos mortiços, em observação de movimentos e passagens. A ilusão de viver que emprestam a pressa e a vida dos outros! Não será bem assim. É mais uma saudade que os encontra sem densidade e irrompe por eles dentro se um parzinho de mão dada a conversar entendimentos; ou se cruzam olhos inquietos, que esquadrinham o espaço até ao alisar  descontraído e expressivo. Encontrou. E, nos seus olhos de presente inábil, passa uma espécie de inveja do futuro que já não sentem e existe – pensam -  em quem transita.  Que só o entendimento procria futuros.
A essa hora, perfumadas e blazées, as mulheres enxameavam. Mas a omnipotência do cheiro. Armado de rudeza, engolia sem complacências odores fortes de Chanel e Givanchy, a ofendê-los no âmago, que mixórdia é esta? Retirem-me da cloaca, por favor. E as águas de colónia a desfalecer fraquezas, desisto.
Perseverante e razoavelmente agoniada – tenho quase sempre que peregrinar para obter -  aguentei uma fila comprida a lagartar por entre a rixa de odores que nessa altura já me pareciam a ranço. Cansada e contente. Futurava estar bem sentada duas horas, imersa num assunto de filme. Bem-disposta. A descansar de ser mim. O cinema obriga a pausar o quotidiano; ser ninguém,  esquecendo que somos alguém. Ali, somos filme.
Desilusão. O filme não tem chama. Ou não me chamou. Cinge-se à posição humanista de Hannah Arendt no julgamento de um nazi e às consequências drásticas dessa posição, defendida num jornal americano. Hannah incompatibilizou-se com as chefias do movimento sionista por lhes apontar culpa na defesa dos judeus deportados para os campos de concentração. E a sua maior coragem foi sacudir as consciências desde o interior e apontar o réu como uma despersonalidade, alguém que perdeu a capacidade de pensar, delegada num führer. Mas todos esperavam uma violenta condenação - ela mesma fugira de um desses campos -, os adjectivos em catadupa, pedradas de enterro fundo.  “Hannah Arendt” é um filme sobre o perigo de tocar a verdade com as mãos. E do quanto os outros não nos gostam por nós mesmos, mas por julgarem que comungamos dos seus ideais e preconceitos. A luta contra a subjectividade da opinião. E a vitória do pensamento crítico. Filosófico.
No entanto, e apesar da fita tentar apresentar uma Hannah Arendt muito humana, ela falta. Há ali uma inveterada fumadora, a pensadora, a mulher dedicada aos amigos mais antigos, a excelente professora. O trabalho da actriz é notável na oralidade conseguida. Mas a Hannah Arendt dos livros que li, apesar de algumas frases e conversas textuais, não apareceu. Em compensação, Mary, a amiga, é bem mais avassaladora e empática. Há no filme uma racionalização das relações amorosas que não esbate nos beijos trocados. E o encontro com Heidegger não pode ter sido aquele amor quase nada, que ali  é  apenas aflorado e semelha mais uma paixão de velho a que a aluna corresponde com admiração e complacência.  E que joga mal com a afirmação de que o seu inexplicável foi Heidegger.
De todo o filme, gostei de uma frase que me faz sorrir, por ser a que menos tem a ver com Hannah. Depois da doença, dão uma festa em casa que reúne de novo os amigos dos serões antigos. Para comemorar. E quando saiu toda a gente Heinrich diz algo semelhante a, “como me cansou comemorar a minha saúde!”.
Num filme filosófico, não me parece bem lembrar-me só desta frase. Reconhecer-lhe razão, em identidade subjectiva. No finalmente das festas, sou ele. O que seja que se comemore.
Está decidido, vou ler mais uns livritos de Hannah Arendt. Mais vale.