terça-feira, 29 de maio de 2018

Um homem não chora


Há dias em que um homem se sente estranho e invisível na sua própria casa. Deita-se na mesma cama com a mesma mulher, a casa de banho habitada por after shave e colónia; o pequeno almoço aguarda no mesmo canto da mesa; junto à porta, os objectos pessoais, casaco, pasta, óculos de sol esperam ordenados. E ainda assim é como se a casa não me pertença, tenha um ritmo alheio, os objectos cativos a murmurar  de viés, este outra vez. Sinto-lhes o mau estar desde o bater da porta na entrada, parece-me que mal me sofrem os passos, como se os espezinhasse, eu que me desloco sem ruído desde criança, a proibição de minha mãe ainda nos ouvidos, o menino não pode correr dentro de casa, a enxaqueca da mamã não tolera barulhos. E as empregadas como gatos, a deslocarem-se em sapato de lona. O papá em bicos de pés, eu de soquete branco por muito ano. E a doce mamã mergulhada em penumbra.  Acudíamos-lhe ao quarto por um ai mais demorado; a nitidez de uma queixa, hoje nem consigo abrir os olhos; um pedido de doente mimada, ai como me apetece o cheiro das tangerinas. E logo meu pai pressuroso pegava em bengala e chapéu e desencantava em qualquer tempo as tangerinas de Janeiro. Que a empregada trazia numa bandeja e ela descascava com prazer, a exclamar extasiada, cheiro tão bom. Pouco depois enfastiava, dedos nervosos e odoríficos na campainha a retinir, leve, leve, atire fora. E enquanto expulsava das mãos o ácido ascórbico, a lona atarefava em pressas de veludo no sentido da cozinha, vamos comê-las que já estão descascadas. E eu em contemplação, encostado no umbral. Curioso de lugar tão diferente.  Comer tangerinas despia-as de função. Retomavam o corpo sem pose com que tinham chegado até nós, riam umas com as outras, brincavam. Naquele bocadinho de tempo eram quase tão garotas como eu, o menino não diz nada, pois não, quer um gominho. E eu importante como um confrade, a mastigar os gomos que me passavam, a sentir na boca o sumo doce , a fazer parte do segredo que vingava naquele reino de ruído caseiro, mescla de cheiros e compostos que acordavam ao calor. Além delas, havia a cozinheira de mãos largas e colher de pau, que me chamava prolongando-se em doces que descobria não sei onde, coma tudo aqui senão o senhor doutor ainda me despede. Quando recebíamos, meu pai apontava-me  às visitas, o carácter não pode ser amolecido com açúcares, o Alberto  é criado sem tal veneno. Olhem para ele, nem parece filho da pobre  Madalena. E vários pares de olhos  avaliavam resultados, cabeça acima e abaixo, bocas a bichanar aprovações. E ainda hoje engulo a sobremesa, minha mulher a princípio estranha, que pressa é essa, o que lhe deu. E eu de afogadilho, não sei, sabem  melhor assim. E nela só a sobrancelha delicada, nem demasiado espessa nem demasiado fina, a alarmar. Mas de que serve saber, explicar-lhe demora tempo e não muda nada. É que só na cozinha pacifico com os doces. Habituada ao desvario e tão velha como nós, a empregada deixa ouvir no levantar  da mesa, os restos ficam no frigorífico. E quando fecha a luz da cozinha, prato e talher esperam-me na bancada. Se não foras tu e o mundo da cozinha a prender-me, teria por certo evaporado. Que não sei como aguentar salas cheias de candeeiros e agudos de mesa, cadeiras empertigadas, sofás que nos encurvam e sepultam, écrans cheios de mundo em desfile patético e que não interessa nem ao Menino Jesus. De resto, o que pode acontecer de verdadeiro numa sala, filha. Ali, imperam reposteiros e  cortinados, quilómetros de linho e seda a velar a crueza dos dias solares. Também a guardar-nos de mirones.  As salas são fatídicos lugares de morrer aos poucos. Não foi lá que deste os primeiros passos soltos, perninha bamba que primeiro hesitava em tem-te não caias e depois corria até aos meus braços risonhos; não foi lugar do teu parque, ou a Olímpia não teria hipótese de te verificar; e nem a aranha que te amparou a pressa das pernas alguma vez por lá passou.  Bem sei, não é o teu lugar preferido. Afirmavas convicta, a sala é para as visitas e não gosto que haja visitas.

sábado, 12 de maio de 2018

Insólito e Comum


Peço desculpa a algum incauto que passe e me leia. Mas até eu estou banzada comigo – vou escrever sobre José Sócrates, coisa que jamais pensei fazer. Claro que toda a gente fala dele e é só mais um post no meio de tantos. Pois é. Mas acontece que não aprecio nem um bocadinho o sujeito em causa. E vem isto de sempre. Que é como quem diz, desde ser ministro do ambiente e de estar aos domingos à noite, em directo e na RTP1, a jogar aos dardos com Santana Lopes. É capaz de ser preconceito. Assevero, a minha opinião é anterior ao Sócrates primeiro ministro, aquele que, enquanto governava, tresloucou e fez um monte de disparates e falcatruas criminosas por junto – que até se me configura que tenha para aí uns cem anos ou viva as vinte e quatro horas em expedientes matreiros e, como disse, criminosos.  Se nada disso tivesse acontecido, eu o ignoraria na mesma. Sem raivinhas, só indiferença.
Acrescento que não aprecio o estilo do senhor apesar de reconhecer que tem bom porte, sabe vestir e fala com desenvoltura. Mas o fato não faz o monge e sempre me pareceu que monge por detrás do fato não havia. E porém. Há coisas que não tolero. Bater no ceguinho repugna-me vivamente. Ora o Sócrates em quem hoje se bate tem arcado com tudo que é podre e não presta. Todas as manigâncias vão dar a Sócrates, o que, para mim que não sou juíz, parece exagero. Mais um bocadinho e sou obrigada a dar-lhe duas vidas só para malfeitorias e a concluir que não é homem, mas um ser arraçado de gato.
E esta semana, a família política e uma ex namorada juntaram-se a bater em quem já está no chão (terá sido combinado?!). Eu que não sou mulher de papar telejornais, vi e ouvi quem o defendeu e agora o ataca. E também li artigos de Fernanda Câncio, jornalista que os bloguers exibiam como se fosse uma nossa senhora moderna e a que nunca achei piada por me parecer gente que não presta (não quero nem um pouco saber se é feminista ou não, as pessoas ou têm carácter ou, sejam o que sejam, militem onde militem, não prestam). Pois nesse tempo, a senhora D. Fernanda – a tal a que sempre senti alergia, mas deve ser problema de pele que a dermatologia resolve – juntava quatro pauzinhos e fazia uma cabana a favor de José Sócrates. E eu, nas vezes em que lia, verificava que a dama esgrimia bem os argumentos e lhe assentava o papel de defensora. E punia-me um bocadinho-pouco por não gostar dela. E agora isto. Não li o que disse/escreveu e nem preciso. Basta-me tê-lo feito. Denegrir o ex num jornal. O que ela e os antigos amigos lhe fizeram é sujo. indecoroso. Indigno. Gente que morde a mão que lhe deu comida não é gente a sério e desmerece a designação de pessoa.
Entretanto, a populaça reage às notícias e culpa José Sócrates. Anda contente a populaça. Contente com os atropelos e morosidade da justiça. Contente por ter encontrado de mão beijada um culpado para os males do mundo. Contente com o seu papel de juíz de faz-de-conta.
Também tenho uma opinião sobre o caso José Sócrates. Veremos quando a justiça actuar se é concordante. Porque, sendo as opiniões altamente falíveis, a minha pode nem ter fundamento, estar errada. Mas, a presunção de inocência até ao veredito é acto de misericordia devido a qualquer réu. E é de lei. Portanto, deixemos que haja e se faça justiça. Nos tribunais, órgãos onde é suposto as opiniões não contarem e se aterem os juízes apenas a factos. Porque a injustiça já aconteceu e tem sido aparatosa. Neste momento, sinto nojo desses “amigos” e “ex namorada”. Culpado ou inocente, tenho pena de Sócrates. Há danos irreparáveis.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Tolentino e Eu


Na semana anterior à sua sessão fui verificar a obra que escolhera e  gostei: “A paixão segundo GH”, de Clarice Lispector. Que eu lera do princípio ao fim sem preferir. E o meu amor a D. Clarice é dos que não debotam. Depois, a professora acrescentou que Tolentino fora o único orador a escolheu a obra (aos restantes foi ela que impôs). Tolentino iniciou com a mostra parcial daquela entrevista maravilhosa que anda pela net sem ser vista o quanto merece e que me deslumbrou pela primeira vez na Gulbenkian aquando da exposição  “A hora da Estrela”. E depois andou à volta da barata morta para dizer que, em última instância a paixão é isso, um tornar seu o que é estranho (daí o comer da barata); tornar seu é incorrecção minha por ser expressão que admite ainda haver alguma coisa que não sou eu e me é exterior  mas que me pertence – e que não me parece ser a paixão segundo Tolentino. Ora, o que julgo que Tolentino quis dizer foi que o amor/paixão elimina a transcendência, o estar fora.
Bom. A maioria das pessoas ficou siderada com D. Clarice na entrevista que foi a última que deu.  E com a vida da escritora que Tolentino fez questão de contar. E muita gente vai comprar a biografia que Benjamim Moser deu à estampa. De certeza.
Ora bolas, já me perdi. Eu tinha começado a escrever para contar que nesse dia cheguei tarde e para abreviar caminho e não incomodar me sentei lá atrás na última fila. Não sei o que estava a fazer. Talvez coisa nenhuma. Esperava. Ou sei lá. De súbito, no meio daquela igreja a abarrotar de gente, muitas pessoas de pé e sem lugar, havia um homem a olhar-me. Tinha o corpo virado para a frente e, para me olhar, virara a cabeça.  Não me olhava distraído, olhar errante. Fixava-me. Pensei que talvez me conhecesse e investiguei-o. Ao invés do que costuma suceder, não me pareceu que já o tivesse visto. Pensei que, provavelmente, eu apenas respondera à chamada dos seus olhos.  Não era um olhar curioso, mas era, sem margem a dúvida, todo para mim. Poderia estar a confundir-me com alguém conhecido.  E fiquei na minha. E daí a nada, o Tolentino estava ao micro. Era ele o sujeito que parecia conhecer-me. E por ali se quedou a abismar uma capela inteira com D. Clarice e o seu dissolvente de transcendências.  Beleza de mulher, estranha senhora de tão boa e incomum prosa.
Eu trouxe o teu olhar simples e meio terno, Tolentino. Parece-me bom para ter à mão. E as palavras que queiras dar ao prelo, também as farei minhas. Porque o resto, meu caro, são contas do teu rosário.


Tolentino e Eu


Leio Tolentino Mendonça há anos. Tenho  alguns dos seus livros.  Os primeiros chegaram-me via amigos, um agrado carinhoso de quem me quer bem.  Depois, por gosto e sabor, comprei mais um ou dois.  Já li vários poemas  seus, puro bom gosto de quem os mostrou na net. Em consonância, sempre que posso,   leio as crónicas que escreve para jornais e revistas. É uma escrita sempre empenhada na vocação. Acredito de pés juntos que tem vocação para se dar aos outros, que o facto de ser padre pouco me importa, embora reconheça: é talvez a melhor maneira de ele se (e a) cumprir.
Toda a gente sabe que nos media as crónicas são encimadas pelo rosto do cronista. Acontece que sou um bocado desligada da imagem, confundo os meus amigos com outras pessoas, levo o tempo a reconhecer pessoas na tv com quem é impossível ter tido algum contacto. E outros desconchavos. Portanto, o Tolentino, como a maior parte da gente que leio, não precisa ter rosto ou figura. É o Tolentino da escrita. Logo, passo pela foto como cão por vinha vindimada e atarracho nas palavras. Facto que não belisca o meu apego. Porém,  tenho funda crença que a minha preferência literária e humana naquilo que ele mostra na escrita, lhe são benefício. A forma não sei mas, existindo uma sintonia desinteressada com alguém, creio eu que o alvo do bem querer robustece.
E como me alegrou ler (na Visão) a conversa entre ele e Lobo Antunes, dois dos meus escritores de eleição. Não a vi. Li-a. Pode que esteja na net (estará), mas dispenso a imagem. No caso daqueles dois, a palavra sacia o desejo. E digo até mais, a imagem é fonte de distracção e talvez que, inadvertidamente, deixemos cair alguma preciosidade. Ora, no caso desta reunião feliz, nada se pode perder. Tão bonito terem entrado os dois de mão dada – mas isto, desculpem, é Lobo Antunes chapadíssimo. Tenho dito.
Pois este ano frequentei – com mais umas duzentas e tal pessoas – uma espécie de curso livre na Capela do Rato, onde Tolentino é pároco. E lá estava o Padre Tolentino na primeira sessão a dar o pontapé de saída ao lado de uma professora que conheço e que onde mete o bedelho sai obra apurada. Confesso que nesse dia não lhe liguei grandemente e nem me lembro do que disse. Foi dos melhores cursos que frequentei. Em todas as sessões, as paroquianas se referiam ao Tolentino num corre corre de novidades que me lembrava os ingleses e a sua relação próxima à família real. Que estava em Roma a fazer o retiro pascal ao papa Francisco e mais àqueles bispos todos e doutores da religião. E que na net assim. E que na net assado. E passavam umas às outras o endereço digital onde, suponho, ele colocava a via sacra do retiro (não seria a via sacra, mas talvez um resumo da orientação espiritual que punha em prática). Não me interessou. E depois havia aquela gente que babava com as suas homilias. Que as suas missas são únicas e as homilias um espantoso espanto. Confesso que desejava ardentemente que o Tolentino voltasse a ver se sossegavam o espírito. Aquietaram.