Ora, D. Lauren, temos de conversar. Espero que
tenha escolhido uma nuvem flexível mas segura e que não vire o seu narizinho
para outro lado (quer-me parecer que a senhora é de dar trabalho até ao
Senhor).
Peço imensa desculpa, não tenho
grande hábito de contrariar os mortos, mas desta vez tem de ser. Sabe, se morre
um cantor, uma actriz, um compositor, sente a gente algum remorso da pouca
devoção e desata a procurar-lhe os sinais. Na net. E também eu. Entre a
miscelânea que vi e ouvi – a senhora era uma linda indubitável e de todas as
idades, muito dotada – atardou-se-me o seu amor ao trabalho, a comparação que
logo emendou por incomparável, entre amizade e trabalho. Em entrevista mais ou
menos recente, alguém se deitou a perguntar o que mais valorizava e respondeu
que os amigos não têm preço - são o sal da vida, digo eu - mas que sem o
trabalho não conseguiria viver. Não queria reformar-se e amava o desafio de
fazer novas coisas e cumprir horários. Hélas, minha cara senhora, já vou avisando:
vou desdizê-la como conseguir. Porque me apetece. E também porque falar com o
Além é do mais fácil, não existe contraditório. Além do mais, não imagino que
em vida me desse vossa mercê alguma atenção; e, creia, o inverso seria idêntico.
Pronto, vou apresentar-me senão vira
mesmo o narizito: sou uma reformada criteriosa e satisfeita com a condição.
Ponto. Mas é que não acabo aqui. Nada, não; é só o princípio. A senhora
desconhece, mas o trabalho na reforma devém imenso. Está certo, nunca se
reformou. Que o trabalho e tal e tal. Mas olhe lá minha dona, julga a senhora
que as mulheres que conheço – está bem, admito que noutros países e mesmo
neste, noutras classes sociais não seja bem assim – e são reformadas, não
cumprem horários e estão de perninha cruzada a descansar no sofá? É verdade que
não inquiri nenhuma, mas a avaliar pelo que me pertence, apenas abandonei o
contra relógio – confesso que ainda bem, já custava a dar conta dos meus dias a
descair sobre noites incontroláveis -. Agora, é garantido: sou um ciclista da
volta a Portugal, pedalo que me desunho, mas menos esbaforida que no
contrarrelógio. Integrei o pelotão, digamos.
Senão, repare: a gente reforma-se.
E, sendo mulher, leva com a casa em cima por atacado. A casa e os atrelados: o
jardim, se haja; as flores se ainda não secaram; as varandas e os alpendres que
estejam vivos e mexam; as compras, Todas. Os doentes. E depois, você, minha
cara - a tal que não quis reforma – poderá não saber, mas teoricamente, os reformados
“fazem o que querem”. E have plenty of time. Nunca vi ilusão mais
parva! Ilusão dos outros, não de quem é pensionista. E menos do sexo feminino o
qual tomo aqui a meu cargo. Afinal, vendo bem, não sei falar de homens, são um
mundo à parte onde me estranho. Que eles sim, curtem sem pressa. Os que conheço,
vão para o café com amigos e por lá ficam até lhes desapetecer; passeiam os
netos e são uns queridos para eles porque não lhes fazem as sopas nem os bifes,
raro lhes aturam as birras, não lhes lavam a roupa nem varrem a casa ou aspiram
a sala depois daqueles montões de areia que arranjam não se sabe onde e trazem
não se sabe como para dentro de portas; não arrumam os legos espalhados pela
casa em inata tendência para o entre portas.
Por
outro lado, as nossas queridas crianças, sangue do nosso sangue, rebentos
viçosos que estremecemos, se se deitam à sesta querem a cama dos avós e não
raro sujam as colchas e as almofadas porque nos esquecemos de um rebuçado ou metade
de um chocolate pegado à prata; ou então cismam de beber o leite na caneca x e
y sentados na cama e embirram que “já são grandes” e vão beber sozinhos. E,
claro, entornam tudo.
Enfim.
…há um mundo de coisas a cair, não equitativas, sobre os avós.
Oh!
E as férias?! Um manancial de êxito. Se não haja netinhos, os filhos estarão
ainda em casa. Trabalharam ou estudaram ano inteiro, merecem descanso.
Portanto, afadigamo-nos em pródigos almoços e jantares a esmiuçar de cabeça o
que cada um mais aprecia. Se estudantes com trabalho de férias, ai que deus que
não pode nada, coitadinho, anda a ganhar para ele e nem interessa quanto
amealhe, aprende o que custa viver. E logo os nossos horários de tudo saem
obedientes ao turno. Se acaso saímos - o que nunca dá jeito nenhum - deixamos a
roupa arranjada, o uniforme pronto, as refeições cozinhadas. Os nossos meninos
trabalham. Merecem cama, mesa, roupa lavada. E nós, reformadas e sem trabalho,
disponíveis ano inteiro, arranjamos coragem e entramos em limpezas. Afinal é
Verão, os dias são maiores, e a casa também requer cuidados. Mas por que razão
não se para com a vida de hábito quando entramos em fase de limpezas? É que não
se entende. Nos centros comerciais, limpar exige cessar a função. Por que é que
não fechamos também para barrela, não colocamos um letreiro protector,
“encerrada para limpeza”?! Não. Limpamos sem falhar um átomo no circuito
quotidiano; mas o humor paga. E como. Ora, neste capítulo das limpezas grandes,
as alentejanas campeiam largamente; é que não deixam pedra sobre pedra.
Portanto, são as mais limpinhas - mesmo quando não parece, são – mas também as
de maior carranca. No fim de um dia de limpezas, ou tombam lassas e
involuntárias ou ficam pontiagudas, enroladas sobre si como ouriço espinhudo.
Oh,
mas a senhora, D. Lauren, não soube nada das portuguesas reformadas e menos das
alentejanas. Viveu uma vida que fez sua e não se assemelha. De trabalho (oh,
desculpe, mas dá-me vontade de rir esta sua afirmação). Pode até dizer que não
a aguentaria como elas, que mandava tudo às urtigas (não diz porque está morta
e os mortos…pronto, já se sabe, não podem retorquir).
Olhe,
é propositado, não concluo. Entendo que o Além é um exercício do puro pensar.
Deixo-a pois a matutar neste tipo de inferno em que se pode viver a desejar
que, pelo menos, terminem as férias dos outros. É um período fatal e muito
fatela. Pode crer.
Sinceramente
sua
Beatriz