segunda-feira, 29 de abril de 2013

"Os Olhos de Tirésias"


Há muito que não lia tão rapidamente um livro. Esclareço: rapidamente, são quatro a cinco dias. Os anos retiraram-me a pressa de terminar leituras e puseram-me no regaço pequenos prazeres que antes desconhecia. O fim de um livro, que antes me era meta, deveio até pequeno desânimo. Hoje, curto a leitura no mesmo sentido em que a pele curtida é cheia de sinais de tempo que a protegem de maiores danos: experimento-a em vagares de cerimonioso silêncio.
A obra surgiu-me no horizonte através de um blogue, lugar onde os livros surgem à velocidade da luz. E, vá-se lá saber porquê, atraiu-me. Este. Apesar de críticas potentíssimas e assisadas a n livros, uns de estreantes, outros de majestades sonoras, outros de gente que escreverá muito bem e que, talvez burramente, ignoro. E tudo isto entre escrita nacional e internacional. Comprei-o a sentir que tinha de. Uma espécie de dever intuitivo, difícil de palavrar. Acrescente-se que não fazia qualquer ideia acerca da autora, Cristina Drios. Sabia apenas que era o seu primeiro romance. E só agora, já terminado, vi a foto bem humorada da contracapa.
Sei que gostei do romance por me sentir capaz de comprar outro da mesma autora. Não parece uma primeira obra, é uma escrita rica, não linear e com muita pulsação. Ensina-nos um pouco o ambiente dos soldados portugueses na 1ª Guerra, a de 1914/18 em terras de França; e, nessa medida, exigiu pesquisa para além da dose maciça de imaginação que se nos oferece aos olhos e à mente. O livro gira em volta de algumas personagens todas muito fait divers, que se tornam importantes umas às outras com o desenrolar do enredo. Os principais intervenientes são um avô que foi soldado e uma neta que o não conheceu e lhe escreve a história (do avô, ou seja, o livro). E anda a neta um pouco palermamente, a oscilar entre um marido que a não encanta sem que entendamos porquê, mas pode ser só porque sim; e um fulano que conhece em França durante o tempo de pesquisa e logo um élan porque um beijo de despedida na gare. Depois, regressada a Portugal, já parece que não, sentimos que o francês perde espessura à luz da memória. Porém, no finzinho do livro está já com a obra acabada e seus achaques de dúvidas quanto a capas e títulos; sozinhita e a achar muita piada. Mas, por outro lado, espera a chegada do segundo homem que agora já lhe parece que sim. Os encontros amorosos são referência e mantêm-se no indescrito, talvez na fuga ao cliché. Ou, propositadamente, não, não. Procuro outra coisa.
É provável que eu tenha achado o que ninguém acha. Mas é que existo também para estes despautérios.

PS: Quando pedi o livro na FNAC, as meninas uns olhos arregalados ao desconhecido; disse-lhes que era recém nascido. Procuraram-no. Que já tinham vendido dois não sei onde. E ficaram numa hesitação sem palavras, que traduzi por, vale a pena continuar? E eu convicta, veja se o pode encontrar. Uma delas, cheia de profissão, olhos no écran...temos vinte em qualquer lugar; tem capa branquinha. E logo a outra, corpo de ânfora grega e olhos de atenção, a deslizar por prateleiras como se em vez de pés, patins; eles contentes, escondidos sob as calças, dançamos. E, pelo visto, venderam-me o terceiro exemplar. Senti-me a atirar uma lança para África. Eu. Que nunca fui à guerra. E desoriento até nas prateleiras das livrarias

                Um dia a Cristina ganha um prémio Saramago ou assim e esborracha-as com o êxito.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Reencontro


Dizer adeus é triste desolação. Por isso, as pessoas de quem me despeço não me despeço; arrasto-as na viagem da vida, puxo-as de cabeça, se for preciso. Que, na indiferença da memória, se indistanciam mortos e vivos. Mas alisam-me os reencontros. Buracos e saliências obliterados, devenho terra rasa. Súbito solo arável.
Assim te espero na vaga das estações. Em prece feita de tempo, atenta aos teus sinais percutidos nos búzios. Neles vive uma perdida lembrança do teu rumor. E depois da espera onde a saudade se sentou, percorro uma estrada comprida de regresso, irrompe-me a alegria do teu abraço e extasio de ti, ó Mar.
Avanças a beijar-me os pés uma vez e outra na fresca certeza de sermos os dois. Respiro-te. E logo a pituitária se liberta em euforia profunda. Eu sei as nuances do teu cheiro nas horas completas que o dia tem e inebrio em cada aspiração, os sentidos a escancarar janelas. E sou pés, olhos, ouvidos, nariz e pele. A absorver-te. Emudeço até que me abraças de brisa e me empurras de manso para a areia. E ali fico, em escuta. De ti.
Então, as ondas despem-me dos dias. E logo sobre essa que nasceu voam as horas, desatendidas do doce enleio. O tempo! Que sempre nos esfaqueia. Sigo o relógio na orla das ondas e afaga-me os pés o refrigério dos teus dedos de espuma. Que tanto me prendes sem me prender. Volto para ti uma e outra vez e logo, num pedido terno, me rodeia o teu jeito molhado. E um pensamento de ficar me avassala. Pousar tudo. Ficar. E vou deixando recados concêntricos, esperanças molhadas em cada passo que nos afasta.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Clarice Lispector


O que sei desta escritora que recusava sê-lo é quase nada. Li-lhe o nome pela primeira vez na FNAC. E admirei-lhe o exótico do rosto, a estranheza do olhar, a perfeita linha da boca. E mais me disse o nome que o resto. Porém, sou avessa a novidades. E tudo nela me pareceu misterioso. Deixei para quando.
Mas as ideias seguem, felizmente, uma linha indómita. Nós distraídos e elas a trabalhar-nos a vontade. Minam-nos. E nós em solilóquio, qual escritora? Já não me lembro, esqueci, não tem importância. E seguimos. Compramos outros livros. Vivemos…
 Uma tarde, um título a acenar-me da estante, um dedo de letras em riste, lê-me. Obedeci. Tem vezes que sou obediente; e não gosto de contrariar livros, acredito neles a pés juntos. Era “A maçã no escuro”. Imaginei uma maçã listada e vermelhinha e logo desfiz o imaginado; no escuro, nenhuma dessas características existe. No escuro, a maçã é maçã pelo cheiro, pelo gosto e pelo tacto. E o título passou a intrigar-me. Não era já a vulgar linguagem do desejo, mas o peso da escuridão no fruto. Li uma ou duas páginas e notei-lhe uma pureza e cuidado invulgares, espécie de amor respeitoso pelas palavras. Que me Convenceu.
Comprei aquele bocadinho de Clarice e andei com ele por vários lugares. A lê-la. E confirmei, é uma mulher enigmática, aforística, com uma realidade interna tão furacão que o mundo a que chamamos real desimporta, esvanece. O mundo dela é pouco igual ao de toda a gente e a sua hiper-realidade entra em osmose com ele e domina-o. Escreve em loucura mansa que me lembra a poesia. E também por isso a comprei. Nada sei dos estados de alma que a levavam à escrita. Mas, do que li, me parece possuída, embrenhada numa teia que tudo envolve. Entendo que os franceses não gostem de lê-la - há-de haver mais gente -, não creio que seja escritora de massas. Ainda hoje não terminei “A maçã no escuro”, cujo já supus chamar-se “O sabor da maçã”. Quando arrumei o livro pensei “que mulher com uma escrita tão boa e tão difícil”. E fui correndo no tempo. Que somos nós quem nele corre, a gastar-nos sempre; des-pensamos disso, mas vamo-nos rasgando pedaços, que não podemos retomar. Dizem os cientistas que a velhice é efeito da força da gravidade no nosso corpo perecível. Mas envelhecer é o cansaço vital. Pouco importa se fazemos bem ou mal, pouco ou muito, depressa ou devagar. É preciso compreender: não deixamos as marcas dos pés, deixamo-nos. E esta verdade é tão irrevogável como bela. De uma beleza irrestrita, comovente. Viva.
E um dia a minha irmã a olhar o rosto de Clarice, “Esta sou eu” e eu logo, toda óbvia, não não, é a Clarice Lispector. E ela no peremptório de si, quero lá saber, esta mulher é igual a mim, eu olho assim e tudo; portanto, sou eu. E Isabel Allende acendeu-se-me na memória, A minha família, depois de “A Casa dos Espíritos” ter passado a filme, substituiu o retrato do meu avô pelo de Jeremy Irons. Ele é muito mais bonito, fica melhor em cima do piano da sala. Olho melhor e noto. A minha irmã tem razão, são parecidas, têm o mesmo olhar estranho, em tristeza e desafio, as maçãs do rosto altas, um delineado semelhante dos lábios. Também por isso, comprei outro livro, “Laços de Família”, que bisa as primeiras impressões. E fui visita na exposição da Gulbenkian Clarice Lispector, A Hora Da Estrela.
Decepção. Não é admissível que haja uma exposição sobre um escritor – ela não queria, mas era escritora, sim –, sem livros. Livros verdadeiros. Capas. Folhas. Letra de forma. Lugares onde passemos os dedos e demoremos a mente. Está certo, a senhora era meio misteriosa, o nome de estrela quadra-lhe, mas é demasiada escuridão e tristeza pespegar apenas umas frases.
 Na exposição sobre Pessoa havia uma mesa enorme com livros que escreveu ou revistas em que participou e  uma sala com pormenores biográficos. Como é que se organiza uma exposição sobre Clarice e nem um artigo seu para os jornais? Os jornais onde estão que os não vi. Deveriam estar todos ou a maioria. Que é dos contos que publicava quando jovem? Quando é que esta gente se lembra que a música pode ser  hipótese… Onde as fotos familiares, os dados biográficos…A exposição vive do seu rosto de ucraniana jovem a lembrar uma actriz de Hollywood. E da repetição de algumas frases. Insinuantes. Escolhidas. E, na última sala, o vídeo da sua entrevista.
A ENTREVISTA, a única a que anuiu - não gostava de ser pública. E VALE. É de 1977 e tinha 57 anos. Lamento que lhe tenham retirado as perguntas. Mas de todo o modo, aprende-se nela. E conquista.
Poderei eu não ter visto a exposição toda?! Comigo, também isso é possível. E preferível.
Deu-me grande prazer aquele bocadinho em que estive a sós com Clarice Lispector ela mesma. É uma senhora.
“Quando não escrevo, estou morta, mas precisa um esvaziamento da cabeça para renascer.(…) Agora estou morta, não sei se vou renascer.” (um pedacinho da entrevista:)
Oh! D. Clarice! A senhora renasce de cada vez que alguém a Lê. Com o inteiro da alma. 

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Bolo de Laranja



Todos temos recordações que pensamos superiores às dos outros. Muito melhores. Estamos em grupo e quase nos ofende que os nossos amigos não as oiçam embevecidos e, à mínima aberta, queiram contar as deles, tão desimportantes e comezinhas. A um canto, se comparadas. Assaltam-nos de chofre e plantam-se no imediato, pernas afastadas e mãos atrás das costas, daqui não saio daqui ninguém me tira. E vem isto a propósito de ter feito um bolo de laranja. E de cada vez que assim, logo por dentro de mim se passeiam dias de sol intenso. Sou invadida por uma luminosidade que queima e vejo-me de chapéu de palha atrás da minha mãe. Vamos à nossa terra. Gosto bastante daquele terreno, ainda cheio de mato e sobreiros, onde a minha mãe diz que faremos uma casa com chaminé. E mal acredito que seja nosso. Vivemos em duas divisões de aperto, os desmedidos da chuva a respingar em telha vã, gelados no inverno e amodorrados de Verão.
Saltito atrás dela, contente daqueles passos, a minha mãe, está sossegada, ainda cais com esses pulos. E para mim é uma dança jubilosa e não saltos desajeitados. Penso que a minha mãe segue à frente e só por isso chama “pulos”. Respondo-lhe que vou a saltitar até à nossa terra para treinar (no dia seguinte hei-de gabar às minhas amigas a distância percorrida; enem por sonhos me ocorre aldrabar) e continuo o movimento enquanto pergunto mil coisas, a olhar para tudo que na hora de calor tenha a coragem de se agitar. De repente, esqueço-me de saltitar e corro atrás dos alfaiates azuis, os meus preferidos. A minha mãe chama-me quando deixa de sentir-me os passos.
 Volto à vereda no momento em que ela atalha pelo foro do merceeiro, um dos poucos que tem um hortelão a cuidá-lo. Nenhum garoto se atreve a passar ali. Estaco. A minha mãe apercebe-se e vai buscar-me pela mão, anda, vens com a mãe, não há problema. Obedeço reticente, os pés a fazerem força no chão, não queremos andarestamos com medo; as minhas pernas retesadas, numa dobra difícil de passos, voltemos para trás; os meus ouvidos mórbidos e exacerbantes, ouvindo latir por todo o lado. Corre que o hortelão é mau, vai atrás de qualquer criança que se atreva a pôr um pé na quinta. Bate-lhe, faz queixa aos pais. Com tais preparos, a ninguém ocorre espreitar. Ali, não há roubos. Todos sabem que solta os cães mal sente mexida nas ervas. Invejamos os filhos do merceeiro que comem cerejas e morangos vindos do foro e levam presentes vermelhinhos à professora.
 Seguimos as duas por um carreiro desconhecido, bordado de laranjeiras. Na ponta, uma cerejeira  debruça o redondo sobre o poço onde um burro tira água de olhos vendados. Paro. Deslumbro daquilo tudo. Desde o meio da vereda, a vontade de descalçar as sandálias, atormenta-me. O suave cantar da água no tanque  chama-me os pés instantes, imagino-me com as pernas lá dentro, para cá, para lá, e quase sinto o fresco a inebriar-me a pele. Mas fico calada, atenta a este mundo velado que poucos conhecem. A água do tanque é espelho que apetece. O hortelão está ali, as mãos mergulhadas até ao cotovelo, a cumprir em braços o meu desejo de pernas. Tira os braços muito depressa e admira-se de nós. A mente dele, serão miragem? E logo reconhece a minha mãe a cumprimentá-lo, querem alguma coisa? E ela, está muito calor e por aqui é mais perto para a nossa terra. Ele, vão lá, vão lá…sigam sempre por essa regueira abaixo.A minha mãe, muito obrigada senhor Francisco. E tomamos caminho. É um caminho fresco e recto, dos lados há hortaliças plantadas e regadas há pouco, cheira a terra molhada e já quente. Avanço pela regueira sem um desvio. A poucos metros, uma carreira de laranjeiras tem a caldeira solada. A minha mãe afasta-se do caminho e diz-me, continua em frente e não olhes para trás, a mãe tem de ir ali fazer uma coisa. Obedeço-lhe e continuo. Ela volta rápido e, no final da regueira, espera-nos um esbraseado que entontece.
            Apetece-me voltar para a sombra. Mas a minha mãe já à frente, a saca das ervas debaixo do braço, despacha-te, temos muito que fazer. Arrasto-me, esquecida de saltitar. E, quando chegamos ao terreno, a minha mãe passa-me a saca e vai sachar os milhos. No hábito do calor, divirto-me por ali a apanhar ervas e ver pequenos insectos, encho a saca e começo a arrancar matos. De repente, chega-me uma sede irrevogável. A minha mãe continua a trabalhar, o rosto meio vermelho, pequenas gotas de suor sobre a testa. Não temos água. Resmungo. Ela cerce, vai para a sombra daquele sobreiro e vê o que está na saca, a mãe já lá vai ter. Fui a correr, no desejo de uma garrafa de água. E lá no fundo, duas laranjas enormes, de cor viva, gritam “come, dá-me dentadas, tenho muito sumo”.  Mas fico especada, a olhá-las incrédula. Não lhes toco. Quando a minha mãe chega, mãe estão aqui duas laranjas… E ela, pois estão, apanhei-as quando passámos no pomar. E começa a descascar uma. E eu, mas isso não é roubar? As laranjeiras não são nossas… A minha mãe parte a laranja em duas e, sumo a escorrer-lhe por entre os dedos, oferece-me metade, prova tem ar de ser docinha. Agarro a metade em dedos moralistas, mãe, não é pecado? A minha mãe a mastigar dois gomos, Não filha, pecado é estar aquele chão solado de laranja e nós não termos uma para comer. Havemos de ter muitas laranjeiras e dar laranjas a toda a gente que precise. E logo eu me entusiasmo, ó mãe é tão boa esta laranja! E se nós à volta para lá levássemos mais umas? Então ela põe o seu rosto sério, eu não as apanhei para mim. Apanhei-as para ti; e não há pecado nisso, Deus não é mau. Mas, se eu lá vou, de propósito, tirar laranjas, roubo sim. E nunca me dês esse desgosto, filha. Se Deus quiser, tudo há-de mudar. Mas, se um dia tivermos que tirar alguma coisa a alguém é a mãe que tira. Promete. Prometo. E comemos as duas a outra laranja.
            É já  tardinha,  as duas sacas estão cheias de erva, já cantei tudo o que sei incluindo os cânticos da igreja que nunca excluo do reportório. A mãe está moída de trabalho. Trazemos os borregos que estavam na pastagem e, cada uma com sua saca à cabeça, regressamos. No caminho, deixo cair a minha várias vezes o que obriga a minha mãe a parar, amarrar os borregos, a equilibrar-ma de novo e depois ajudar-se a si mesma a subir a sua. Estas viagens divertem-me; e apesar de lhe atrasar o percurso, creio que a minha inépcia a chocar nos pinheiros, nela, ou até em puro desequilíbrio, a desanuvia.
            Chegamos a casa. A minha mãe anuncia, vou fazer um bolo de laranja. Eu, varada, não temos laranjas. E ela, quem é que te disse? E tira mais duas iguais às outras. E eu num misto de alegria e tristeza, mãe… Ela já a untar a forma, tu gostas tanto deste bolo e nunca o posso fazer…apanhei quatro; escondi estas senão com a sede eramos capazes de as comer. Então, abraço-a com muita força e repito sem originalidade, gosto tanto de si, mãe. E ajudo-a como posso, raspo a casca da laranja, bato as claras e ela faz o sumo porque tem mais jeito e não podemos desperdiçar o néctar precioso. No fim, dá-me a comer o que sobra das laranjas.  Mesmo sem sumo, eram laranjas. Deliciosas.
            E que melhor sabor podem ter os meus bolos de laranja?

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Percalços de Improviso


Há pessoas a quem a pressa levanta um imediato desacato de vísceras que só empata; as que coagulam, inertes; as que atoleimam e se perdem em perguntas tolas. E mais. A minha mãe pertencia às primeiras, eu às segundas, a minha tia, banhada em sorriso e sangue frio, a nenhuma delas. Entretanto, a nossa vizinha desaparecera e o automóvel com matrícula francesa subia lentamente até ao monte. E eu numa angústia, o que é que faço? A minha tia, lógica, o que é que fazes? Vais atendê-los, filha; falas com eles. Só tu é que sabes francês. E a minha mãe em corujinha pressa a impelir-me, o calor das mãos a repassar  cuidados nas minhas costas, não podes ir assim, o vestido quase não te serve, veste outra coisa. Dei um passo e logo ouvimos bater na porta da frente. Parámos. Então, a minha tia empurrou-me para o corredor, ó filha vai assim, qual é o mal? E logo a minha mãe a abrir a porta do quarto, enervada de dedos, um leve rubor de autoridade no meio tom abafado em que a voz lhe saiu, Beatriz, veste outra roupa, o vestido não te serve; está todo desabotoado à frente. E antes que eu entrasse, a mão da minha tia a insistir-me na omoplata, uma leve pressão em direcção à porta da rua, ó filha estás boa, mais botão menos botão, deixa lá a roupa, vai mas é abrir a porta. E ficámos as três do lado de dentro, a porta a separar-nos das silhuetas no postigo, perfis selados de carta gigante. Cada uma puxava-me e empurrava em sentido contrário. Para desempatar, entrei no quarto, vesti à pressa outro vestido, a minha mãe e a minha tia eclipsaram e abri a porta.
Deparei com quatro ou cinco gigantes, todos jovens e com ar de quem viera a pé desde Braga. Soube mais tarde que tinham palmilhado cinco quilómetros por desconhecimento do espírito alentejano, que situa tudo “já ali”. Apresentámo-nos meio envergonhados, chamaram os pais que continuavam no carro e fomos para a sala. Sentaram-se à vez, que não havia cadeiras para todos. De imediato, gostei dos pais da Bernardette. E dela. A foto não dizia a doçura daquele olhar azul. Um dos irmãos era já estudante universitário e vinha acompanhado da namorada, facto que me deixou étonnée; os namoros que conhecia não tinham tal liberdade. Não esqueço os seus olhos de troça enquanto me dizia, um dedo cheio de tiques, quase a furar o papel, vous n’avez pas ça, vous n’avez pas le droit. E agitava-me um jornal em que Charles de Gaulle estava sem cuecas e a mostrar o traseiro. Pareceu-me mau gosto um presidente escarrapachar-se num jornal, a toda a página, de calças na mão; e não ardi de simpatia por quem me mostrou tal imagem como se fosse grande coisa. No meu íntimo, duvidei mesmo do juízo do presidente francês. Jamais Marcelo Caetano Ou Américo Tomaz o fariam. Só Abril de 74 me deu a hipótese de entender a foto e o jovem. E bem mereci o esgar trocista com que então me brindou ao ver que não o entendia de todo. Entretanto, o assunto esgotava-se, eles estavam visivelmente cansados e encetavam conversas em surdina que me alteravam o conforto. Para renovar o ambiente, resolvi apresentá-los a minha mãe e tia e levei-os à cozinha grande.
A boa disposição da minha tia era à prova de bala. Enquanto a mãe se limitou a beijá-los um a um, sem uma palavra e bastante enleada, a irmã começou por, com olhos inocentes de que devia ter desconfiado, me pedir que lhes perguntasse se entendiam ou falavam alguma coisa de português. À resposta de que apenas conheciam obrigado e se faz favor, tirou desforra. Cumprimentava a Bernardette e dizia com um sorriso impecável e acolhedor, sua desgraçada! Diz que vem num dia e vem no outro. Ai filha, que gorda que ela é! Não podias ter arranjado uma amiga mais magra? Beijava o universitário e, rindo para ele desvanecida, logo vi, este é que era bom para ti, bonito, magro, mas já traz a serigaita atrás, ó filha muda mas é de correspondente; se quiseres, a tia envenena a namorada. Quando beijou os dois gémeos, com ar muito inocente, a gente já cá tem pouco gaiato, vêm mais estes; ai que gordos que eles são, se caem em cima de algum dos nossos, esborracham-no. O que dá a gente de comer a esta cambada toda? E muito afável a beijar a irmã mais nova da Bernardette, mais outra? E gorda. Olha para estas pernas. Mas o engraçado foi enquanto beijava os senhores, Então mas esta gente não ouviu falar da pílula?! Ranhosos, estes é que são os culpados, filha; deviam era ser presos. E agora eu que me mate a trabalhar para eles. Ria-se para todos muito simpática e dizia-me, ó filha tu tira estes desgraçados todos da minha frente que ainda tenho de lhes dar jantar. Leva-os para bem longe que temos de ter tempo para fazer outro jantar. Senão dou uma sova a cada um e ficam jantados. Tira-me esta corja daqui. Tudo isto olhos nos olhos, em voz maviosa e no tom doce e cordato de quem assume a beleza  do crepúsculo. A minha mãe, que era um passarinho tímido, não conseguia parar de sorrir e eu custava a dar conta de mim.  Apresentava-os um a um enquanto ia ouvindo os dichotes; e de vez em quando escapava-se-me uma gargalhada pequenina que punha os franceses de orelha em pé, a olharem para os calções, para os ténis e etc., na suspeita de rirmos deles. Esta atitude acicatava  a provocadora da minha tia que mais lhes jurava pela pele, tira-me daqui estes estafermos estuporados senão ainda dou um pontapé no cu de algum que vai a rebolar até à cova. Muito educados, muito educados! Não têm vergonha de se apresentar na casa de uma pessoa com tanta gente. Nem eu que não estudei, fazia uma destas. E ainda por cima vêm um dia antes, deviam estar com medo que a gente fugisse. Mas, mal eu fervia o riso, por baixo da voz dela, a minha mãe era água calma e fresca, Beatriz… Beatriz… e creio que assim me salvou de rebentar às gargalhadas. Convidei-os para jantar e eles, mais non... mais non…beaucoup de personnes… E aceitaram contentes. Como tinha de os tirar de casa e ignorava os quilómetros palmilhados, propus-me mostrar-lhes a minha terra – que na verdade nada tem para ver. Eles, desanimadíssimos. Bem o notei. Mas até o meu pai obedecia à cunhada.
Já nós na rua, chegam os meus irmãos e os meus primos. E logo um foco de atenção.  Abandonados a si mesmos, tinham subido aos pinheiros, tirado os pinhões e como a fome apertava, partiram-nos e comeram-nos todos. E, quando a tardinha presente, resolveram voltar. Sem nada. Pareciam palhaços ou ciganos. Todos traziam uma boca preta extra a circundar a verdadeira, cheia de veios negros. A sujidade de roupa e corpo era uniforme e constante. As minhas irmãs escondiam sem sucesso as  bainhas dos vestidos deitadas abaixo de se encavalitarem nos pinheiros; e o meu primo tinha caído sobre um vaso de resina e estava uma lástima peganhenta, as mãos coladas aos braços do meu irmãozito que viajava às cavalitas, pézitos inquietos de satisfação. Vinham desgrenhados e com carumas nos cabelos. Logo rodearam os franceses de afável curiosidade  e envolveram-nos de largos sorrisos de boca dupla e dentes crivados da pele fina e alaranjada dos pinhões. Contentes das visitas até mais não poder.
Penso que os franceses nunca tinham visto um grupo assim. Era um conjunto notável. De que não me lembrei de me envergonhar senão nos primeiros segundos: os garotos estavam cómicos e tão contentes que não havia como ralhar-lhes.
O naipe francês, petrificado. Mudo e quedo. E quando eu comecei, mon frére, ma soeur, ma cousine,…. O queixo descaiu-lhes involuntário.
O que pensaria aquela gente de nós?