quinta-feira, 28 de setembro de 2017

À Descoberta

Não sei se as coisas mudam de acordo com os espaços que ocupam, mas talvez  a mudança nos dê a mão a nós e sejamos uns aqui e outros acoli. Nada de apôr ao mundo o poder que não tem. Coisas são coisas. Estão. E a beleza do quotidiano depende de um sujeito para existir, ele é a possível variação. Quase pueril, o belo vive-nos num raio de sol, na pena que a brisa levanta, na poeira nebulosa que o vento arrasta em remoinho, na pressa que agita braços e tranborda do corpo, evitando o passo dos velhos que hesita vagares e palpa chão.
            Contudo, há males que vêm por bem. São males convertidos ao outro lado, uma espécie de cristãos novos do nosso sentir. Foi assim no dia em que resolvi visitar o, para mim incógnito, Palácio da Ajuda. Que, com a minha pontaria e falta de tudo (não apenas falta de sorte), estava encerrado. E portanto. Visitei, quase em frente,  o Jardim Botânico, o mais antigo jardim de Lisboa. Data do tempo em que D. José, depois do terramoto, por ali mandou edificar, em madeira, a Real Tenda. E para lá se mudou, duvidoso de edifícios em alvenaria. É pois um jardim lindo e velho. Cheinho de artroses apesar da reabilitação. Onde os nossos reis e rainhas passearam devaneios e inquietações e olharam o Tejo sabe Deus com que olhos. Que acrescentaram de espécies exóticas e Junot saqueou sem dó. Que, provavelmente, os lisboetas olvidam, na febre de natas de Belém e Jerónimos e Torre de Descobrimentos e demais história de peso. E não apenas eles. Que o encontrei quase sozinho ainda que o curso de agronomia por ali faça das suas. Deambulei entre árvores centenárias de temíveis raízes egocêntricas, raízes fantásticas e denodadas que partem bancos de pedra e não se sabe se sustentam troncos e copa, se lutam contra eles. Em tudo, o mesmo se repete: com a idade, as raízes crescem, invadem, e o seu vigor ameaça a realidade aérea. Observei os efeitos do tempo em troncos esventrados, que sobrevivem com auxílio, bengalas de metal a endireitá-los, que a coluna vertebral das árvores também sofre. São árvores em fim de ciclo. E a gente passa com respeito por tão longa vida. Continuam como sempre: quietas, paradas, sujeitas às estações. A algumas o tempo esgarnou hastes e tronco, a outras encaneceu. Mas olham ainda a paisagem, contemplam de alto a beleza do Tejo, embebem nos barcos de brincar que ali vogam. Descanso num banco inundado por retalhos de luz que espreita em intervalos de folhedo. E creio que sou feliz. Sou feliz pelos braços soalhentos e olhos fixos no longínquo azul a colar no céu, pelo quase silêncio e por nada me ser exigido, imersa no consentimento de me deixar tomar pelo agora, levada por doce insinuação de sol e claridade. Flutuo. Olho por dentro as orquídeas das estufas que espreitei lá atrás. Lindas e únicas. Espécies vivazes, mas circunscritas. Vizinhas umas das outras.  Perguntei, achas que são felizes?, e ela, não sei. Pergunta retórica, sei a resposta. Nenhuma flor é feliz em cativeiro, sem o alimento dos olhos de outrém a catalogar. A indefinida existência de flor  é vaguidão.

Não sei o que pensaram D. José ou o senhor Marquês de Pombal ao construir este jardim. Mas sei, de certeza, o que sinto a passear dentro dele, a desvendá-lo em princípio de tarde clara, a inscrevê-lo e inscrever-me por surpresa e maravilha. Nas estufas reais e gradeadas, as orquídeas. Sem visitas. Flores lindas e máximas. Preferência de D. Luís. Fixas em retintas cores. Carnudas e arqueadas. Reunidas. Jamais vi flores de tal tristura.

domingo, 3 de setembro de 2017

Parque Eduardo VII e Eu

Defendo, acima de tudo, o prazer das pequenas coisas. Em primeiro lugar porque as grandes não me fazem parte do caminho. Em segundo, tenho em pouco apreço infelicidade e desamor sistemáticos. Claro que na viagem me surgem buracos negros, poços de ar, tempestades, o diabo a sete que, por vezes, me parece setenta.  E não, não julgo que sejam todos produto do acaso. Sei bem que muito contratempo vem de mim e por mim. Bom,  que é como quem diz, pior. Nesta linha, as minhas fantasias nada têm de extraordinário. Não são, infeliz e felizmente, de natureza erótico-sexual. Digo infelizmente porque a sua satisfação ia dar-me um prazer inédito e lupanar; e felizmente porque tal me exigia outra pessoa que, neste ambíguo, os prazeres solitários não são bem a minha praia; ora tudo que exige outros, acresce em dificuldade. E, portanto, nem sei se é pela razão de felizmente, se só porque sim, são fantasias  bem comezinhas. Mas não faço por menos: tomo-as por vitórias. Para que seja isto coisa entendível, conto  uma desde a origem.
Na casa dos vinte, eu não era nem um pouco inédita (ainda não sou). Como tanta gente apressada que enchia comboios e barcos, vivia na margem sul e estudava em Lisboa. À ida, os barcos atulhavam e sentia-se no ar um burburinho de vida retemperada pela noite; no sentido inverso, traziam conversas ciciadas e silêncios, bocejos, cansaço sem rédea e olhos baços sumidos em covas e papos. Os próprios pareciam extenuados, chiavam em queixa demorada e havia um desmazelo poluente que se espalhava pelos bancos adormentados e engolia o oxigénio do ar.  Por mais que arenguem os noctívagos, a noite existe, sobretudo, para o descanso do mundo. Não apenas das pessoas. De tudo que existe.
Nesse tempo, uma das minhas dilectas amigas estudava e vivia de empréstimo em casa de uma madrinha, em rua que não sei, muito perto do Parque Eduardo VII. Aos fins de semana, seguíamos ambas para a outra margem. O meu conhecimento com este parque de Lisboa remonta a essa época. Jantávamos na cantina da faculdade onde não se pediam cartões e rumávamos ao destino, com passagem por casa da madrinha para arrotearmos o saco de fim de semana. A atalhar caminho, atravessávamos pelo meio do Parque e estávamos no Marquês em três tempos. Suponho que, uma vez ou outra o tenha visto antes. Talvez por alturas de greve no metro, mas passei sem lhe ligar meia, toda afadigada com as horas, o meu tempo controladíssimo, a greve a arruinar-me o esquema. Ainda hoje não consigo saber as ruas que o percorrem, mas, pitosga e desorientada quanto baste, nocturnamente, deixava-me guiar pela amizade. Seguia ao sabor da sua sabedoria. Via umas sombras por lá e lembro-me de pensar que, com ruas tão iluminadas e bonitas logo ali abaixo, não se percebia para que andavam as pessoas a passear no escuro (não seguiam como nós, às pressas). Aquilo era mesmo um bocado sombrio, ouvia resmalhar atrás das moitas, mas pensava que fossem coelhos ou passarada. Passava o tempo a levantar os pés temerosa de covas e cabeços que nem havia e ríamos ambas feitas tontas. Havia gente que nos seguia, mas sempre pensei que o caminho não era só nosso e portanto até me sentia acompanhada. Até que certa vez um senhor que se demorava por ali, nos interpelou ao escuro e eu como sempre a pensar que queria informações, atrapalhada, agora pergunta por uma rua e eu não sei qual é. Quis saber o que andávamos a fazer àquela hora no parque. E eu, ela mora ali num prédio daquele lado e o caminho fica mais perto assim. Ele, isto é muito perigoso para duas meninas como vocês. É melhor descerem a rua por ali ou por ali - o braço a apontar as duas ruas paralelas -, não passem mais por aqui. E nós agradecemos muito, eu para a minha amiga, tu achas que há aqui ladrões ou assim? Mas a gente não tem dinheiro, o que é que nos podiam roubar, de certeza não queriam o passe... Mas não voltámos a passar por lá.

Um dia, fomos as duas à Feira do Livro. Eu e ela. Diurnas, diáfanas e sem tostão. Gostei do Parque até mais não poder que livros só vê-los. E nasceu a minha fantasia: deitar-me naquela relva. Todos os anos a olhava a pensar, “é este ano”. Olhava e havia lá gente solitária e acompanhada, deitada, sentada, a descansar,  conversar, namorar, ler. Pensava, “é só ir para lá, ninguém me nota”. Mas não conseguia. Anos e anos disto. Muitos. Muitíssimos. Dezenas. Passava de autocarro ou de carro e um enlevo no relvado, tenho de me deitar ali, tenho de lá estar nem que seja só uns momentos. Chegava outra Feira do Livro, tanta gente a flanar, ambiente propício, era só aproveitar. E nada. Saía a constatar num desalento, “ainda não foi desta”, os jacarandás, “aselha! Que é que custa ires lá para dentro e deitares-te, hoje é que era”. Até que houve um dia em que, hélas!, consegui. Entrei, andei lá por dentro como quem caminha sobre nuvens, deitei-me na relva, o volume de poesia de Ruy Belo sob a cabeça. E nunca o céu me pareceu tão azul nem o cheiro de relva tão seráfico. Não se descreve a frescura da terra sob o corpo um friozinho agradável a entranhar roupa dentro, a chegar-me à pele antes desapercebida; e o cheiro, a sensação do azul sobre mim, a coragem de estar ali. Foi um momento supremo. Coisa irrepetível. 

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

História Esquisita com Beldroega

Bonito. Ali estava eu acocorada e de braço no ar. Eu e um homem que mal via contra o sol (ai os óculos, ai o chapéu). Baixei o braço. Levantei-me. Juro que ele não buliu, figura sólida e consistente. Confirmei, não era fantasma ou morto-vivo. Olhei franzidamente o rosto escurecido contra a claridade, traços sombrios e  indistintos. Usava óculos de sol, coisa que aos mortos não lembra se lhes dá para aparecer.  Puxei da minha tonalidade mais saturada, aquela que a minha avó apelidava de “desimpaciente” e respondi, não tenho lume, não fumo. Não se moveu. E eu, mau Maria, não querem lá ver que não me respeita a idade e nem o lugar? Acrescentei, procure noutro sítio. Então ele mudou de lugar e, à claridade alentejana vi-lhe o rosto. Em jeito afável, sorriso de olhos longínquos, invectivou quase doce, não me conheces, mas conheci-te mal te pus os olhos, carregavas um balde com água. E eu já a abraçá-lo numa alegria também temperada de antigo, cheia de gregas e colchetes pegadiços, Octávio!...que é feito de ti? Há quantos anos...Ele a explicar-se, vivo por aqui, se vou para o outro lado, atravesso pelo cemitério. É mais perto, não tem ninguém e despacho-me num instante. – e a escorrer troça bem humorada, aquilo do lume era a brincar, só para me reparares; há muito que não fumo.
Esqueceu a pressa. Esqueci o sol na moleirinha e a beldroega. Esquecemos o lugar. Num cemitério cheio de sol, atardámos à conversa de muito ano, pergunta aqui, recorda ali, até ao toque da sineta. Era a hora de almoço. Despedimo-nos afogueados e suarentos, com promessas de reencontro, um café, um lanche em lugar fresco, só para desdobrar assunto. Meti-lhe no no bolso o meu número de telemóvel, enfiei os apetrechos no saco, a beldroega maneta a olhar-me intempestiva, tufada de rancores. E rumou cada um para seu lado. No regresso,  ainda imersa em novidade e agradada do acaso, notei o quanto nos tínhamos perdido em memórias sem assomo de presente. Contudo, ele levara o meu contacto e tinha-me parecido contente com o encontro; havia tempo para.
Mas a vida enrola-se-nos à cintura e exige. Entrei em casa e os chamados instantes da realidade mais a vizinha que uma ambulância levou já sem vida, varreram-me o encontro feliz. Só voltei a lembrá-lo quando, à tardinha, em regurgitação de cansaços, visitei minha irmã. Estávamos à mesa – é à volta de mesa posta e redondas conversas por entre a mastigação que esmiuçamos novidades – e contávamos as pequenas bagatelas que desoprimem as mulheres. Minha irmã é prazeirosa de ouvir, conta a cores e faz de tudo uma história. Tenho certeza que aquilo que tão bem encadeia, só é bonito e alegre por ser ela a contá-lo. Domina a suprema arte da oralidade. Esguia as palavras, prolonga uns sons, encurta outros, e dá, a cada, um novo fôlego.  Porém, a mente é sinuoso ruminante; descontraída, compraz-se a trazer à consciência o que antes esqueceu. Por entre o conversedo, trouxe-me o Octávio. E, pela primeira vez, reparei na impressão agradável que me deixara. Virei-me para ela, não adivinhas quem encontrei hoje....e ela toda olhos em ponto de interrogação, quem foi. E eu, o Octávio, aquele garoto que vivia na nossa rua quando começámos os estudos, lembras-te? Ela pasma, olhos em bico que é como quem diz redondos de admiração. E torno, grande surpresa, ham, nem perguntas como está. Ela a fixar-me de mão estendida e faca paralisada a meio de uma fatia de bolo, esse Octávio não foi de certeza, o rapaz morreu vai para mais de dez anos. Eu, não pode ser, pois se o vi, dei-lhe o meu número de telemóvel e tudo. Ela séria, deixa-te dessas coisas, o rapaz morreu, então não te recordas? E não me recordava. E também tinha certeza, era ele.  Mas a faca ainda estava parada a meio do corte e disfarcei, tens razão, deve ser confusão, ele disse Octávio e lembrei-me desse, mas deve ser um colega da secundária. Não faças caso. E a faca desceu suave até ao breve estalido de bater no prato de loiça e a fatia já separada, a querer tombar. E eu para dentro, atónita até ao mais fundo de mim, que grande imbróglio.
É noite fechada. Estou em casa. Penso no Octávio. Nele. O único que conheço ou conheci, que não é nome muito usual. Bem sei com quem conversei e sobre que assuntos. Era ele inteiro, o que estudou comigo, morou na minha rua e muito livro trocámos até à sua mudança de residência e de cidade. Não há engano possível, era ele. Mas confirmei com amigos, eles ao telefone, morreu mesmo, é verdade, sim. Soube que está enterrado naquele cemitério. O mais incrível é que não me assusta a certeza de ter estado à conversa com um morto.  Contudo, não sei se volte que os sardões já me afastavam qb, entrava a arrastar os pés só para lhes dar azo à fuga.

Não pode ser, não apanhei sol a mais. Eu não o inventei. Ele levou mesmo o meu número de telemóvel, tenho meia folha da agenda rasgada a comprovar (e a beldroega maneta, que assistiu a tudo). Um dia destes, quem sabe, encontramo-nos com um refresco na frente. É um morto? Ora, a mim tanto se me dá.