O
cinema está nos meus favoritos. Até aqui
nada de novo, há muito cinéfilo nos caminhos do mundo. No entanto, vi poucas
fitas e quase não me lembro de estar nas salas de outrora. Recordo vagamente o
S. Jorge onde a Barbra Streisand me levava por contacto vocal. E um fulano em
pose, a olhar-me fixamente à beira do
corrimão, eu estranha e deslembrada, este quem é, parece que já o vi em
qualquer lado. Eu na fila para a casa de banho, o peso do corpo ora num pé ora
no outro, já o vi, terá sido numa loja, ou será colega de profissão; eu na casa
de banho em malabarismo de saias – que mania, vestir saias no verão - a fazer pontaria à sanita sem tocar no
assento, sabe-se lá quem é que ali se sentou, conheço aquela cara de onde santo
Deus. E Deus lá no seu Olimpo, repimpado numa almofadinha de nuvens, a encolher
os ombros, chamam-me para cada coisa, a mulher é parva, decerto. E eu a subir
umas peças e baixar outras, compondo-me, já o vi, tenho certeza que o encontrei
em qualquer lado. Saio com as mãos a pingar decisão, vou perguntar. E ele
pregado ao início da escada, a gozar um cigarro descontraído. Eu em alerta
máximo, a pergunta a cristalizar no seu gesto de mão, oh, já sei, é actor (palermice, conhecer as pessoas pelos
braços). Os olhos vaidosos fixos em mim, não me conheces, olha-me, repara-me. E
eu desalentada, tanto tempo para isto. E cá dentro um pouco contente, reparou
em mim. E fui sentar-me no escuro, a Barbra Streisand a fazer um estardalhaço
sala fora.
A
outra vez que me ficou na memória ainda hoje me deixa atónita. Palavra que não
entendo o fetiche dos homens com as mamas das mulheres. Se acaso olho as minhas
não lhes encontro nada de especial. É certo que, para além das que vejo no
cinema, pouco me foi dado observar outras ao vivo (no colégio aprendemos a arte
de vestir e despir dentro da roda da camisa de dormir e só conhecia as
extremidades das colegas; ainda assim ali criei boas amizades e que dispensam
perfeitamente essas partes do corpo). E vem esta conversada ao embalo da minha
estranheza: aceitei ir ao cinema com um colega de turma e ele, para aí a meio
do filme, repentinamente e sem que nada o fizesse prever, meteu a mão pela
minha camisa, suponho que à procura de uma mama que dinheiro era coisa que não
tinha nem para gastos quanto mais guardá-lo no sutiã. Por incrível que pareça,
para além da estupefacção do gesto e do meu recuo involuntário a meter-me toda pelas
costas do assento, só me lembro de lhe enxotar a mão, sentir-me vexada e ter
tido uma vergonha enorme que me pôs as sudoríparas a todo o vapor, mas sem
coragem para o estalo que ele merecia. É
claro que o filme me morreu logo ali. E aquele colega também.
Contudo,
eu trazia boas memórias da infância: “Tintim e o mistério das Laranjas azuis”;
e lera vezes sem conta e com fraco entendimento, os livros das minhas tias da
colecção cinema, Casablanca, A condessa descalça, vários exemplares da Sissi, O
homem do braço de oiro, e outros que não me lembro. Naqueles livros, nenhum
dedo a esgueirar-se para sutiãs. Fiquei tão chateada que, no filme seguinte, “O anjo azul”, tive o cuidado de deixar uma
cadeira de intervalo entre mim e a companhia, coisa que acho lhe causou certa
estranheza. Adorei o anjo azul sem mãozinhas. E acho que o meu colega também se
encantou nas pernas da Marléne. Que eu, gostei dela inteira. O cinema era-me,
então, um esplendor raro.
A
cinefilia nasceu-me com o surgir do auditório municipal, mercê da aposta em
bons filmes para fraca assistência. Em Portugal, as pessoas têm um mar de fazer
inveja e ficam a torrar ao calor sem lhe chegar perto, auditórios e
espectáculos quase grátis que estão às moscas, gente da escrita que se desloca
e fala para quase ninguém.