sexta-feira, 29 de julho de 2016

Fitas à Vista do Écran

O cinema está nos meus favoritos.  Até aqui nada de novo, há muito cinéfilo nos caminhos do mundo. No entanto, vi poucas fitas e quase não me lembro de estar nas salas de outrora. Recordo vagamente o S. Jorge onde a Barbra Streisand me levava por contacto vocal. E um fulano em pose, a olhar-me fixamente  à beira do corrimão, eu estranha e deslembrada, este quem é, parece que já o vi em qualquer lado. Eu na fila para a casa de banho, o peso do corpo ora num pé ora no outro, já o vi, terá sido numa loja, ou será colega de profissão; eu na casa de banho em malabarismo de saias – que mania, vestir saias no verão -  a fazer pontaria à sanita sem tocar no assento, sabe-se lá quem é que ali se sentou, conheço aquela cara de onde santo Deus. E Deus lá no seu Olimpo, repimpado numa almofadinha de nuvens, a encolher os ombros, chamam-me para cada coisa, a mulher é parva, decerto. E eu a subir umas peças e baixar outras, compondo-me, já o vi, tenho certeza que o encontrei em qualquer lado. Saio com as mãos a pingar decisão, vou perguntar. E ele pregado ao início da escada, a gozar um cigarro descontraído. Eu em alerta máximo, a pergunta a cristalizar no seu gesto de mão, oh, já sei, é  actor (palermice, conhecer as pessoas pelos braços). Os olhos vaidosos fixos em mim, não me conheces, olha-me, repara-me. E eu desalentada, tanto tempo para isto. E cá dentro um pouco contente, reparou em mim. E fui sentar-me no escuro, a Barbra Streisand a fazer um estardalhaço sala fora.
A outra vez que me ficou na memória ainda hoje me deixa atónita. Palavra que não entendo o fetiche dos homens com as mamas das mulheres. Se acaso olho as minhas não lhes encontro nada de especial. É certo que, para além das que vejo no cinema, pouco me foi dado observar outras ao vivo (no colégio aprendemos a arte de vestir e despir dentro da roda da camisa de dormir e só conhecia as extremidades das colegas; ainda assim ali criei boas amizades e que dispensam perfeitamente essas partes do corpo). E vem esta conversada ao embalo da minha estranheza: aceitei ir ao cinema com um colega de turma e ele, para aí a meio do filme, repentinamente e sem que nada o fizesse prever, meteu a mão pela minha camisa, suponho que à procura de uma mama que dinheiro era coisa que não tinha nem para gastos quanto mais guardá-lo no sutiã. Por incrível que pareça, para além da estupefacção do gesto e do meu recuo involuntário a meter-me toda pelas costas do assento, só me lembro de lhe enxotar a mão, sentir-me vexada e ter tido uma vergonha enorme que me pôs as sudoríparas a todo o vapor, mas sem coragem para o estalo que ele merecia.  É claro que o filme me morreu logo ali. E aquele colega também.
Contudo, eu trazia boas memórias da infância: “Tintim e o mistério das Laranjas azuis”; e lera vezes sem conta e com fraco entendimento, os livros das minhas tias da colecção cinema, Casablanca, A condessa descalça, vários exemplares da Sissi, O homem do braço de oiro, e outros que não me lembro. Naqueles livros, nenhum dedo a esgueirar-se para sutiãs. Fiquei tão chateada que, no filme seguinte,  “O anjo azul”, tive o cuidado de deixar uma cadeira de intervalo entre mim e a companhia, coisa que acho lhe causou certa estranheza. Adorei o anjo azul sem mãozinhas. E acho que o meu colega também se encantou nas pernas da Marléne. Que eu, gostei dela inteira. O cinema era-me, então, um esplendor raro.

A cinefilia nasceu-me com o surgir do auditório municipal, mercê da aposta em bons filmes para fraca assistência. Em Portugal, as pessoas têm um mar de fazer inveja e ficam a torrar ao calor sem lhe chegar perto, auditórios e espectáculos quase grátis que estão às moscas, gente da escrita que se desloca e fala para quase ninguém. 

quinta-feira, 28 de julho de 2016

O Homem que Viu o Infinito

Intuía as verdades matemáticas. Convicto de que lhas soprava a deusa enquanto dormia e rezava e, por isso, quase vivia no templo. Era um génio. Vinha da Índia indigente, enredado em hábitos e preceitos religiosos e vicejava arreigado nas  profundidades da crença.  Ora, para o genial não há explicação. Jeremy Irons - no filme um muito british matemático de Cambridge, tão brilhante como inconspurcado pelas virtualidades da sensibilidade - cria, ou pretende criar, o ambiente asseptico e racional onde o seu pupilo – que chama da longínqua Índia -  não desliza, não caminha, não consegue viver. Como adiante se verá. Acrescento, a história tem base real.
Para a maioria, o tema do filme, que decorre durante a primeira guerra, é a amizade matemática entre o autodidata S. Ramanujan e o eminente professor G. Hardy.  Uma narração dramática do encontro entre duas mentes geniais, de natureza e origem diversa.  O que ambos descobrem é um inédito matemático, um impossível tornado possível pela mente humana. Ou vários impossíveis. A fita deixa uma certeza: Hardy sentiu-se tocado por Ramanujan. Sentiu-se. É o termo. Que Ramanujan era de um respeito que nos lembra os intocáveis a varrer o chão que pisam e a recuar, e quase não o tocou.
Julguei antecipadamente - com preconceito, admito – que ia apreciar Jeremy Irons em todo o seu esplendor e ele salvava o que houvesse. É um actor que não decepciona. Mas Dev Patel, que já vi noutros papeis, é absoluto e cativante e a construção de personagem  é firme. Dá-nos a ingenuidade quase seráfica de Ramanujan, a segurança da mente nas suas descobertas ao mesmo tempo que o corpo descoordena inseguro pelos meandros de Cambridge, a tropeçar num mundo de homens de primeira, de segunda, terceira e mais. Patel assume Ramanujan desde a mentalidade indiana de quem é nada e tem uma deusa a protegê-lo. É disso que morre Ramanujan. De ser um génio pobre. De estar em Cambridge como qualquer popular indiano estaria: a cumprir os preceitos indianos com humildade, a não comer carne e passar fome, a não se queixar porque os pobres de bom carácter não têm queixas e se habituam a viver com o que existe. Por não haver outra maneira. Sofrem de um complexo de delicadeza. Séculos para a roda dentada da mentalidade evolver uns centímetros. Ramanujan podia comer na cantina. Podia, mas a voz das mães de tanto século não lho permitiam. Ramanujan podia queixar-se a Hardy. Não. Não poderia. Ramanujan agradecia que Hardy o tivesse visto realmente, à mercê de ingleses com má vontade, mal alimentado, sozinho, indefeso, sem um contacto da Índia, um laço forte a fazer-lhe casa. Não foi o matemático que sossobrou, esse avançou temerário, esforçado, um astro.  E alimentou-se do outro Ramanujan, cresceu a esgotá-lo, a emparedá-lo na religião que a mãe prescritiva e temerosa o impedia de violar (também perversa, mas desconfio que seja trama romântica). Contudo, tinha uma mulher que lhe sussurrou “you are my everything” numa carência tão veemente que é impossível não acreditar. E não há português que conjugue com esta expressão inglesa que não sei porquê, uma indiana sem eira nem beira utilizou. Mas, héllas, a garota não sabia escrever e foi um desastre. O mentor, que descria da intuição, deuses e sacralidades transcendentes,  interessava-se pelo método, a lucidez e a prova. Tempo demais Hardy foi cartesiano, não viu senão a mente. Inebriou-se com a dádiva como se a genialidade brotasse da terra. E apostou domá-la. Pena! Pena que tanta falha, excesso de trabalho, mau costume alimentar e falta de afecto tenham gerado a tuberculose. Pena que Ramanujan temesse o que todos os pobres temem, incomodar. Os pobres bem formados acomodam os outros, não os incomodam. E isto é lei. Na Índia ou noutro lugar.
Oh, dirão, mas Hardy deu-lhe tudo que lhe era devido, foi um amigo de excepção. Quando entendeu o problema esteve a seu lado, não o deixou morrer, levou-o ao lugar que lhe competia. Respondo: Pois. Mas foi a deusa a conceder-lhe a última vontade. A deusa deixou-o levar a morte para a Índia.

E hoje os seus cadernos estão em Cambridge. E é Fellow. Triste ironia.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Eu. E um nico de Jorge de Sena.

No meu mundo pequeno as pessoas lêem devagar, não lêem muitos livros de uma assentada e não há disponibilidade para fazerem diferente. Nunca seremos leitores compulsivos. A alguns de nós a vida sempre atalhou o gosto atirando-nos motivos sem explanação, ordens impreteríveis. Penso por vezes que esta contingência nos salva. Não acredito que livros em catadupa sejam tão apreciados como aqueles que compramos a desejo, com data prevista de início de leitura. É certo, saberemos menos, muito assunto não afloramos, gente que se distingue nas letras e não chegaremos lá. Ou nem sabemos que existe. Acontece que dou por mim num pensamento recorrente: será isso importante? Para a vida que vivemos faria toda a diferença? Não sei.  Leio com um único motivo, prazer. Um gosto de estar atenta a um mundo outro e em que me perco decidida a perder-me. Ficarei mais culta? Não me interessa muito, o que pretendo mesmo é dar o salto, entrar na esfera do livro e entreter-me a fazê-la minha. O resto, é conversa. Ou como se usa na minha terra, “um verbo de encher”. É verdade que os livros nos fazem a cabeça. No seu conjunto, acredito que sim. Mas também entendo quem afirma que um único livro bastaria para uma vida. Suponho que interesse mais pensar sobre as coisas que procurar afanosamente a diversidade do objecto de pensamento. Ler é como viajar, não se alcança a totalidade (sempre inalcançável). E haverá decerto quem pouco viaje e desenvolva mais o espírito nessas curtas incursões que tanta e tão diversa gente preocupada em conhecer os quatro cantos do mundo.  O segredo, julgo, está na atitude. Só um ser desamarrado é receptivo e deixa a vida fluir. Capta o essencial sem, contudo, pretender captá-lo. E quase tinha razão Saint-Exupéry, o essencial não pode ver-se apenas com os olhos e nem depende sobretudo deles (o escritor afirmava que é invisível aos olhos, o que também não é inteiramente verdade).

Depois deste monólogo que não é do vaqueiro – nem da vaqueiro – mas podia ser, que sou capaz de monologar sobre quase tudo que conheço, mesmo que seja só de vista, entro, finalmente, no assunto: a leitura que andei fazendo ao diário de Jorge de Sena. Fazendo. Isso mesmo. A meu jeito, durante muitos e enormérrimos dias. E eu a ler Jorge de Sena só quando me apetecia que era também quando podia (a malta como eu muitas vezes não pode, tem muita coisa extra e palerma a impedir e nem pensa no que lhe apetece). Como só lera os Diários de Torga, para mim escrita reflexiva de alta qualidade aqui e ali semeada de poemas, a princípio não atinei com a indumentária do livro. Mas é que é um diário na mesma. Jorge de Sena fez muita coisa na vida. Gastou-se em trabalho intelectual: foi poeta, crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, tradutor e professor universitário. É natural a sua preocupação em espartilhar o tempo pelas actividades. O seu diário é uma resenha dos dias. Com horas, lugares, pessoas concretas, preocupações relacionadas com a economia doméstica, um desdobrar extremo de trabalho escrito eivado de deves e haveres, exercícios de equilibrismo para comprar novos livros, muita música clássica, muito filme, muito teatro a entremear aflições de trabalho e doença e esforços de noites longas para manter prazos com editoras e jornais. E a Mécia. E as cartas para a Mécia (Mécia é a mulher, nada de ideias patuscas). Pena que faltem ali os poemas. Porque são bons e de sobriedade trocista, quase trágica. Sim que Jorge de Sena teve essa coragem diletante de dizer a consumição e os males portugueses. E, tal como os nus são agradáveis à vista se jovens, assim os poemas. Se amadurecem sobre o povo que se ama deveras e do qual se tem saudade, aparecem-nos o dente cariado, as rugas que arrepanham a boca a descair, o cabelo ralo, os nódulos ósseos, os defeitos de carácter que, por gostá-lo como a um filho, não queríamos que tivesse. E isto, meus senhores, não tem graça assim à primeira vista. Graças a Deus, Jorge de Sena nunca foi um poeta engraçado.

Palácio dos Biscainhos

E são felizes passeando. Existem sob a seda tufada que cinge e roçaga cinturas de vespa, esmagadas por acintosos espartilhos, o colo um aparador exuberante que insta apetites manuais e disfarça na redonda maciez o mau estar de pequenos flactos nascidos da compressão que estreita a contragosto. Sente-se-lhes o corpo numa exalação, mas que aperto, não respiro. Em passo pequeno e ponderado, engaioladas no traje, luzem boculismo elegante e deambulam em palidez de cera que insinua no romantismo do jardim.
O jardim. Longo e airoso, é ajuste de bom gosto,  espaço verde que se demarca em distinção de patamares. Os olhos correm fontes e gradeamentos, estátuas românticas e esconderijos de amor ou tão só extenso sossego de repouso simples, a solidão a namorar a frescura nublada. Nele passeiam sonhos e desgostos tão de sempre. Quem sabe, algumas mulheres ali aprendem a ler, conhecem os primeiros romances que lhes moldam o longe imaginário. Ali enrubescem as meninas nos galanteios de alguma visita masculina, um amigo do irmão, um secretário do papá que, momentâneo,  esquece a condição. Lá, junto ao final do jardim, naquela árvore centenária que toda se debruça de ramos, escondidas, choram desditas inconfessáveis e quem sabe, o pensamento se lhes deteve preso de enleios apenas entrevistos. Que, aos felizes na clausura de tudo terem sem nada procurarem, escapa muita vida. São senhoras de sua casa e muito haver, têm capela e confessor privados. Mulheres felizes em gaiola dourada que as prende e demora do mundo. Felizes porque as carruagens não as deixam na porta de casa, mas dentro dela (o corredor da entrada mereceu pavimento próprio e ondulado a fim dos cavalos não escorregarem). Oh dourada felicidade que, hoje, ninguém anseia.
Quem terão sido estas doces mulheres de Atenas, esperando seus maridos e pais e manos na abastança faustosa do seu poleiro que não empoleira.  E os homens, o que os moveu para assim as fazerem tão perto e tão longe de Braga-cidade. Talvez o impulso de amor que protege e a todo o capricho e gosto quer satisfazer. Ou a mediocridade da posse, do ciúme virulento, o hábito do preconceito de segundo sexo que é menos e sub. Queria julgar que é engano, mania de sujeito feminino e ressabiado, mas tudo no palácio aponta a última hipótese. Que não eram mais felizes as moças da cozinha, puxadas à pressa para uma moita, sujeitas à bruteza de um corpo mais forte, submissas ao prazer dos homens, a servi-los na cama, mesa e roupa lavada. Senhor ou simples vilão. Mas o gesto não morre. Repete-se sob outra forma. No meio da folhagem idílica eu a lembrar a serenidade azul no olhar de uma velhota de maltratada vida marital, por que casou com ele, tia Anunciada. E ela, eu nunca o namorei e nem o conhecia, um dia a minha mãe obrigou-me a ir à fonte sozinha, ele saltou-me ao caminho, agarrou-me e olhe, foi mesmo ali e fiquei logo grávida. – e com fatalismo realista - Se não passasse eu, era outra. Calhou-me a mim. E eu, e depois?. Ela, depois, o meu pai apontou-lhe a caçadeira e teve de casar comigo. Passou-se isto em meados do século XX. Espero que não para sempre, mas a herança social é nebulosa, faz perigar a navegação.
Contudo, é um palácio tão bonito! Os jantares refinavam em loiça, talheres e beleza gulosa dos alimentos. Que mulheres os presidiam, não sabemos. Quais se atafulhavam para esquecer. Quais sorriam por temor. Quais urdiam suas teias. Não sabemos. Mas viveram ali, escolheram as loiças, os talheres de prata, o linho dos guardanapos, as cores da mesa. Encomendaram os charutos, supervisionaram os arranjos de flores, os uniformes dos criados, a sala e o arranjo das crianças. Tiveram os filhos em casa e dormiram sozinhas em quartos que os maridos procuravam nos calores exasperados do sexo. E não se misturaram com quem desautorizava o estrado. Aquelas damas viveram em perpétua pirâmide social, a reproduzir contrastes sofridos.

E, ainda assim, o palácio é lindo. Entra-nos um aconchego de alma se lhe percorremos a realidade de casa e jardim. E, no remanso do pátio interior, uma glicínia voraz enlaça na pedra sôfrega, recobre-a, desmancha-se em cachos violeta-rosados que penduram elegância de gestos em bailarina grácil. Talvez a alma das mulheres nela se sustente e seja. Perpétua. Quem sabe...

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Palácio dos Biscainhos

Depois, por entre ruído de panelas e tachos e algazarra de vozes, vi abrir-se a porta de comunicação e chegaram as criadas de dentro, penteadas e de coifa engomada, a neve lisa do avental a contrastar do lajedo que pisam impantes de orgulho. E levam os acepipes sem atender ao desgrenhado de quem os fez, a olhares de esguelha e repontar ciciado de quem na cozinha tem o seu fundo de lodo e vive mergulhado em cheiros, a amaldiçoar os sentidos que a tudo acodem. Os sentidos que nos dão a graça da música, a beleza da paisagem, a vibração táctil e morna de um corpo que se quer. Mas, ali, são castigo. Trazem o fedor das fezes dos animais que morrem sem travão, borrados de medo; o acre do sangue coalhado; o bedum que as peles largam ainda a fumegar sobre músculos ao léu, na impudência da morte; as mãos reticentes, a enojar de arrancar-lhes as entranhas palpitantes de calor animal, que resistem a desocupar e só despegam sob violência de gume. E na roupa, no corpo, esparso nos cabelos sempre presos e tapados, aquela mescla que tresanda e já quase não sentem, mas recordam dos primeiros tempos de náusea que tirava o apetite e carregava com força nos pesadelos nocturnos.  
Mas já o franzido das saias ultrapassa a porta de comunicação e a chave gira na fechadura. Dois mundos. Que incursões necessárias não são mistura. Sem um cabelo fora de sítio, as criadas seguem muito direitas, o peso dos tabuleiros em equilíbrio. Reproduzem na cozinha o comportamento de senhores que a elas não atendem e se lhes doa a cabeça ou outra parte do corpo não lhes importa, que nunca a dor que as aflige aflora à mente suserana.
O feudalismo social existe sem época. Pasta na assumpção de que o chão sobre o qual cada senhor se levanta é restrito à função e desimporta além dela: é  base, serve para pôr os pés e naturalmente pisar.  Vive da supremacia do ego e do aviltamento do outro na sua consideração apenas funcional e que cumpre  os deveres para com o poder. Há uma Idade Média mental que nos é sempre próxima e até íntima. Mudámos os objectos, mas preservámos a função.
Na parte de casa mais faustosa e reservada à família, onde os servos só entravam para limpar ou mediante ordem expressa, uma profusão de salas e salões mobilados. Cadeiras, mesas, loiças, candeeiros. E a compreensão de que, ao tempo, homens a um lado, mulheres a outro. Na sala das mulheres, a meio, um estrado – também entre as mulheres havia patamares – onde se sentavam, em almofadas, as senhoras mais importantes. As restantes – provavelmente as que não tinham título – faziam-no em almofadas que punham no chão (não podiam subir ao estrado). Outra nota atentatória da época é que, ali, nenhuma mulher utilizava as cadeiras para sentar-se. No gineceu, uma ou duas cadeiras, destinadas ao dono da casa e uma ou outra visita importante e masculina.
Por seu lado, a sala dos homens, maior, mais rica e mais displicente, ostenta vários centros: as mesas de jogos de cartas, os canapés, as simples mesas de conversa e fumo. Onde mulher não entra. E foi depois que comecei a sentir as senhoras dos Biscainhos. Muito senhoras e cheias de si. Sentadas em amplas almofadas, ricamente personalizadas. Pobres senhoras ricas que se enchiam de espavento da sua sala e nem uma cadeira podiam ocupar, que gozavam garridices de almofada que as peavam como se faz com às mulas para que não fujam. Oh! As mulheres que são tanto de Atenas, parentes delas, suas irmãs de fado. Mas estas não o sabiam. Talvez nem conhecessem os nomes de Esparta e Atenas.