domingo, 31 de janeiro de 2016

Cartas, Cartões e o Mais que me lembre

E de repente chegaste. Disfarçada de presente. E foi Natal outra vez. Os dias recuaram ao presépio, os pastores voltaram sobre os passos e quedaram emudecidos à manjedoira salvadora, os reis magos ainda em casa à espera do sinal celeste. A não importância da estrela a empalidecer no alto da gruta.
Era a vez absorta do teu poder largo, passeante de veraneio nos caminhos de terra do meu presépio feliz.  Doce e inesperada surpresa de Natal atrasado, mas tão a tempo. E abri com mãos primeiras a tua carta de papel florentino buscado em Veneza loja a loja. Onde, escreves tu, a cercadura é bastante e a mão peca na adição de sinais. Mas que encheste de  amizade pura. Que agradeço. E assim a sei de tanto ano em que nos abraçámos sem abraço haver, misturando agudos de sonho em realidades obtusas, receitas, conselhos caseiros, opiniões de tudo e nada em que concordamos. És única a dar-me um nome pequeno que enches de naturais matizes como só tu sabes.
Então, fiz da tua escrita marco de leitura. E assim vagueias os meus livros página a página, de história em história. Escondida em envelope aberto  e endereçado ao que em mim és tu. Às vezes, nas noites em que as estrelas mais sérias, repito-te. Revejo a tremura leve da caneta hesitando em pernas de letras, a prosa corredia, científica e terna.  

E o resto, se é isto possível, acrescenta o que és: minha amiga dilecta. 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Cartas, Cartões e O Mais que me lembre

Fora das prendas que dou e me são agradáveis, creio nos natais. E a experiência confirma, alguma coisa de bom me acontece durante a quadra.  Este ano bem espreitei o carteiro, mas já ninguém quer escrever duas linhas assinadas,  e breve as substitui (ou nem isso)  por sms ou telefonema, prestes e eficazes meios de comunicação que  não exigem sair de casa, comprar a carta ou o cartão e o envelope com ou sem selo (o correio azul prescinde), escrever e ir pôr no marco do correio (à antiga, pois). Ganha-se tempo. Mas que fazemos com esses bocados de vida? Ficamos frente ao écran horas esquecidas, conversamos mais ao telefone, de varanda a varanda, no café e etc. Ou trabalhamos mais. Permito-me duvidar que qualquer dessas actividades valha ou sequer impeça umas palavritas num papel com a nossa assinatura, tudo endereçado a quem gostamos. Mas tenho de reconhecer, perdemos o gosto ao rasto. Ora os sinais importam, são marcas de caminho. E aos homens não basta andá-lo, têm que se deixar nele. É bem certo que a precariedade governa o mundo, mas telefonemas, sms e outras mensagens virtuais perdem força logo na imediatez, não são de lembrar. E depois, acontecem em catadupa. Numa   constância banal. Cartas é outro ofício. A carta reserva-se uma intimidade púdica e atractiva e cada uma vale por si. Traz os desenhos personalizados do alfabeto e a forma subjectiva da sua organização, sempre  a remeter para. Diz, sem voz haver. No tempo que nos coube, a carta é um flagrante delicado. E nenhuma forma de comunicação  – das tantas que existem -  me surge mais impressiva e durável.  Bem restrito e sigiloso, quer ser aberta e lida, mas só pelo destinatário. Há uma certa beleza nisto de escrever com o próprio punho para alguém ler. Não um alguém qualquer, mas este homem, aquela mulher, a criança x ou y. Hoje, cartas e cartões são inestimável presente.
            Este Natal não tive correio, a caixa vazia. Que é como quem diz, amuada - a inchar -  de grossos alvoroços de propaganda. A amiga que se me enviava dentro de um envelope, voou para outra dimensão. Nunca mais alguém se comove de alegria por me ler (garantia-me que se portava assim a cada leitura e sei que é verdade, tremia-lhe a voz  a contar-me; guardo-lhe uma enorme dívida terna e uma amizade irreprimível). É assim mesmo, há dias e vezes em que a vida perde cor. E depois fica a faltar-nos humanidade.
             Mas o mundo ainda surpreende. Certa manhã próxima à natividade, enquanto comprava uma prenda, a garota da secção de embrulhos cresceu e fez-se pessoa de repente. Naquela maquinal monotonia de cada um a ocupar a sua posição numa livraria apinhada, pousou-me uns olhos alegres, abriu um sorriso limpo e desvanecido que estendeu à capa do livro que eu lhe tinha passado e num contentamento de amor extravasado, enquanto agilizava dobras de papel ao redor a aconchegá-lo, “eu também já comprei este livro para a minha mãe, ela vai adorar a prenda de Natal – e a descansar os meus receios, um dedo de fita cola a suspender o cartão de...para... -;  na minha opinião fez uma boa compra”.   Deixei-me abraçar por  aquele entusiasmo-relâmpago em gozo antecipado; era por certo uma estudante requisitada para os embrulhos, não usava farda e desenfiava do estigma profissional.

 Aquele desabafo foi o meu sinal. Não sei bem de quê, mas foi. Reinstalou-me na humanidade. Deu-me confiança.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

The Danish Girl - Quando o Corpo Pesa e Incomoda

Um ramalhete  de acasos e decisões levou-me a ver “The Danish Girl”. Em boa companhia. Afinal, é a época especial do cinema,  a de melhores filmes. E alguns  se me dependuram em olhos e mente a suplicar, estamos aqui, vê-nos, vê-nos, não nos percas por nada. E etc. Pendo para filmes centrados em figuras femininas (se não o são, involuntariamente os centro), aprecio-lhes o rigor nos pormenores de interpretação, o ambiente geral onde se movem e o espectro de atenção a sentimentos e emoções.  E depois, permitem-me  – quase sempre -  fugir às cruezas modernas da câmara viciosa de violência física e em exercício de preclaro sado-masoquismo realista:  sangue que espirra, miudezas à vista, o lado maligno numa excitação rubra que põe a léguas a sofreguidão  de qualquer cena de sexo ou amor  urgente. Serei uma retrógrada do pior, mas convenço-me que a maioria das fitas puxam à violência aberrante. O pêndulo oscila entre  a premência sexual em seu lado de prazer obtido por embate e que nele se compraz, e o despelotar ilimitado do mal. No cinema e na literatura, o mal é filão que não esgota. Sendo finito, não conhece freios e, nesse aspecto, ultrapassa largamente os aspectos sexuais que também invade. Thanatos e Eros. Ou a conjugação das forças que nos orientam.
Desta vez, a contrariar ímpetos de ilusão e desmentir a fábrica particular de realidades paralelas que me habita e lesta desenhava uma amizade redentora entre duas jovens, a danish girl a sobressair, fui ler a sinopse. E não era a mesma coisa. Mas também era. Portanto, avante. Um factor de peso foi saber que o actor principal era o Stephen Hawking de “A Teoria de Tudo”, no que então considerei um desempenho brutal (bem premiado) de um  actor brutalmente jovem, o que lhe aprimora a qualidade.
Enfim, sentei-me no escuro dentro da ideia muito vaga do tema. A homossexualidade está tão presente nas nossas mentes – por lutas, conquistas, exibições e o mais -  que pouco nos detemos nos transsexuais. Não estava preparada para o drama. Aquele. O verdadeiro ele. Sabia  de um casamento que se desfaz  por haver, a dado passo, duas mulheres nele. E de uma amizade incondicional. Não intuí o drama do corpo que não se tem e se quer ter; os gestos que fazem falta e se amam, mas de que não houve apropriação; a necessidade daquela aura de feminino, respiração tão desejada  que incomoda quem está na cadeira. Serão assim, os transssexuais?! Não sei. Não sei mesmo. Penso: eu como seria se me educassem para ser rapaz.  Ao roçá-la, usaria os meus dedos de sentir que a seda é macia e passa à frente, ou eles seriam antes dedos felizes a festejá-la mansamente, como a amante delicada. Mas é que não é o mesmo. O sujeito do filme é todo homem por fora e mulher por dentro. Com educação de rapaz eu seria ainda mulher por dentro e bastante por fora. Logo, o exemplo não serve. Mas a vertente dramática e preferencial voa-me para situações deste teor, onde o parecer diverge substancialmente do ser e tal clivagem magoa  mais que ferida em carne viva .
A dada altura, Einar vai olhar uma prostituta para lhe copiar, desajeitado, os gestos de sedução, imaginando-se nela-mulher e provoca no espectador uma espécie de incómoda piedade. Não há ali voyeurismo. A Einar interessa a naturalidade do gesto, a glória e o cetim da pele que não estão senão do outro lado. Oh, não é apenas a satisfação do escuro a proteger o segredo. Essa é a não importância. Há na repetição dos gestos, a ilusão não iludida de “eu sou ela”,  uma procura de identidade sobraçada por um simultâneo  de inveja dolorosa e consciente do quanto o querer não pode. E o actor é extraordinário na sua figura tímida e quase fugaz, nos gestos medroso, na falta de confiança, na urgência de se viver mulher.
E no entanto o filme sofre de todo o mal do cinema, centra-se em dois seres e na sua relação; esquece o mundo adverso e o conjunto de tramas menores que acompanham um escândalo deste tamanho na primeira metade do século XX. Porque tais figuras existiram. Einar e Gerda Weneger  eram pintores e ele morreu a tentar mudar de sexo, crente nos poderes da medicina.
Como não podia deixar de ser, liguei-me àquela jovem, vivi o seu amor desde a ignorância feliz (será que nunca dera por tal?), vi-o entristecer, barafustar e depois, acomodar-se à circunstância. Pergunto-me o que teria sido do Einar do filme sem Gerda. Amei a forma como ela quase levou o ex-marido pela mão, a irmaná-lo e ensinar-lhe o caminho do mundo no feminino, por vezes quase em monopólio, a apertar, a apertar, porque o amor não se resigna mesmo se diz que sim. Como o acompanhou até ao fim. Tom Hooper já me agradara em “ O Discurso do Rei”. E continua.

 O certo é que há duas raparigas dinamarquesas a defender o filme. De igual para igual. 

sábado, 23 de janeiro de 2016

CAM - O Círculo Delauney e Outras Coisas

Pergunto-me vezes sem conta quem sou. Não que esqueça os dados identitários, ainda não frequento esse autocarro. Mas o multifacetado de mim incomoda  a cada aparição. Nos momentos de transição,  sou a dona de casa que, fora do avental e das panelas,  se estranha no espelho, não se acreditando na imagem, sou aquela?! É que outra de mim irrompe sem peias, toda sensações e sentimentos, a chamar por quem não está como se estivera, dando costas à versão caseira. Baralhante. Verdadinha.
É assim que deambulo por museus, oriento os olhos para a paisagem, vejo filmes e leio alguns livros. Outra de mim. Mas a falta que me faz ser aquela. A outra. Ou talvez a mesma, a que surge a espaços. E cada vez é única e primeira. Porém, há um lado de não ser assim: reapareço-me idêntica na força de sentir, empurrando todos os aventais do mundo para um esconso qualquer que me deixa a latejar por olhos e ouvidos, a realidade um excesso e eu lá no meio, sem fala, sendo mais ela que eu (não entendo a razão do v não escrever neste portátil que até é novo, tal não tá a moenga, ham?! Quem é que sabe depois o que são aentais e outras palaras). Tenho plena consciência de que petrifico sectorizada, incapaz da totalidade no seu aparecer.  Enfim, problemas de antena curta.
No CAM, gosto particularmente do quadro de Pessoa, obra de Almada Negreiros. Pessoa não está um espanto no retrato. É o todo do quadro que transtorna e fortalece de alma. Portanto, detesto pagar um bilhete e ele fora do seu lugar. Detesto mesmo (já paguei só para ir olhá-lo). Mas “O círculo Delauney” tinha de incluir Amadeo e também o prefiro. E lá fui. Em manhã de chuva atreita a continuidades de molha-parvos. Verifiquei que Pessoa estava fora de órbita. Faltou-me. Um tiro no porta aviões. Para colmatar, espreitei a exposição sobre os trabalhos de pintura e escultura de Hein Semke, um alemão que gostava de Lisboa. Não me transtornaram como aquele Pessoa bicudo em chão de dominó e fundo vermelho a emoldurar-lhe o pessimismo. Pe-ssi-mis-mo, sim. É o que nos dizem os olhos do Poeta (talvez sejam os do homem) e os olhos não mentem. Portanto, um submarino ao fundo e mais o resto do porta aviões, está claro. Andei em frente e para os lados a experimentar os Delauneys que conhecera via Amadeo. E descobri o aparente Amadeo e a mulher, Lucie. Um par dos antigos. Completo e au point. Deduzo que a imaginação me enganou uma vez mais, Amadeo seria de boas famílias, parece rapaz de recursos (onde é que eu tinha a cabeça, sabia que vivera em França; se calha, pensei que era filho de emigrantes), um Banderas lusitano e sensual, com sotaque de Amarante, que a gripe espanhola levou de enfiada. Mas tudo isto faz parte do jogo de aparências, o que me interessa em Amadeo veio-lhe da arte, simbiose transfiguradora de  mãos e mente. Há no pintor um vigor pictórico quase anestesiante, que cola o olhar às obras. Podemos desconhecer as correntes que seguiu, não destrinçar onde predomina uma ou outra, atermo-nos apenas ao que entendemos sem detectar inovações, pedaços de guitarra, letras, colagens, elementos de folclore. Mas gostamos. Não temos fuga face à interpelação vivaz de Amadeo. Com algumas semelhanças de estilo, os Delauneys são outra coisa. Mais moderados, afirmam-se em predominância de linhas circulares e a cor não grita nos quadros, a  exigir, vê-me. Os Delauney propõem-se, Amadeo impõe-se. No traço, na cor, no imaginário.
Voltando sobre os passos, observei a vida lá fora. A janela panorâmica oferecia-nos uma mistura de verdes lustrosos e, logo à frente do vidro, pássaros pretos com bico de sol, almoçavam sôfregas  bagas vermelhas no arbusto que bordeja a galeria. Alucinei nos repentes vorazes do bico-pinça, a retalhar, despedaçar e deglutir. Bocadinhos de vermelho, sobras em ameaço de queda, engolidos num ápice, a um tique de pescoço. Sem querer, tinha deparado com a cantina da passarada. Imaginei aquelas pinças amarelas a arrancarem-me bocadinhos de braço para o almoço. Mas eles adivinharam a minha presença. Ou, o que é mais provável, o bando saciou. E uma revolução de leques pretos perdeu-se no arvoredo. Fim. Um tiro nos submarinos que faltavam.
Entenda-se, foi o meu fim com eles. Ainda assim,  embasbaquei na sua  perversão afiada e nada dócil, lembrando certa cabine telefónica de Hitchcock. Por que razão me confrangem as várias realidades de mim se até  os pássaros  participam de serem mutáveis, ora são; ora não são, por serem outra coisa que é na mesma. Mau Maria...
E depois sim, para afundar um barco de três à Fundação, e o resto da batalha naval que espere assim como assim sou perdedora a valer, preenchi um impresso a apontar o erro ortográfico num placard da exposição. Porque sim. E para ajudar os senhores da Gulbenkian que são pobrezinhos, não têm funcionários suficientes para supervisão da língua  portuguesa, e os curadores têm mais que fazer. 

Palermas! 

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Tudo é Vida, que da Morte nada se sabe

E depois desdobra o inevitável, eu não quero conversas, mas é que a minha nora não puxa por ela. Nas férias, deixa-a à vontade e a menina esquece quase tudo, mas eu não digo nada que a senhora sabe como é, noras com sogras (e enfatiza a dualidade, expressiva de rosto e mãos) e não quero cá más impressões para o meu lado; mas pronto, é verdade, e a verdade tem que se dizer, não é. E os olhos lá atrás que sim, que sim, mas a ventania capilar à força toda e eles cansados da função, que grande chatice. E já ela a arremeter noutro ângulo,  a professora é boa professora e sabe ensinar, mas não é nada meiga e isso também traumatiza a menina, o que ela tem é um trauma, ai valha-me Deus. E num suspiro fundo, a limpar uma lágrima que não havia, e depois é assim, a gente tem netos e custa-lhe estas coisas. Se a senhora os tivesse é que sabia dar valor. Isto é uns cuidados com eles que nem imagina. São tudo p'á gente, mais que filhos (e força aqui também) – e os olhos a aproveitar uma aberta, pois, pois, isso mesmo.  Depois, avança e resolve o jogo com remate indefensável,  olhe, é uma loucura (ponto final parágrafo).
E eu à porta, sem jeito de coisa nenhuma. Num intervalo, arrisco uns conselhos a vulso, que os traumas não se ganham assim, que não se preocupe tanto, basta que ensinem de novo a garota a ver horas e que isso eu posso  fazer hoje mesmo (e marco com ela, pensando que um relógio digital resolvia melhor  o problema, mas sem atirar essa verdade ao fogo). Não lhe agradou completamente. O trauma vinha-lhe a calhar ao vocabulário (descreio que saiba o que é). Põe um ar de dúvida saliente que aumenta quando escuta que as férias são para descansar da escola e que “as coisas da escola” são suficientes nos períodos escolares, que a nora acerta em não se preocupar em férias.  Para arredondar, acrescento que, em dez anos de ensino básico,  não era habitual pedir trabalhos de casa em férias. Aventei ainda que o agrupamento tem uma psicóloga escolar; se for o caso, ela pode ajudar a resolver.  Partiu reticente de mim, os olhos lá ao fundo, por entre os estores de cabelo, não prestas, tu.
Há pouquinho toca a campainha. É a vizinha já com os olhos todos à vista, nem um ventinho leve no fim de tarde, e o cabelo no lugar. Evito paranóias e olho por detrás dela os sapatinhos da madeira que apodrecem no aguaceiro. E ela como que a descartar um frete, olhe, vizinha, já não é preciso, ela hoje tem natação.

Ainda bem que há vizinhos. Olha se não houvera!...

Tudo é Vida, que da Morte nada se sabe

Olho o dia e não augura. A cor de chumbo rodeia  todas as coisas, como se alguém ponha a uso  um pincel mal lavado, ainda a suar restos de preto,  numa aguada que condensa em cinza violento e entristece a paisagem. Impressiona esta saturação de humidade, o ar parado de silêncio, a morrinha a fazer cama. Lá fora, há flores abertas, branco arrependido e pesado de gotas, foi por engano, desculpem, pensávamos que era primavera, para o ano já não acontece. E a nossa experiência de florações extemporâneas a recear do milagre. Não raro, custa a vida às pobrezinhas que arriscaram delicadezas de inverno. E, contudo, estão ali, a corola a pendurar, cabisbaixas. Quebradas,  florescem na ponta do arco breve que o lápis estranha. Perplexo, fica a remoer indecisões, como é que se desenha este arqueado de vergonha de flor; o papel em contraditório, a aguçar frenesins, então... cuidado aí com essa ponta, estás-me a escalavrar  o liso.  E as flores que não sabem nada disto, acachapadas de chuva, Deus, o peso de cada gota.
Em breve, a escuridão vai engolir a paisagem e a brancura dos cálices esvai, primeiro pardacenta, depois em negrura indistinta. Talvez as flores durmam sem sonhos, não tenham pesadelos de água, se desviem rindo de fatalismos e futuros macabros. Sejam apenas elas num hiato de existência. Ou existam parcamente, amodorradas de silêncio gelado, arrefecidas de seiva. E quando pensava nas friezas de flor, em raízes engadanhadas e a tremer agruras sob a terra, a campainha desinquietou-me o pensamento.
 Vou correndo que a minha campainha pouco toca e tenho que aproveitá-la. Abro a porta e dou de caras com uns óculos quase submersos por cabelos desalinhados, em conjunto hipnótico com as lentes, resvalando em monocronia, para cima e para baixo, os olhos a piscarem lá atrás de tudo.  Apetece-me deitar mão ao cabelo invasivo, mas a boca começa imediatamente a abrir e fechar e desvia-me o propósito. Fala. Deve estar falando. Para mim. Os olhos por detrás dos óculos confirmam, é comigo. Não fixo as palavras e elas soltam-se e giram por ali sem nexo, em volta de nós duas.  Estou vidrada na boca que abre e fecha, lábios que se alongam e encurtam quase em assobio, deixando ver dois dentes lascados na ponta. Perto.  De cada vez que ela fala os dentes mostram-se. Está séria, quase pesarosa, mas os dentes lascados são sorriso que me descansa. Que será que diz ?!  Dou por mim pensando que um baton de cieiro lhe resolvia o problema dos lábios esbranquiçados, uma greta a meio, mais funda, tocada de sangue. De repente, o som ligado, a vizinha sabe, foi professora primária, não acha que a menina tem um trauma?
Fico parvamente a tentar recuperar a conversa e ponho a uso o meu ar de vizinha (próximo) paramentado de professora (um bocadinho mais de empáfia). E o que havera de ser?! Bom, parece que, antes, a netinha sabia ver horas e agora, não.  E ela volta, a vizinha não acha que a menina precisa de ir ao psicólogo? O meu filho tem uma boa caixa, não paga quase nada...é que a menina anda com medo e a professora pergunta-lhe sempre as horas agora que sabe que ela não é capaz de as ver (a malandra da professora). E patati e patatá.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Propósitos

              A cada novo ano, nos despontam intentos de mudança. Que pouco se muda do que somos, mas enfim, nas listas de propósitos há, pelo menos, uma vontade que quer exercer-se. Acredito que não seja um mau princípio. Ninguém sabe se o projecto se actualiza, mas é bom que acenda a esperança no futuro. Além do que obriga a parar e repensar o que passou, termos utilizados por António Sérgio para caracterizar a reflexão. Ora, nesta era de “pegar e andar”, a reflexão escasseia e quase parece que o mundo pretende que a olvidemos. Só por isso, vale a pena pô-la a uso. Reflectir. 
          É que assume proporções de complôt, não podemos estar tristes (e a reflexão tanta vez traz tristeza); se acontece, o mundo pede-nos para lutar rapidamente contra o sintoma, porque a alegria é que é. Discordo. O ser humano cresce também dentro da tristeza, faz parte das suas disposições naturais, não há que inibi-la. Ao contrário, o tempo de ser triste tem que viver-se até ao fim, para que não se repita nem deixe raízes que podem, isso sim, ser altamente danosas. Neste ímpeto de saltar sobre tristezas e desalentos, em que nos tornámos campeões, fazemos cama aos estados de alma mais nefastos. Por exemplo, a brusquidão raivosa, as depressões, a insatisfação de viver. E mais que não me ocorre. Pontiagudos do carácter que são sinónimo de perturbações no quotidiano de si a si e de si aos outros. É imbuída nestas linhas de experiência, a sopesar desaires do ano anterior, que faço os meus propósitos. O princípio é não os procurar, deixá-los chegar e fazer casa, até que se instale o tempo da atenção.  Atenta, escrevo-nos, já são carne da minha carne, indistintos de unha ou dente. 
             Em 2016 quero ceder menos à preguiça e cumprir – pelo menos em parte – o que me proponho no dia-a-dia. Quero não me esquecer dos pequenos prazeres, dínamos do meu relógio pessoal – beber café às sextas e segundas, comer torradas com manteiga aos domingos, levantar-me mais tarde às quartas ou quintas. Quero pensar quase tanto nos outros como em mim e, neles, ser feliz quanto possa. Caso consiga ter presentes estas três alíneas, ao longo da maioria  dos 366 dias que me esperam, serei uma grande mulher.

            E as amizades, os amores, os afectos?!... Um dia alguém me disse, “queria aprisionar a água e ela escorria entre os meus dedos; fica a frescura”. Entrego a Deus. Ainda que não trabalhe nem fie, Ele há-de vestir-me. 

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O pó das Estrelas

O que gosto eu em Gilmore? Ora, o mesmo que toda a gente, ele concorda com o senso do homem comum. Por exemplo, diz que o nosso universo vai terminar sozinhito da silva porque a sua aceleração é cada vez maior o que o leva a repelir as partes mais distantes que se afastam de nós a uma velocidade superior à da luz (não é brinquedo, então para esta velocidade já não há sinais de trânsito nem multas...ora bem). Segundo o cientista, as estrelas estão a afastar-se e serão cada vez menos e os átomos vão-se quebrando (mas afinal aquilo é feito de quê para se quebrar assim  sem mais, mau, Maria! Tão pequeninos, tão pequeninos, e partem-se na mesma). E um dia não resta nada. A verdade é que foram as estrelas a gerar as nossa condições de vida, não é bonito isto ser verdade?!  Pois é, mas o seu afastamento é proporcional ao decréscimo vital. Ou seja, não vai restar ninguém para pensar tamanha solidão (duvido que nessa altura ainda seja um universo, deve ser só um buraco negro), portanto, que ela exista também não fará  diferença (Kant, Kant). E portanto. Cá chegamos nós ao essencial do homem comum: a humildade que só fica bem numa espécie condenada e que tem a consciência disso (grande novidade, tudo que tem vida, há-de desaparecer, gasta-se, perece, morre). E isto pode ser uma novidade científica, mas é também uma certeza do homem comum. Seguramente.
A segunda verdade de Gilmore não é menos retumbante nas mentes comezinhas. Afirma o filósofo que o nosso universo ganhou a lotaria. Quer dizer, reúne condições excepcionais que permitem a vida (segundo parece bastaria que 12 propriedades do mesmo mudassem em 2% e baqueava a hipótese dos seres vivos o habitarem). Pronto, é verdade que desconheço a dúzia de propriedades e o alcance de uma variação de 2%, mas que esta lotaria pode chamar-se Deus, acaso divino e outras transcendências do mesmo teor, pode. Sem infracção a qualquer regra.  A ciência não consegue explicar o nosso universo, sabe é que para este ter sucesso (sucesso significa presença de condições que possibilitem a vida) muitos outros não o tiveram. E que vivemos no único onde podemos viver porque encaixamos nas suas condições (grande descoberta, parece-me que cada vez mais precisamos de um motor imóvel, uma consciência suprassensível, qualquer coisa assim; além disso Leibniz já afirmava que este é o melhor dos mundos) Ou seja, o que não faltam por aí são universos a rodar a uma velocidade louca pelo espaço. Ah! Mas não têm vida. São universos que deram mal. Aguentem-se (digo eu).
Outra verdade que os poetas intuíram e a ciência confirmou: somos mesmo feitos de pó de estrela. Viva!...Tinha a certeza que era uma poeira, a ciência só veio creditar-me.
E, finalmente, diz Gilmore, a filosofia  faz o seu papel especulativo sobre universos e questões para que a ciência ainda não tem resposta (esta é clássica, também a ensinei).
Portanto, aguardam-se resultados do projecto Gaia, onde Gilmore se aplica, e que pretende conhecer a origem da via láctea e a dupla questão gravidade-peso que sempre pensei que era só eu que não entendia, mas parece ser o quebra cabeças dos cientistas. Ora esta!...

Bom. O projecto Gaia pode por exemplo verificar se vem um meteorito catastrófico em direcção à terra. Não sei se aguentamos mais isto. Então nascemos fadados à morte, temos de viver com isso, e ainda, quem sabe, anda para aí um bólide do tamanho do mundo a querer dar-nos cabo do canastro?! Com franqueza!...

O Pó das Estrelas

Nesta vida de que já gastei a maior parte, há imensas coisas – e pessoas - que vou perdendo. Por razões umas mais miúdas que outras, sem razão, por desinteresse, porque não estou para isso, porque me escapam a contragosto. Os anos mudam-nos as crenças e hoje acredito que nada ou quase nada se escolhe, que as escolhas são as nossas ilusões no poder da vontade, artifícios luminosos a emprestar tonalidades que miramos de gosto, talvez por vaidade retinta. No entanto, continua a ser verdade que ir por um caminho é preterir, no momento em que se vai, todos os outros. O que encerra um dramatismo alucinante. Por outro lado, não aprecio o determinismo de um demiurgo que nos destina desde o nascimento, cujo não me faz sentido até pela pouca importância que me parece ter cada homem. Só um ser muito fixado nos humanos – e muito picuinhas - se daria ao trabalho de programar a condição humana vida-a-vida, inculcando-lhe, por acréscimo, a ideia de liberdade e a convicção de que pode, em certa medida, fazer-se livre (nem me atrevo a comentá-las, mas dão mais moíção que resultados).
 Voltando ao primeiro assunto e à constância irremediável das perdas tal como as sei, verifico por exemplo que a pintura distrai o espírito e me satisfaz qualquer passeio solitário em museu onde espiolho com espírito mineiro, coisa que eu mesma não acreditaria há quarenta anos. Contudo, isento-me de lamentar obras que não vi, lugares onde não pus o pé ou livros que não li. O meu princípio é o de muita gente – da maioria dos portugueses, quase aposto -, vejo e leio o que me é possível (sem exageros) e disso retiro o prazer de que sou capaz. Porém, o que mais me apraz é assistir a uma boa conferência. É aqui que entra a minha mágoa verdadeira. As pinceladas e a cor que me faltaram, os lugares que perdi ou as centenas de páginas que deixei virgens, não me agastam,  mas não poder assistir a  uma mente que discorre em directo, é um irreparável.  Não me refiro, é evidente, aos ilustres que papagueiam teses – ou bocados delas – em lugares diversos, ainda que sejam de reconhecido mérito. Falo de outro patamar, de quem sabe tornar fáceis temas difíceis ou consegue ensinar-nos algo de novo, fazendo simples o que lhes gasta suor e anos de vida. Pessoas que fosforecem. Portanto.

            Acontece esta arenga a propósito de ter lido uma reportagem – ou será entrevista – com Gerry Gilmore, ao que parece um reconhecido cientista e filósofo inglês (ensina Filosofia Experimental em Cambridge) que visitou Portugal para uma palestra na Fundação Champalimaud. E às primeiras linhas me fiz espontânea fã. Eu que nem sequer sabia de uma Conferência sobre o Futuro. Ou da existência de Gilmore (ainda que detentora desse conhecimento, tal conferência não era para o meu bico). Bom. Pormenores. 

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Rasoura

Todos os anos a gente passa revista ao que fez – com vista grossa, para não haver choro e ranger de dentes. É de hábito e tradição. Olho para trás e o meu ano foi tão insalubre que confrange. Não bem insalubre. O termo é lúgubre. Espaireci pouco e mal – excepto quando andei por Itália. Foi um ano claustrofóbico, abri pouquíssimas frestas e não acrescentei pessoas novas ao meu mundo, nem uma única. Houve muita coisa em exposição nos museus que desejei ver e não vi, as datas a caducarem umas atrás das outras; passaram concertos para que não tive carteira, teatros a que ambicionava assistir e não foi possível. Neste ano, visitei menos os amigos, e no entanto aprendi algumas coisas novas sobre a nossa relação.

O ano de 2015 foi meio difícil. Gastou-se em negativos e exercícios na câmara escura. Tudo de pernas para o ar, as cores invertidas. E largos períodos de solidão. É certo que sou uma pessoa solitária e aprecio estar sozinha. Mas não foi o que aconteceu. Quando a nossa vida desaba – e às vezes acontece que a gente a faz desabar – percebemos que não calhamos bem,  está toda a gente muito ocupada – e engrenada - no mundo a que pertence, cujo também dá muito trabalho e doença e preocupações.  Talvez por educação, ou porque sou assim mesmo, passei a vida a não querer incomodar, a sacudir pés nos tapetes, a pisar de leve para não acordar ninguém, a não bater com as portas. Não sei ser diferente, as fúrias não me fazem feliz, tendo naturalmente à concórdia. Mas, se calhar, as pessoas como eu não têm lugar. Se calhar, não existem. Quem sabe sou um conceito, uma ideia sem sustentação que não tem onde cair morta...

domingo, 3 de janeiro de 2016

Conto de Natal

À medida que vencíamos caminho o nevoeiro ia tomando conta da estrada, primeiro  em névoa  ligeira como se a visão das coisas estivesse meia desfocada, depois em bancos densos mas ainda dispersos que nos imergiam dentro de uma nuvem de gotas húmidas de onde recuperávamos a acelerar para ganhar tempo até que novo banco nos submergia. A eloquência do meu companheiro no relógio do carro balançava pressas interiores e vagares de motor. Observei-o e notei-lhe uma réstea de esperança a avivar no meio da tristeza de semblante. A essa altura da viagem, o risco já nos tinha irmanado e soltei naturalmente, trata-se de uma mulher, não é? Ele bateu pestanas e não acrescentou. Mas eu tomara-me de simpatias pelo moço e acrescentei, é mulher ou namorada?. Então ele virou-me os olhos e disse meio coíbido, as duas coisas – e acrescentou numa  voz de repente lisa -  tudo que eu sou de bom vive naquela mulher. E de repente, como quem desata o nó de um saco fechado há tempo demais, não conhecemos padre nem igreja, mas juro por Deus quem nem isso importa; prometemo-nos um ao outro e coisa mais sagrada não há - e ficámos os dois muito atentos ao resfolegar do motor e ao écran que os faróis abriam na paisagem logo engolida na escuridão.
Entre o lugar de Águas de Moura e a estação de caminho de ferro começou a esmiuçar veredas e caminhos e  pediu-me para abrandar. Posso levá-lo até à porta, disse eu. Mas declinou, é melhor para si e para mim que me deixe na estrada e não saiba mais. E depois, a constatar a evidência, mirando as mãos vazias, não lhe levo nada, nem uma flor da beira dos caminhos. Sem saber que dizer, parei o carro onde me indicou e estendi-lhe a mão que ele apertou com força e um obrigada veemente. Fechou a porta e começou a afastar-se. Saí do carro muito à pressa, espere, tenho uma coisa para si. Tirei do bolso um embrulhinho, aceite por favor; dê-lho. Vocês merecem -. Voltei correndo para o fiat e arranquei.

Quando ao serão contei a história, a tua mãe disse mirando a mão esquerda singela, tão bonito o meu anel, não há outro igual no mundo. 

sábado, 2 de janeiro de 2016

Conto de Natal

Rodei o manípulo do vidro e quando o polícia se debruçou apercebi-lhe a ordem no movimento seco dos lábios, senhor condutor, os documentos do veículo se faz favor. E a minha mão independente apressando-se a satisfazer o pedido. Ele confirmou os dados do automóvel girando-lhe à volta e atardou-se depois na carta de condução enquanto, sem uma palavra,  enviesava olhares para o meu companheiro. Enquanto isso eu sentia o suor a escorrer-me costas abaixo, mas o homem continuava plácidamente sentado a meu lado. O Guarda entregou-me os documentos do carro e ficou de carta na mão a olhar-nos, tenho ordens para verificar a identificação de toda a gente, você aí, passe para cá os seus documentos. O rapaz meteu a mão ao bolso e retirou um papel muito amassado que veio junto com um som de pássaros. Olhámos os dois, ele tinha na mão uma roca de bebé e parecia constrangido, desculpe senhor guarda, é para a minha afilhada, a Aninhas; era para ser uma surpresa, não queria que o pai a visse antes de tempo. – e estendia o queixo na minha direcção. Entretanto, o Guarda apontava repetidamente  a lanterna ao documento e à cara do meu colega a cegá-lo de claridade em cada vez. A meio destas manobras, a roca escorregou da mão do “padrinho” e enquanto rebolava no chão do carro escaparam-se uns trinados que, por breves minutos, nos deram a ilusão de pássaros e penas e ninhos. Era como se no meio de um pesadelo houvesse uma janela de ar puro. Convenço-me hoje que, se não fosse a aflição por que passávamos, eu já a imaginar-me atrás das grades e sem natal, podia haver graça em recordar a queda da roca. Porém, naquela hora não sabíamos que fazer e ficámos os dois quedos e mudos, como se não existisse o brinquedo pelo chão. Entretanto, o guarda já desviara o foco e apontava enfastiado aos embrulhos no banco de trás. Depois, sem cerimónias, abriu a porta, deitou-lhes a manápula e pôs à vista uma bonequinha de trapos sorrindo em lábios de ponto-pé-de-flor, pernas moles a esbabarem do papel florido. Ao lado espreitava também a delicadeza das botinhas azuis. Pequeninas, alinhadas uma com a outra. Voltei-me para trás e pareceu-me tão ofensivo aquele desaforo de papel rasgado que quase deitei tudo a perder.  Neste caso, a calma do meu companheiro ajudou a digerir o desgosto de ver profanados os meus singelos segredos de Natal.  Estar ao lado de quem se aguenta, faz toda a diferença. Por fim, depois de investigar a mala do carro o guarda chegou-se de novo ao vidro e passando-me os documentos de identificação disse zombeteiro, podem seguir, mas vejam lá se apanham a roca ou chegam a casa com os pássaros todos mortos. E partiu a juntar-se aos outros, rimando a polaina com o sinal. Seguimos o conselho da autoridade e procurámos a roca que aterrou no banco traseiro. Daí a uns momentos liguei motor e faróis e fizemo-nos de novo à estrada.  Rolámos em silêncio a recompôr-nos do susto e só quando ouvi um gemido é que entrevi o tamanho do esforço que o meu colega de viagem tinha feito.  Parecia envelhecido, tão exausto se encontrava. O corpo sem postura escorregava-lhe pelo assento, estava pálido de dar dó e temi que desmaiasse. Como a normalidade pode ser difícil, pensei. Parei o carro de novo. Fui lá atrás, saquei de uma garrafa de água que trazia sempre comigo e molhei-lhe o rosto, depois fi-lo beber um pouco e esperei. Pensei que uma bebida forte teria sido melhor,  mas não havia. Quando me pareceu com mais cor e já pegávamos de novo a estrada, ouvi-o numa voz ainda insegura, a Aninhas e a roca é que me salvaram. E eu admirado, mas como é que a roca lhe foi parar ao bolso, tinha-a debaixo das prendas. E ele, pois foi, eu vi-a sob os embrulhos e enquanto o guarda se aproximava meti a mão e guardei-a no bolso. Foi um pressentir de salvação.