sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Um Amor Pequeno

Provavelmente não há o Deus que imaginamos a pôr alguma ordem no mundo. Um ser exterior que nos organize a vida e que, se bem pensarmos, se pauta pela paciência nas relações parentais, crianças asneirentas que somos. Apesar do atestado de menoridade que passamos à espécie, e ainda que Ele não exista, há-de haver um acaso inteligente – mesmo muito inteligente e até poderoso, que criou onde a mente humana soçobra.
Ora, num desses acasos do destino, não dos mais inteligentes – foi mais um acaso amoroso –, uma das primas recém-casadas veio a nossa casa passear a felicidade. E nós a olhá-la em meia desconfiança, à procura da garota que nos gastava mãos cheias de açúcar  a queimar sem sabedoria o melado dos pudins. Mal ele começava a granular, o açúcar está estragado, vai lá deitar fora, pomos outro. Prática, deitava novo açúcar na caçarola e logo que começava a granular, oh, este também está, deita fora. E gastaria quilos se nós os tivéssemos, ignorante de que o granulado de açúcar é o passo anterior ao formar do caramelo. Confesso que, nesse dia de visita, a olhava também a procurar sinais de casamento que não sabia quais fossem, sobretudo porque ela me pareceu a mesma loirinha bem-disposta e cheia de ideias malucas. Por outro lado, havia alguém que nos atraía mais: o marido. Mas também nele só encontrámos um rapaz alegre de melena comprida em ar de rock. Quando saíram, ficámos a olhar uns para os outros e eu, que te pareceram? A minha irmã, não parecem casados, pois não? Eu, pois é, parecem dois miúdos.
Posto que o casamento não se lhes notasse, o nosso jovem primo interessou-se pelo que fazíamos, como passávamos o tempo – lisboeta a preceito, devia estar contente por ter descido, sem querer, à pré história; e tudo inquiria -. E foi assim que contámos a nossa desgraça de nem rádio. E ele, eu arranjo rádios. Vão lá buscá-lo. Mas nós estarrecidos de esperança, abalholhados e a sorrir, de certeza um pensamento comum, "tu eras a única pessoa que a gente queria". A voz dele a sacudir-nos, vão lá, que quero vê-lo.  E logo alguém subiu ao sótão e o trouxe. Uma lástima empoeirada e cheia de cocó de pássaro.  Ele olhou e, que se ouvisse, não formulou juízos de valor. Quis limpar-lhe o pó, mas afastou-me a empurrar o aparelho para dentro de um saco plástico, desimportado de pormenores, deixa estar que eu limpo-o lá em casa. Vou ver o que posso fazer. E partiram os dois. Nós todos a acenar ao casamento de brincar e a desejar que o novo primo se lembrasse de rejuvenescer o rádio.
Passaram os meses e nada de rádio. Quando víamos o primo ele batia na testa com força e, ahnnn….bolas! Esqueci-me outra vez do rádio. Não entendíamos se tinha esquecido de o arranjar ou de o trazer. Vieram frios e calores, primaveras incipientes e bulbosas, outonos pelo chão a restolhar. Nasceu-lhes um filho. E comecei a preocupar na ideia de que o rádio do meu avô tivesse ido morrer tão longe. Já o preferia para ninho de pássaros, feito múmia no sótão. Parecia-me até que essa morte próxima era mais ao jeito do meu avô. Aos serões, falava nisso e o meu pai dava-me razão, ainda que não pelos mesmos motivos. E aproveitava para desdenhar do lisboeta e das suas capacidades com os transístores. Eu ofendia e saia da mesa arrependida de repuxar a conversa, mas, quando descia o degrau da cozinha pequena, ainda ouvia os finais, és mesmo anjinha, tu, acreditas em tudo.
Certa noite, os quatro sozinhos, bateram à porta da frente. Só podia ser visita. Munida de candeeiro e curiosidade, fui abrir. E a comitiva a espreitar atrás, o meu irmão bem no fim do cacho, um medo reticente em alarme de pernas e voz, a inventar delicadezas de larápio, e se forem ladrões
       Mas, destrancado o ferrolho, só o primo. Estranhámos. Ele sorriu e  entrou no carro. Retirou um embrulho, a porta do automóvel bateu enfastiada, num aborrecimento de deixa-me em paz e, num toque de sino, o rádio! E um sorriso lindo a envolver; que embelezou à expressão, o arranjo é grátis. Fomos todos, corredor fora, em procissão com vela e tudo, até à cozinha. E, quando poisou o aparelho sobre a mesa, pasmámos. Não parecia o mesmo. A bem falar, nunca o tínhamos visto assim. Estava novo. E ele a curar-nos do espanto, estava tão sujo que tive de pô-lo na lixívia, ficou quase uma semana de molho. Engoli em seco, um bocadinho envergonhada. Rodou o botão e ouviu-se uma música. Distinta. Clara. Nada de balbucios rudimentares. Aquela gente estava com a força toda. Já de saída, virou-se para nós e, pus-lhe pilhas novas. E desapareceu no escuro, os faróis a alumiar bocados de árvore, as laranjeiras enormes e sombrias, o meu irmão a impacientar-me a mão livre, vamos para dentro que estou a ver ali uma sombra a mexer e tenho medo. E, em peregrinação, regressámos à cozinha, a  matar a saudade do rádio.
No dia seguinte, mal o liguei, percebi que não sintonizava nos mesmos números, mas lá fomos procurando e encontrámos todos os postos excepto o Rádio Clube, já então mudado em Rádio Comercial.

Ainda não descobri o que aconteceu à Rádio Comercial, qual o caminho que tomou, mas desapareceu de todo. Um descaminho. De início, deduzi que o meu primo a derretera com tanta lixívia, que seria alérgica e não se aguentou na barrela. Hoje gosto de pensar que o meu doce avô também preferia aquele posto emissor. Que arranjou modo de levá-lo e está no céu ouvindo a Rádio Comercial. Porque, como reconhece Pessoa, as tardes da eternidade são muito enfadonhas.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Um Amor Pequeno

Os povos são todos diferentes, dizemos. Mas as pessoas tão iguais! A situação económica e a pertença de classe aproximam continentes distantes e emparelham comportamentos. Quando estive no Brasil, viajei de táxi - bem lentamente - entre o hotel e o aeroporto, os olhos a despedirem-se em tempo útil. E senti-me replantada na minha aldeia. O Táxi passava devagar pelos lugares e a mesma caterva de sombras e pobreza nos adereços, nas casas, nas pessoas. Escurecia. As portas escancaradas à brisa. No interior, os candeeiros de petróleo a bruxulear claridades, enxameados de insectos que circundavam a morte em sua dança cega; mulheres descalças ou a chinelar, entrevistas em lida caseira, sem a graça que as revistas e as actrizes emprestam ao feminino brasileiro, morenas, gordas, pesadas; talvez suadas. As tabernas vozeavam e o suor brilhante do álcool já acetinava braços, rostos graníticos riscados de vincos fundos, troncos meio dobrados para a frente, talvez sobre um copo, ou apenas sobre si mesmos, em fase introspectiva de bebedeira; Como num quadro, as pernas penumbravam informes mas, grande parte dos olhos encimava camisolas de alças, um viés para o canto onde uma televisão junto ao tecto. E, na maioria das aldeias, havia talvez um café, onde mulheres e crianças hipnotizavam, ordeiras, em bancos corridos a toda a largura da sala, a televisão ligada à bateria de um automóvel ou a um gerador que resfolegava canseiras no bafo escuro da noite. Podia ser a minha aldeia no quando dos inícios da TV. Que a minha mãe nunca viu e pouco me autorizou a participar. Daí que, lá em casa, nada destronasse o rádio.
Aos dezassete anos, fui estudar para a cidade, só regressada à quinzena. As viagens eram caras e o meu pai ditou lei. Por contingências alheias à vontade do clã, o meu avô, que começara por ficar com o meu primo em nossa casa, passou a andar em casa dos filhos. Mais tarde, adoeci e a determinada altura o médico internou-me. Felizmente alguém atendeu o meu pedido de transferência para um lugar onde pudesse estender a mão e tocar alguma visita que me chegasse, assistir o sol a nascer, usar a minha roupa, os meus sapatos, andar, correr, ver gente. Portanto, mudei de hospital. Na madrugada da mudança, o meu pai chegou preocupado e insone, um saco  colado à mão que só me passou na despedida, a voz a falhar-lhe, Toma, mandou o avô. Deu-me um beijo rápido e partiu em pressas embaraçadas de preocupação mal embrulhada na ternura triste que não sabia nem ousava mostrar mas sei que houve. A situação era tão nova que não abri o saco e fiquei embasbacada à porta, alguém a levar-me as malas, as costas do meu pai na ambulância a sumir além-portão. Quando, já noitinha, olhei o saco, o rádio refulgia lá dentro. Exultei e dei-lhe o uso que merecia.
Levei meses para regressar a casa. E quando cheguei e o meu avô uma visita, logo lhe ralhei. Ele, “tu gostas muito de ouvir música, o avô quer que fiques com ele e o leves lá para onde vais; é um gosto meu, neta. Já me tiraram tudo, só tenho a telefonia. É tua, minha neta”. E como era jovem e pateta, desatei a chorar e abracei-o, gosto muito de si, gosto muito de si, avô gosto tanto de si. E depois, avô e agora o que põe em cima da mesa-de-cabeceira? E ele, o teu retrato. - e num sorriso - Anda comigo na casa dos filhos. Vai lá ver. E lá estávamos os dois sobre a mesa-de-cabeceira eu de lenço na cabeça feita cigana e o meu avô de barrete de orelhas, cajado na mão, sentadinho na sua cadeira. Não me lembro do fotógrafo. Mais tarde, quando já não servia ninguém, os meus tios enviaram-ma ainda na moldura que lhe oferecera. E lá estamos nós dois a sumir, quase indistinguíveis na brancura amarelada daquela esquina de sol.
A “telefonia do avô” acompanhou-me a vida errante de professora primária agregada e efectiva. E todas as férias voltava à aldeia, ainda sem luz eléctrica. Nela aprendi as poucas canções que sei cantar.

Ora, objecto como outro qualquer, não se subtraiu às leis do tempo e foi adoecendo. Começou a engripar, a tossir, abriu em intermitências vocais, soluçava que só visto; e o Rádio Graça empreendeu em rugidos de leão entusiasta que não desapareceram. Perante tanta birra, as férias eram menos alegres. E deu-nos cabo dos rituais: pintar paredes ao som de música era outra categoria; serões sem Telefone Toca, perdiam encanto; não conseguíamos acompanhar os jogos de hóquei e torcer pela selecção. Estávamos pelos cabelos com tanto impedimento. Por isso, sem coragem de a deitar fora ainda que sem préstimo, guardei-a no sótão. Sem me lembrar de a embrulhar. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Um Amor Pequeno

Todos os homens preferem. E é na gradação das preferências que se instala o interesse de viver. Algumas preferências surgem naturalmente, outras são modificações do gosto. Mas aquilo que se prefere orienta-nos o agir mais livre. Uma das preferências do meu pai era encostar-se ao balcão da taberna e ir ficando. Algumas vezes, depois de muitos copos bebidos em rodada, um tendeiro ou caixeiro-viajante que tentasse a sorte, depois de muito moer, conseguia interessá-lo numa compra. Conhecendo o meu progenitor e o seu apego ao dinheiro, sei que devia arrepender-se mal estivesse nele, que podia não ser no dia seguinte nem no seguinte do seguinte, mas jamais lhe ouvi uma palavra sobre, um eco que fosse. Etilicamente, comprou um burro, duas cabras, um corte inteiro de tecido castanho que nos vestiu a todos e nunca mais acabava, um gabão e duas latas de quilo de atum Bom Petisco, de uma pureza que nunca tínhamos visto ou sentido e que nos deliciaram. Numa dessas noitadas, encontrou um pintor de azulejo e escaqueirou o velho sonho com auréola da minha mãe, o desejo de, sobre a porta, “Vivenda S. José”, em ferro forjado. Copo para cá e para lá com o pintor e mandou fazer o painel que ora existe e onde se lê Vivenda Pinto e um pinto escarrapachado, que o fulano era artista e tinha de deixar a marca. A minha mãe a observar sem palavras, numa tristura de dar dó, as pálpebras a engrossar; e o meu pai a defender-se, eu não mandei fazer o pinto, ele é que lá o pôs.
Teria eu uns doze anos, uma noite de copos pariu um rádio minúsculo. Apesar de pouco maior que uma caixa de fósforos, delirámos com a máquina. A princípio desiludi, queria um rádio como o dos meus avós. Mas depressa aprendemos a mexer na engenhoca e a perfilhámos. O nosso não era igual a nenhum, ninguém tinha coisa tão pequena. A minha irmã fazia gala no aparelho e exibia-o a todas as garotas que fossem lá a casa. Um sucesso. Entretanto, o sovina do meu pai proibia-nos de ouvir rádio durante o dia, para não gastarmos as pilhas. As sessões nocturnas começavam após o jantar com o meu chamado, mãe, olhe o romance. E ficávamos em roda do diamante que debitava frases interessantes e anormais para nós. Ouvimos vários folhetins, mas só recordo “A vida aventurosa de Wagner” e lembro-me de ter alguma má vontade ao compositor por tratar mal a mulher; e de adorar toda aquela música  muito alta e cheia de força que ainda hoje me sugere glórias militares. Também ouvíamos “Quando o telefone toca”, que nos servia de jogo, a adivinharmos o pedido seguinte; quem acertava mais vezes, ganhava. Todas as noites, mal começava a Melodia do Desespero, a minha mãe, mudem lá isso que o homem me faz impressão. É muita tristeza, o que será que ele diz? Até parece que chora. E eu ouvia hóquei em patins, vício que passei aos garotos e durou até eu mesma comprar um televisor e desinteressar do hóquei visual. De cada vez que precisávamos de pilhas novas o meu pai “fazia uma pregação”, é gaiatas desgraçadas! De certeza que deixam o botão ligado, gastam as pilhas em menos de nada.
Uma noite, talvez por excesso de uso, o rádio não tocou - o meu pai garantia amiúde, com alguns epítetos à mistura, que quem lho vendeu o tinha roubado; portanto, seria muito velho. Rodávamos o botão e uma rugida queixosa. E apenas. Somente. Trocámos as pilhas, abanámos, pusemos no máximo, no mínimo, mudámos de posto para posto, fomos ouvir na outra cozinha, nos quartos, na sala… Nada. Ficámos calados a engolir a vontade de chorar, a casa a admirar de silêncio, alumiada pelo candeeiro de petróleo que entristecia vapores amarelos. A minha mãe a olhar-nos, dêem-mo cá. Agarrou nele, abriu-o, palpou e,  oh, está tão frio, e colocou-o no chão, a centímetros da lareira. Então, começámos a ouvir vozes longínquas e progressivas, que em breve chegaram à tonalidade normal, mais pareciam pessoas que viessem a pé para nossa casa. A partir dessa noite, o rádio precisou sempre de cinco minutos de aquecimento que cresceram na proporção dos desmaios. Perdia vigor a cada noite, e, ao longo dos meses, as vozes a enfraquecer. Um dia, finou. Que é como quem diz, derreteu. O meu irmão aflito com o cheiro, os homens tão todos queimadinhos, mana.
Entretanto, o nosso rádio gozava a tempo certo, um mês de descanso. Sempre que o meu avô vinha para nossa casa, trazia o rádio dele e logo o punha sobre a mesa. Era uma alegria. O meu avô tinha uma reforma de miséria mas não queria saber se o usávamos dia ou noite, em sua casa o rádio ligado era quase permanente. Se as pilhas enfraqueciam, dava-nos dinheiro para outras. 
Foi por essa altura que comecei a passar a letra das canções que me agradavam mais. O meu avô ria baixo e gostava de me ouvir a experimentar o que tinha aprendido e se ia a correr de cada vez que dava a canção que queria copiar. Os meus irmãos solidarizavam e se não estava próxima, também gritavam, Beatriz, tá a dar aquela canção que andas a copiar. E a mais velha, queres que eu te passe um bocado? Onde é que tens o papel?

Por vezes, o meu avô com olhos de mel, o avô dá-te o rádio quando morrer. Eu a abraçá-lo, o avô não morre, tá bem? Ele, tá bem. E eu descansava.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Pré História de um Amor

O tempo toca-nos em modo próprio. Modifica-nos o corpo, a alma, os gostos. À medida do desgaste, mata-nos os amigos, traz-nos rancores antes inconcebíveis, quotidianos fastidiosos, anseios nunca imaginados. Diz o povo que ele tudo traz e tudo leva. Neste ditado, palpita a viva fatalidade  de  Anaximandro “os seres pagam pena uns aos outros..” ou mesmo as palavras de Cristo, “A quem muito foi dado, muito será pedido”. Se pensamos nas três proposições, verificamos que não serão apenas sintoma de humano fatalismo. O sentido de posse é-lhes extrínseco, antes prefiguram o efémero vital que encarnamos – somos seres passantes. As virtudes de cada homem  pagam-se sabendo que uso servem e concretizando-lhe a utilidade. Por sua vez, a religião traz o tema ao campo do dever; exige, obriga, individualiza. Concluindo: nada nos pertence verdadeiramente, nem nós mesmos nos pertencemos. Assim se talhou a minha base educativa. Talvez que, nesse tempo, a da maioria dos portugueses. E, quem sabe, dos europeus.
Mas, enquanto a minha geração crescia com a rádio e assistia à eclosão e açambarcamento da TV, na minha família ela senhoreava. Teria uns quatro anos quando vi um gramofone e sua caixa de madeira. Dava-se a uma manivela e saia música. Fascinei. Vezes infinitas, pedi ao proprietário que repetisse a proeza e enquanto ele dava à manivela eu encarregava-me de espreitar por todos os lados da maquineta, sem atinar com o milagre. Era um homem penteado, barba feita, para o comum da aldeia, um senhor. Despedimo-nos com a promessa de voltar, mas, apesar de instantes pedidos, a minha mãe não me fez caso. Anos mais tarde, contou-me que era doente do Caramulo, tinha levado o gramofone e não voltara a casa. Pensei que o Caramulo fosse doença grave; lembrei o senhor a dar à manivela para mim, enquanto as mulheres à boca pequena, está tão bem encarado, mais gordo, estimadinho, olha a pele dele, nem parece que andou ao campo. Muitos anos depois, passei ao sanatório do Caramulo e pareceu-me ouvir o som do gramofone a sobrevoar o abandono do lugar. O senhor deve mas é ter-se curado e continua a dar música ao fresco das serras.
No meu período de escola primária, conhecia os rádios das duas tabernas e  tomava-os como enfeites, tal a algazarra masculina. O meu padrinho, que era homem de aproveitar tudo, a rir com seus dentinhos de coelho – os meus professores, aquele espaço na dentição chama-se barra ou diastema - varre lá aí a taberna ao padrinho. E deve ter rodado o botão do rádio. Parei logo com a poeira, dei um pulo e sentei-me na mesa do chinquilho a ouvir. Ele rápido, a salpicar gafanhotos para todo o lado com o nervoso, sai já daí, as marcas estão a giz, apagas isso tudo aos homens. Varre mas é a casa. E rodou de novo o botão. Fiquei a pensar que bem merecia a barra ou diastema dos coelhos.
E um domingo em que visitámos os meus avós, surpresa! Um rádio sobre a mesa. Cresci de alegria. O meu avô sentou-me no trôpego dos joelhos e ficou a girar um botão que fazia um pau fininho avançar e recuar numa janelinha com números. Quando saí, já memorizara o número de cada posto, os meus dedos pequenos sobre os dele a rodar o botão, avô eu sei, eu sei. E ele a rir baixo, uma poalha de ternura  no ar. Diziam-me, em que posto está, e eu ia ler e depois, Rádio Clube, Emissora Nacional, Emissora Dois, Rádio Graça.
Na minha mente, a cada um dos postos de rádio correspondia uma imagem. Assim, o Rádio Clube era uma coisa desportiva com meninas de sainha curta e raquete ao ombro a jogar ténis, que era um jogo que não sabia como se chamava, mas apareciam meninas assim nas fotonovelas a fazer propaganda ao modess; e eu lia naqueles balõezinhos com frases que elas iam ao clube com modess pétala macia, cujo também julgava ser um homem, por sinal com nome bem estranho, mas sendo brasileiro…porque não? E no boneco havia ainda os rapazes com camisolas brancas de risquinha no decote. Na minha leitura, esses eram os modess. O Rádio Clube era o meu posto preferido. Além disso, falavam do Omo que eu pensava que era uma pessoa porque lavava mais branco. Admirava-me era que fosse homem e não mulher, mas pronto. O mundo não pode ser todo igual. E nem eu sabia de máquinas de lavar.
Depois, havia a Emissora Nacional de que gostava menos, cantavam fado, ouvia-se o presidente de vez em quando e pensava que era um palácio enfadonho e aborrecido todo cheio de alcatifas onde as minhas pernas queriam avançar e não podiam. De vez em quando, sonhava-me perdida no meio das alcatifas que inventava, as pernas presas, dava um reviravolta na cama, enleava-me nos lençóis e caia estatelada no chão.
A emissora dois era uma entidade desconhecida cheia de músicas que não acabavam. Ninguém cantava. E isto enchia-me de insistências e dúvidas que aborreciam toda a gente. Foi a única rádio a que não dei imagem.
Finalmente, o Rádio Graça, onde eu julgava que tudo era grátis e supunha ser uma espécie de parodiantes de Lisboa, acerca de quem a minha avó, “têm graça; têm muita graça”. Imaginava um armazém muito grande com a música em fundo e onde toda a gente bem disposta e bem recebida, cada um a retirar o que entendesse. Mas quando pedi à minha avó para irmos até lá, ela olhou-me como se fosse maluca e, isso não pode ser, vai para a rua brincar e deixa-me trabalhar em paz.

A compra do rádio guindou os meus avós à riqueza. Os meus avós. Que não sabiam ler, pagavam o rádio a prestações e tinham uma cozinha de chão de terra. Mas que me  interessavam tais pormenores? A minha mãe dizia-me que não comprávamos um por falta de dinheiro. E a lógica infantil fez o seu caminho. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Pré-História de um Amor


Todas as pessoas se armam contra a solidão. Mesmo as que dizem que não se sentem sós. Também elas. Porque, ou mentem, ou não sabem ainda concretizá-la. Identificam-na, talvez, com uma falta de companhia. E não estão erradas. A solidão é um estado de alma que não depende necessariamente da presença de um ser físico, mas essencialmente da falta de um estado de companhia. O que as pessoas mais sós ignoram é que as companhias desse tal estado não se compram ou se trocam; não têm a ver com risos e gargalhadas, ainda que possam existir; viram costas a muita conversa e solicitude baratas. A companhia só existe se haja uma relação profunda entre o acompanhado e o acompanhante. Dizem-me, ah, e então as companhias de viagem, aqueles seres empáticos a quem contamos mundos e fundos que não abrimos para conhecidos? Respondo que a fugacidade desses encontros não chega até à solidão. Somos um compartimento desenhado a todo o comprimento e eles são lâmpada de entrada, não contam para a luz da sala. Ajudam sobretudo na visibilidade da porta. O estado de companhia forma-se em anos de sedimentação. Como as rochas. Existe com grandes amigos, grandes amores e outras pessoas sem as quais o núcleo nos surge incompleto, haja ou não laços de sangue. Mas também com os animais. E os objectos. Sim.
“Na adolescência é suposto começarmos os amores”, quando li isto num livro preocupei e fui informar-me sobre a duração da adolescência. E constatei ser meio anormal, durante tal período da vida não me passou pela cabeça gostar de nenhum rapaz (nesse tempo desimaginava que a homossexualidade existisse). Nem me lembrei que a amizade também é um amor. E que, além das minhas amigas, desenvolvera um certo amor por alguns objectos, alheada do mundo animal.
A minha história com os animais é um bocado vergonhosa. Temia-os e enojavam-me um tanto. E não me refiro à infância. Se a minha mãe me punha nas mãos a galinha que chocava, pegava-lhe nas asas com as pontas dos dedos a afastá-la do corpo quanto podia. O passo seguinte era a queda do galináceo, a mãe sem gritar, um tudo nada de acidez, como é que não seguras uma galinha choca que nem se mexe, apanha-a lá, vá. E, face à minha recusa e inépcia, não sou capaz, apanhava-a do chão onde estava engolfada em novelo e voltava a pôr-ma nas mãos, a apertar-me os dedos sobre as asas, Beatriz agarra bem a galinha senão ainda apanhas tu. E eu, olhos fechados, a fazer força nas penas e a sentir sob os dedos a carne morna e febril que me torcia os lábios, o veio grosso das penas como um pequeno tronco, mãe isto do meio das penas é madeira? A mãe, segura o animal Beatriz, estás a deixá-la cair. Está à vista que as galinhas não me serviam as ternuras.
 Do cão tinha pavor, um medo gigante se rebentava a corrente. Se acontecia ouvir-lhe os latidos fora de sítio e me encontrava na rua, estacava e mais ou menos a chorar, ó mãe! o cão tá à solta, Ele ouvia-me, desatava a correr na minha direcção, punha-me as patas nos ombros e derrubava-me de alegria. Eu ficava no chão a chorar e aos gritos de, ó mãe, tenho medo do cão, venha cá, mas sem me mexer, ainda assim ele não se renovasse nos cumprimentos. O pobre animal ficava um bocado a olhar-me e a abanar a cauda, as patas fincadas no chão a parecerem pés de mesa e as unhas que, não sei como, me lembravam garras de águia, ave nunca vista, a enormizarem. Entretanto, a minha mãe acorria em presteza silente e ele desabria para o lado oposto. E só aí começava a levantar-me cheia de pó, ranho e queixas. 
O restante séquito de quatro patas não ia mais longe. Os nossos gatos pretos, pequenos seres de rua que por vezes devinham selvagens à força de incursões solitárias pelo montado, desinteressavam-me. Do burro tinha um medo feroz e jamais me aproximei do coitado. Muito adolescente e mais palerma, à conta da gulodice de uma cabra levei umas chapadas bem dadas, uma sova. Foi a última vez que a minha mãe bateu num filho. Os meus irmãos, ai, ai, deixaste fugir a cabra; tira-a da oliveira, olha que a mãe bate-te. E eu a metros do animal, a abanar muito os braços, xô, cabra! Sai. sai. Mas a cabra fixada na oliveira. Com os dentes. A roer, a roer, a roer. A minha impotência queixosa, ela não sai. E a oliveirita a desaparecer nas beiças daquela imbecil mal mandada. Os meus irmãos com boquinha redonda, Ai deixa, a cabra comeu a oliveira toda! E a mãe já vem aqui a chegar. Agora apanhas. A minha mãe a subir penosamente com o burro, rosto impenetrável. A rumar ao estábulo e a minha mente, talvez não me bata. Espectáculo! Só a cabra é que gostou.
 Os porcos cheiravam muito mal para o meu gosto e, se pudesse, nem proximidades. Quanto aos coelhos, comiam demais. E cheiravam a coelho. A minha tia a olhá-los embevecida,  animaizinhos tão bonitos. E eu muito séria a ponderar a vida da coelheira, ó tia os olhos deles são palermas, olham tudo igual, a dar-lhes as costas num remate, Os coelhos são parvos.

Portanto, restavam-me os objectos. Deve ter sido assim que comecei a gostá-los. Fazia-me falta vê-los, tocar-lhes, usá-los. Eram companhia silenciosa e quieta, não tinham aquele cheiro de bicho e estavam sempre em algum lugar. O rádio foi o primeiro que me deveio próximo.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Hannah Arendt

Hannah Arendt é uma figura ímpar do século XX, um ser humano raro. Porquê? Porque sim. E sim é ter lido três dos seus livros, a saborear-lhe o entendimento de todas as coisas e das pessoas. Verdade, a inteligência tem paladar. Pouco sei da sua vida, por não ter hábito de ler contracapas. Quando vi o anúncio de um filme biográfico sobre esta mulher que admiro, marquei-lhe data – a próxima que me deslocasse a Lisboa. E foi hoje.
            Animada por tal brisa, entrei num centro comercial à hora de almoço e o enjoativo de fritos invadiu-me por inteiro. No completo de mim. Era uma misturada de fast food que se debatia no ar, sou eu que pairo, sou eu, sou eu. E logo um outro a sobrepor, não, não, eu sou mais forte, tenho caril, cebola…E um terceiro a empurrar os dois, nem pensar este é o meu reino. Fora! E idem, idem. A agoniar-me. Mas as gentes sentadas no barulho, olfacto habituado a lutas aéreas, mastigando. Ou só olhos mortiços, em observação de movimentos e passagens. A ilusão de viver que emprestam a pressa e a vida dos outros! Não será bem assim. É mais uma saudade que os encontra sem densidade e irrompe por eles dentro se um parzinho de mão dada a conversar entendimentos; ou se cruzam olhos inquietos, que esquadrinham o espaço até ao alisar  descontraído e expressivo. Encontrou. E, nos seus olhos de presente inábil, passa uma espécie de inveja do futuro que já não sentem e existe – pensam -  em quem transita.  Que só o entendimento procria futuros.
A essa hora, perfumadas e blazées, as mulheres enxameavam. Mas a omnipotência do cheiro. Armado de rudeza, engolia sem complacências odores fortes de Chanel e Givanchy, a ofendê-los no âmago, que mixórdia é esta? Retirem-me da cloaca, por favor. E as águas de colónia a desfalecer fraquezas, desisto.
Perseverante e razoavelmente agoniada – tenho quase sempre que peregrinar para obter -  aguentei uma fila comprida a lagartar por entre a rixa de odores que nessa altura já me pareciam a ranço. Cansada e contente. Futurava estar bem sentada duas horas, imersa num assunto de filme. Bem-disposta. A descansar de ser mim. O cinema obriga a pausar o quotidiano; ser ninguém,  esquecendo que somos alguém. Ali, somos filme.
Desilusão. O filme não tem chama. Ou não me chamou. Cinge-se à posição humanista de Hannah Arendt no julgamento de um nazi e às consequências drásticas dessa posição, defendida num jornal americano. Hannah incompatibilizou-se com as chefias do movimento sionista por lhes apontar culpa na defesa dos judeus deportados para os campos de concentração. E a sua maior coragem foi sacudir as consciências desde o interior e apontar o réu como uma despersonalidade, alguém que perdeu a capacidade de pensar, delegada num führer. Mas todos esperavam uma violenta condenação - ela mesma fugira de um desses campos -, os adjectivos em catadupa, pedradas de enterro fundo.  “Hannah Arendt” é um filme sobre o perigo de tocar a verdade com as mãos. E do quanto os outros não nos gostam por nós mesmos, mas por julgarem que comungamos dos seus ideais e preconceitos. A luta contra a subjectividade da opinião. E a vitória do pensamento crítico. Filosófico.
No entanto, e apesar da fita tentar apresentar uma Hannah Arendt muito humana, ela falta. Há ali uma inveterada fumadora, a pensadora, a mulher dedicada aos amigos mais antigos, a excelente professora. O trabalho da actriz é notável na oralidade conseguida. Mas a Hannah Arendt dos livros que li, apesar de algumas frases e conversas textuais, não apareceu. Em compensação, Mary, a amiga, é bem mais avassaladora e empática. Há no filme uma racionalização das relações amorosas que não esbate nos beijos trocados. E o encontro com Heidegger não pode ter sido aquele amor quase nada, que ali  é  apenas aflorado e semelha mais uma paixão de velho a que a aluna corresponde com admiração e complacência.  E que joga mal com a afirmação de que o seu inexplicável foi Heidegger.
De todo o filme, gostei de uma frase que me faz sorrir, por ser a que menos tem a ver com Hannah. Depois da doença, dão uma festa em casa que reúne de novo os amigos dos serões antigos. Para comemorar. E quando saiu toda a gente Heinrich diz algo semelhante a, “como me cansou comemorar a minha saúde!”.
Num filme filosófico, não me parece bem lembrar-me só desta frase. Reconhecer-lhe razão, em identidade subjectiva. No finalmente das festas, sou ele. O que seja que se comemore.
Está decidido, vou ler mais uns livritos de Hannah Arendt. Mais vale.






terça-feira, 15 de outubro de 2013

RUI

Há olhos problema. Miram-nos de dentro de um intrincado que lembra um fino enredo de fios, sem vislumbre de ponta. Foi assim que te vi nos poucos meses em que foste meu aluno. Meu aluno! Isto sim é enredo. Eu saberia mais de alguns assuntos, mas tanto aprendi nas aulas. Tanto. Olhava-vos e o desabafo de Matilde Rosa Araújo para a sua primeira turma, a acotovelar-me, “e como éramos primários e sozinhos…”. Quem sabe, todos sejamos primários e sozinhos. E tu eras sozinho. Alto e sozinho. Sentavas-te ao fundo da sala e ninguém a teu lado. Parecia-me então que preferisses assim, lacónico e atento. Entravas e saías sem que se desse por ti, na algazarra da turma. Quantas vezes te olhei as costas direitas, a cabeça que subia acima das outras… e algumas delas chamei-te. Voltavas atrás. Falavas o essencial, mas olhavas bem dentro dos meus olhos e eu observava o teu emaranhado de fios, tanto nó! Mas conversávamos sobre outras coisas – eu conversava, que tu, frases curtas e monossílabos. Se te lembro, continuas a olhar-me do fundo de um quadro de Modigliani, a floresta negra das pestanas a debruar-te o imenso tormento verde. Um rosto trágico. Sério. Sem o ameno de um sorriso. E eu, que não sei desfazer tragédias senão com palavras, perguntava-te umas coisas, contava-te outras… uma estratégia palerma, mas não sabia de outra forma para me aproximar do enleio na tua meada.  
Um dia, fizemos grupos de trabalho e deixei livre a formação. Quando anotava a constituição dos grupos, verifiquei que não pertencias. Continuavas lá ao fundo. Sozinho. Cabeça erguida. Inquiri-te. Respondeste que tinhas tentado dois grupos e nenhum te quis. Começou-me a subir uma raiva fininha, mas instei a turma. E um silêncio de moscas. Renovei-me na questão. Nada. Até que uma aluna espevitada, stôra, ninguém o quer, ele não sabe, falta aos trabalhos, não ajuda. Coraste violentamente. Perguntei como podiam antecipar o teu comportamento. Logo, foi assim no trabalho anterior, na disciplina de. E o peremptório de alguns grupos, com ele, não! Passei-me. Era um décimo ano, a maioria alunos do colégio. As meninas a vociferar que não te queriam, fazias-lhes baixar a classificação. Então, peguei na religião que arvoravam a todo o momento e disse-lhes que não era cristão o que faziam, que não compreendia a sua posição, as avaliações eram individuais e não de grupo. E integrei-te no grupo delas, propondo-me, intimamente, acompanhar-te mais – eras mais velho mas indiciavas atraso, confesso que supunha que a tua idade mental seria inferior à cronológica e que um curso profissional te servia melhor que a área de Ciências e Tecnologias, que, à época, tinha outra designação. E julguei o problema sanado.
Porém, no dia seguinte, o teu grupo comunicou-me a sua dissolução; optavam por um trabalho individual. E dessa vez a minha voz tremeu e devo ter-me irritado, não autorizei trabalhos individuais e mantive o grupo. À tardinha, tinha o encarregado de educação de uma delas em minha casa. Para, supostamente, me dizer que a filha era católica e cumpria com os deveres da sua inatacável religião. E acrescentou displicente, num repto quase sussurrado, que eu te protegia por seres filho de quem eras. Eu. Que ainda hoje desconheço quem sejam os teus pais. E que fui educada no mesmíssimo colégio. Foi a primeira e última vez que um encarregado de educação pediu contas em minha casa. O teu grupo funcionou e apoiei-te na parte de trabalho que te coube. Fizeste uma apresentação razoável.  Parecias satisfeito.
Bem mais tarde, já quase no fim do ano, as garotas pediram desculpa. Mas, entretanto, tu já tinhas desistido da escola, os professores aliviados. A mim, desculpa, soou-me a traição, pareceu-me mal. Mau grado a idade adulta, a juventude crédula remanescia-me pacífica. Podíamos mudar alguma coisa. Os dois. Senti-me abandonada quando, sem aviso, deixaste tudo.
A vida leva-nos onde quer e não voltámos a cruzar-nos. No entanto, soube que casaras. Porém, mal um filho nascido, o divórcio. E pensei que o enleio estaria ainda intacto, no teu fundo verde. Desconhecia, mas falavas em suicídio. Que agora consumaste. E lamento, lamento, lamento. Devia ter procurado melhor, achado uma ponta que, no meu razoável de desenlear fios, quem sabe, uma linha inteira sem um nó. Mas não desenredei nada, não andei um centímetro. Por certo, contribuí no aperto.
Talvez que, enfim, os teus olhos, desenleámos. E a floresta das pestanas em repouso, sem uma sombra a afundar.

Dorme. Dorme que o mundo te pesou sempre. E que um anjo  toque de leve as ondas do teu cabelo e a paz te acompanhe no eterno.

domingo, 6 de outubro de 2013

Pequenalmoçar

Talvez eu devesse escrever sobre política, porque se vive ainda o rescaldo de eleições autárquicas. Ou seria mais eficaz alargar horizontes e discorrer acerca de um problema premente que seja notícia no mundo. Mas não me apetece. E neste espaço só escrevo de apetite. É tão reduzida a gente que me lê, que, sorry, a esqueço. E é bom que assim seja. Lembrar-me seria contrair um quê de obrigação. Sou assim, de me obrigar a coisas que não passam pela cabeça de pessoas sensatas. Mas lembram à minha.
Posto que sou livre neste bocadinho que ainda não sei bem se é de tempo se de palavras, vou escrever sobre deglutição. Pois. Comida.  “Coisas” que se engolem e me fazem feliz. Estou precisada de uma felicidade de bolso que comece no palato. Pode parecer assunto desinteressante, porém, o livro mais hilariante que li de Isabel Allende aborda a relação dos alimentos com o amor, erotismo e afins. Penso que contém receitas que comungam do espírito do livro. Com humor do bom. Chama-se Afrodite e julgo que lhe tenha servido de terapia após a morte da filha. É assim mesmo, enquanto alguns afundam a carpir dores, ela o fez de variados modos, e durante vários anos, que um filho não se nos morre sem que a morte nos revolva da cabeça aos pés. Allende teve necessidade de se resgatar à morte. E Afrodite é um poderoso documento, a ressumar vida e  boa disposição. Tem vezes em que somos assim, díspares, curamos a tristeza – melhor é dizer que a esquecemos no momentâneo – com bom humor.
Se olho para a minha árvore genealógica, desatino deste amor à mastigação. Não descendo de bons gourmants e nem de gente adiposa (em tempo de vacas magras quase ninguém era gordo). Desde cedo me habituei a olhares piedosos e meneios de cabeça, “tão magrinha”, e logo, “gordura é formusura”. As refeições empanicavam-me.  Sempre que a minha mãe chamava para almoço ou jantar, acorria em lágrimas, o meu pai a rir alto, tás a chorar para quê? Nunca vi ninguém chorar porque vai para a mesa. Um sofrimento pegado. Não conseguia engolir a comida que rodava de uma bochecha a outra em repugnância que impacientava a minha progenitora, o sabor a adocicar e a tornar-se mais intransitável a cada volta. E nem à vista de uma palmada bem assente, descia a ponte levadiça da minha garganta. Por vezes, a minha mãe abreviava e alimentava-me como um bebé. E aí era certo, vomitava tudo. Nessas alturas, a minha mãe, que não era santa nem nada e se preocupava com o ínfimo que me ia parar ao estômago, desarmava; limpava-me a boca e dava ordem de sair da mesa. E lá seguia, contente. De estômago vazio. Desse tempo não guardei outros sabores particulares com excepção de suspiros e bananas, iguarias que só provava de longe em longe.
No entanto, aos onze anos, o subtil prazer da mesa foi-se chegando por via de uma amiga de férias que comia melão, fruta que eu detestava, com tal enfâse que me causava inveja; além disso, descrevia-lhe o sabor em meneios artísticos de rolar os olhos e pôr a mão no estômago. Em apoteose, dizia-me, experimenta, vais ver que gostas, o melão sabe a flores. No primeiro dia comes só um quadradinho, no segundo experimentas dois e depois já comes talhadas inteiras como eu. Naquela colónia de férias tínhamos monitoras, mas ninguém como aquela amiga - escrevemo-nos anos e anos até que filhos e marido a retiraram às letras – me levou a apreciar o que se come. E era vê-la no dia em que experimentei, em suspense, a observar com alguma ternura o resultado da sua sugestão gastronómica. Para ela, eu conseguir comer um quadrado de melão, situava-me no mundo; é que, sem essa experiência, seria uma pessoa incompleta. É claro que essa amiga de férias fez vida na restauração.

Hoje vivo numa terra a formigar de gente, mas decerto não há muito quem se sente à mesa com a agradabilidade que me anima. Porque em cada dia há o requinte de ser manhã e haver uma cozinha só para mim a cheirar a café e torradas. De eu ser nela descansada, o corpo a sacudir sono e deixar cair colheres, os movimentos num atrofio, pés a tentarem recuperar agilidade enquanto a manteiga toda se derrete a insinuar molezas que os dentes apetecem. E haver tempo para o calor da chávena nas mãos que sempre me puxa a melancolia. E logo te sinto ali, imagina. A existires-me antes do sol. Entre dentadas de pão e goles de café com leite. Acho que gosto do micro-ondas por me acompanhar manhãs e madrugadas com o mesmo calor entusiasta. Sim. Que, se me levanto às três ou às quatro, o cerimonial idêntico. Depois fico um nadinha meio tonta, a mão na persiana, a olhar a rua que não é ela ainda e aos poucos se vai vestindo de si. E passam vidas dentro de carros que são relâmpagos apressados no escuro da janela, gente que talvez não encontre no dia que começa senão muitas horas e minutos de atravessar. E fico-lhes com pena do cedo, de, quem sabe, se apressarem em casa sem um tempo de acordar. Mas em mim há certeza de estar viva e de o dia a romper. Então, volto ao pequeno-almoço, sento-me de novo, afasto a chávena e puxo o copo com o sumo; passo um invariável dedo nas gotas que cristalizam no cálice a boiar amarelos e admiro-lhe as linhas que me cativaram na escolha. Tão bonito, beber por ele a manhã! E atento no sem vontade da compota, a escorrer da colher para o pão, espessa, em pingos grossos de açúcar que ferveu brandamente, misturado com os pedaços de fruta; uma brandura apurada em minutos e horas de fogão. E gosto de pensar que ela nos guarda no sabor, na textura, no cheiro. Estamos os três dentro do frasco, eu, o açúcar e a fruta.