sábado, 30 de junho de 2018

O Rasto da Água


Já escrevi de tudo sobre a água e a nossa relação. Mas escrevo de novo. Para repetir o prazer de falar dela. Da água. Amor sem tempo ou idade, isento de quebra ou tracejado.
Infância
Como em todas as relações de crescer, começámos com certa cerimónia. Do meu lado, respeito. Olhava-a de olhos baixos, um fascínio medroso e incrédulo a interrogar o breu espelhado do fundo dos poços, se eu caísse deixavas-me morrer. Por resposta, só o eco atordoado dos meus gritos. Depois havia a água bebível, carregada à cabeça em bilhas de barro içadas a pulso, e usada em economia de gastos. O agrado de saciar a sede deu-lhe primazia, ainda é a minha bebida preferida. E a água do banho, aquecida a lume de chão, duas panelas de ferro a borbulhar. Sempre o mesmo cuidado, água é líquido digno de valor e estima. E a praia que mal vi e logo o mar apagou tudo naquela excursão de garotos cuja finalidade era outra. Eternidade na solene meia hora de fascínio estival. É possível que a lembre mais e melhor que os intervenientes directos. Depois, havia a água encanada a regar as laranjeiras e que, se desencanava, era botão a desatar a histeria possessa e asneirenta de meu pai, bem mais precioso que topázios jorrando lapidados da abertura do cano. No tanque comum de lavar roupa, preocupava-me assistir à transmutação da água que passava de líquido fresco e transparente onde as mãos apeteciam e as peças boiavam, a uma espessa e inexplicável camada cinzenta que guardava no fundo não se sabe o quê, e causava repelência. Os outros garotos a apararem a nata cinzenta, mexe!, e eu a recuar, mãos fugindo para as costas. E havia a chuva forte que batia no barro das telhas a respingar-nos, minha mãe correndo a proteger as camas com um plástico e eu temerosa do desastre, e se as parte.
 Desconhecia lagos e represas, rios, regatos, barragens. Fustigava-me a curiosidade uma fonte humilde que gorgolejava baixinho no meio de pinheiros, em doloroso desperdício que enterrava no pó castanho por entre carumas aprendizas de natação. Brotava do quadrado escuro de pequena cisterna a que chamávamos a nascente, e onde as cobras de água da nossa crença eram mais largas e compridas que braço de adulto. Puro terror jamais vislumbrado no embevecido caminho do cabelito de água a empoçar.  Por mim, era habitada por fadas, local de encontro de príncipes e princesas, assistente nocturna de maquinações diabólicas de lobisomens, talvez as cobras metidas ao barulho.

domingo, 17 de junho de 2018

Requiem para uma Flor


Morreu a minha última avó. Foi uma avó de coração, que sangue comum não nos existe. Não era uma velhota bonita e tinha voz ligeramente áspera, mas olhava todos com bondade. De longe em longe, tropegava ao amparo da bengala, olhos espargindo saudade na difícil romaria de meia volta em redor da casa florida. Uma odisseia.
Em tempos, corriam crianças pelos cantos da casa, no jardim, junto às redes de rolas, pombos, galinhas e canários. Ou em curtas escapadelas pelos regos da horta. Ali abrigou filhos, netos, bisnetas. E mais crianças que criou desde o berço, em desvelo de  ama benfazeja. Agora acorriam-lhe aos pés duas cadelitas sôfregas, esfalfando ladridos desalmados à proximidade de qualquer. A osteoporose prendia-a por todos os lados e a frequência das quedas compadecia em fundas cicatrizes espalhadas por braços e pernas revelando padecimento hospitalar. E ainda assim vivia em sua casa, arrastando-se de um lado a outro, os animais por companhia. Visitei-a menos do que devia apesar de morar no fim da rua, a escassa meia dúzia de metros. A gritaria das cadelas incomodava-me. E quanta vez lhe perguntei se não lhe impediam  os movimentos. Mas  eram a sua única companhia, a família aparecia no fim do dia de trabalho.
Foi assim até ao dia em que tropeçou numa - ou nas duas - e entornou a chaleira fervente sobre o corpo. E ali ficou caída, horas e mais horas em urgente sofrimento, até que a tardinha lhe trouxe a filha. E depois o lar de idosos. E logo, logo, a morte.  
Guardava para mim uma flor vermelha que não chegou, acabidada por filhas ou netas. Mas as rosas do muro, essas,  foi ela que, anos atrás,  as deixou ao entrar da porta. E cresceram. E quase por milagre, parece ter ressuscitado a última árvore que o marido plantou às vésperas da morte. De cada vez que a visitava vinha a pergunta, como é que ela está, ele dizia que não se aguentava, que estava quase morta.... E eu mentia, está linda, pegadíssima.
E um dia, avó, encontro-a nas ruas da eternidade, a nossa flor vermelha no braço sem cicatizes, bom de todo, tome lá minha neta.  


sábado, 9 de junho de 2018

Chico Buarque


Rever Chico Buarque depois de mais de uma década. Embevecer no superior carinho português, uma desmesurada ovação a envolvê-lo mal  pisa o palco. Ser o ar lançado nos assobios, o ímpeto das mãos, a garganta presa de vê-lo contente e comovido de e com o público. O espectáculo inteiro foi reencontro carinhoso, um esvanecer de saudade desvanecida. Homenagem do Chico ao povo português e a recíproca e apoteótica rendição expressa em aplausos, bravos e inesgotável estridência de assobios a repetir e repetir em cada canção, em cada frase e pequeno  aparte. Não posso saber como foi no Porto, ou mesmo em Lisboa nos dias que se seguiram. Mas tenho certeza absoluta que, em qualquer parte do mundo, Chico não terá melhor público. Tudo ou quase tudo foi cantado a meias e assobiado e aplaudido mal as canções eram identificadas. E o carinho português é o de quem o viu crescer na música e na vida, lhe acompanhou juventude e madureza e se prolonga na velhice. Esse carinho particular é a supervitamina que o sustenta e faz portugueses como eu esquecer o preço de duas horas de  encanto. Deixámos de ser eternos. Agora, cada vez é única e pode ser a última. Li algures que existem as noivas de Chico Buarque. Jamais me senti noiva do Chico. Estou com todos os que não lhe conhecem apenas a figura magra e quase estilizada, a unicidade dos olhos, o rosto vivido de eterno menino tímido e bem comportado. Mais além, brilha a sua inteireza e convicções, a ternura familiar que sugere sem exibir, o jeito terno e quase plano de sempre cantar o amor, a humanidade rasa das histórias que escreve e canta. Este não me pareceu o seu melhor álbum. Voz e figura ganharam uma nota melancólica, espécie de fatalismo que quase nos entristece, como se a poesia voe tão perto do chão que possa sumir-se nele. E, contudo, sou-lhe grata pelos versos da primeira canção que foi também a última,"Vem esquecer tua tristeza / Mentindo à natureza / Sorrindo à tua dor." Era para isso que estávamos ali, para enganar a natureza. Com ele, conseguimos. Depois, moveu-me canção mais intimista, abrindo portas ao que, de outro modo, não descerra, “deve haver um confuso casarão onde os sonhos serão reais/ e a vida não/uma espécie de bazar/ onde os sonhos extraviados vão parar”. O sonho extraviado que permanece nesse tão nosso e confuso casarão e que ainda assim nos alumia.  E depois houve Todo o sentimento e nele, “o tempo da delicadeza”, um desligar para voltar a ligar que se assemelha demais ao sentir que perpassa em Tua cantiga, qualquer coisa de irracional que acorre a um suspiro, ao aceno de um lenço caído, a um nome com cheiro de perfume; canção que parece tão súbtil e leve, mas tanto apela a uma força desordeira. Tudo banhado em simplicidade. Como sempre. E houve Tua cantiga, feita para amores supremos e só não entende isto quem sofre de séria parvoíce. Há quem escreva que Chico simboliza o amante delicado e ideal. É verdade, ele também canta o amor, sim. Ao longo da vida, sempre guardou o lugar de cantá-lo. Digo eu que tem vindo a desenhá-lo nos vários estados, sólido, líquido e gasoso.  
Obrigada, Chico.

sábado, 2 de junho de 2018

Feira do Livro 2018


À saída do metro, o vôo de olhos  desejantes procura a nuvem roxa, etérea primavera  dos jacarandás no Parque Eduardo VII. E eles em involução friorenta, na revessa uns dos outros a curtir o desconsolo. Dos troncos escuros desprende-se um dramatismo vibrante e os braços, que requebram em cotovelos sombrios, erguem-se da clorofila em angústia sinuosa. Envergonhados, murmuram pardas desculpas que o trânsito ilude, não sabemos o que se passa, mas há-de ser deste frio que atordoa e da falta de sol. E as gentes em demanda das barraquinhas dos livros, a esquecê-los de empreitada, ok, ok, já percebemos. Hoje, a demora promete ser inteira para as letras.
Na viagem por este mundo de papel, os alfarrabistas são tentação que requer vagar e uma partitura completa de amor ao livro.  É um nunca acabar de tira, põe, volta a tirar e a recolocar. Ali, a escolha é  bordado que se arrasta e volta atrás, qual teia de Penélope. Mas quem gosta de ler leva alegria para casa; e o facto de ser second hand só acrescenta: houve pelo menos outro par de olhos a demorar-se nas mesmas palavras. Dizia um senhor folheando o seu exemplar, “comprei um livro por cinco euros e não só tem assinatura como dedicatória, vale de certeza muito mais”.
E em cada editora há os muitos livros que nem são caros e se gostam. Os autores que se preferem. Os escritores que se querem conhecer. Os que se coleccionam. E aquela obra clássica em que  se faz gosto e pede maior largueza de gastos, quem sabe uma herança literária que se deixa a filhos ou demais família. Então ruma-se abaixo e acima a rebobinar o calendário de propostas e contrapropostas. Da decisão brotam sacos de plástico carregados a mãos ambas. E os livros contentes, na antevisão da comunidade que é sua e dos leitores.
Mas há ainda os autores com livros novos que marcam presença na Feira. Cumprem o ingrato papel de aguardarem clientes,  alguém que lhes chegue com um livro para autógrafo.  Nesta postura de quem dá mais, os escribas  provocam mal estar a uns e curiosidade mórbida a outros. A maioria está coíbida, sente-se cobaia. António Barreto, sem um cliente, a cumprir pena. Sérgio Godinho discorrendo ao micro - e ouvido em grande parte da feira - sobre a sua mesma constatação de que o livro Coração mais que perfeito, tem mais cenas de sexo do que supunha. Quem o ouvisse podia imaginar que tenha andado a contá-las, uma, duas, três, quatro...e por aí fora. E depois a conversa de que o escritor se deixa levar pelos personagens e vai por aí fora quase sem dar conta. E que na escrita de tais cenas não sofreu de inibições nem pensou em netos, filhos e demais família que mais tarde ou mais cedo hão-de lê-lo. Uma fatia de público muito razoável a escutá-lo. A editora não perdia em ter convidado Júlio Machado Vaz. Daria boa conversa, até porque a escritora que o acompanhava tinha uma obra – trabalho de pesquisa - sobre o adultério em Portugal.
Noite escura. Frio. Pelas vinte e uma horas, o povo cerrava casacos e debandava com garra. E os jacarandás enovelados em parede de sombra mas ainda a prometer,  talvez amanhã ou depois, talvez que antes do términus o nosso manto lilás a debruar a Feira. E alguns a sono solto, sonhavam já com o apetecido bem estar: um mar de flores lilases.