segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Conto de Natal

Bati à porta e ouvi vozes e ruídos que me pareceram de mau agouro. Recuei indecisa, fujo, não fujo. Na entrada, meio morta, uma flor resistia. A visão incentivou-me. Aproximei-me e voltei a bater, desta vez com mais força. Lá dentro, o barulho cessou repentino. Ouvi passos. E quando a porta se abriu, quatro rostos curiosos. Procurei nos bolsos o cartão que os meus nervos já tinham encarquilhado. E foi milagroso, os sorrisos encompridaram. Sem hesitar, oito mãos puxaram-me para dentro. Os mais novos chegaram-se a mim. Em festa, levaram-me até à sala. E eu numa desorientação. Que família era aquela que parecia conhecer-me e eu nunca tinha visto, os garotos pareciam deveras contentes por me verem. Entretanto, a mãe, que só podia ser a mãe, fez-me sentar enquanto ia dizendo, deixem a senhora em paz. Olhe,  eu tenho uns bolinhos e faço um chá, é só um instantinho. E deixou-me com os três rapazes.
O mais velho aproximou-se e beijou-me. Depois, pegou-me pela mão, levou-me até à estante e apontou os livros orgulhoso
-  Estão todos ali, menos o que chegou ontem. Esse está na mesinha de cabeceira.
Fiquei boquiaberta. Não pela  estante que era barata. Mas os livros...eu conhecia aqueles títulos. Pensei na coincidência de gostos de leitura. Lembrei os teus cuidados nas nossas tardes de compras de Natal, os pedidos de opinião. Então, o garoto trouxe uma caixa, quer ver?, destapou-a e, lá dentro, muito arrumados, alguns cartões. Pegou-lhes quase com reverência e passou-me dois, são os que mais gosto. Eram os teus. Tinha-te visto a fazê-los. Li as frases bonitas que escreveste com a tua letra inconfundível. Estavam assinados com o meu nome: Sara. Disfarcei a surpresa como pude. Tirei um livro da estante. Abri-o. Li a dedicatória. E as tuas palavras brilharam nos meus olhos marejados. Com assinatura: Sara.
Passei a manhã naquela casa. A sentir a gratidão que te pertence e não tive coragem de rejeitar porque ia envergonhá-los e me soube bem tanto apreço e amizade. Algures, há uma consoada e família à nossa espera, prendas bonitas e caras, doces esmerados. E eu espero-te em casa. Mas o relógio faz pirraça e avança devagar.
Enfim, chegas. Sabes dos meus olhos em ponto de interrogação. Abraças-me com força.  Murmuro
-  Porquê? 
- Porque estás em tudo que faço e és eu, como eu sou tu - respondes convicto, e logo meio a rir -.  É tempo de saberes para quem são os livros que envias.
Remoínhas-me o cabelo. Digo a ajeitar-te o cachecol
 . Aquele garoto comoveu-me, como o descobriste?
- Hummm...ele devia ter uns seis anos. Estavam ele e a mãe na paragem do autocarro e todo se punha em bicos de pés no esforço de ler a folha dobrada do jornal do vizinho da frente. Como vês, só aproveitei a oportunidade. Depois de um pequeno trabalho de detective.
- Mas por que não enviaste apenas um livro? Podias escolher pessoas diversas...
- Porque, minha Sara, o amor da leitura é como um vício. Precisa de tempo e continuidade para enraizar. Estiveste lá, viste como estimam as nossas prendas. E eu queria que fossem desejadas. Deves ter visto também os livros dos outros dois.
- Vi tudo, amor. Estive uma manhã inteira imersa na tua filantropia anónima. Mas como é que eles nos descobriram?
- Porque ainda há coincidências. E esquecimentos. Uma tarde esqueci no escritório uns embrulhos de natal já endereçados. E a mãe do nosso herói é funcionária da empresa que faz a limpeza diária. Calhou de vê-los. Alguns destinavam-se a sua casa. Contou ao filho, ele fez o cartão que te entreguei e foi deixado na minha mesa. O resto, já tu sabes.
- Nunca me terias dito? Ficávamos incógnitos?!
E tu a olhares no fundo dos meus olhos.

- Nós dois interessamos um ao outro. A eles, o que interessa são os livros. E, sendo lido, nenhum livro é incógnito. 

domingo, 24 de dezembro de 2017

Conto de Natal

Todos os Natais são semelhantes. Ou parecem. No início da tarde de consoada, começa o pandemónio. Os telemóveis não param e as mensagens de última hora entopem o ar e precipitam-se no aparelho em piscadelas de luz, pim, pim, pim. Na bancada da cozinha, o almoço de natal  jaz de costas a descansar no tempero, patas ao alto como compete; e nós ao passar, ai se não cabe no forno, ai se demora a assar. Ai. Entretanto, calculamos volume de bacalhau e couves na panela, que, à noite, a tradição ordena sem evasivas. E damos uma olhadela aos sms recebidos a ponderar, “depois da confusão, quando  a calma se instale, respondo”. E sabemos que hão-de chegar sms retardatários, horas e horas no caminho, ninguém sabe se perdidos. Adormeceram na fila de espera e, no dia de Natal, caem resolutos no aparelho. E nós pasmos, olhando a hora, que é isto, foi enviado ontem à noite.
Mas eu e tu não vivemos apenas neste mundo tecnológico todo destreza de dedos. Não aprecias sms de natal. À moda antiga, envias cartões, presépios pequenos desenhados com amor e cuidado na ponta do lápis. Aqui uma estrela brilhante, ali um pastor a ofertar um cordeiro, além uma Virgem toda ternuras com o Menino. O que eu gosto de te ver desenhar. Tornas-te outro enquanto crias. E desvaneço na tua atenção em redoma, os meus olhos acompanhando o movimento dos dedos, ocupada a ver nascer as coisas. E penso, vaidade a minha, que ninguém te conhece como eu. Tardes completas neste labor. Depois,  inventas vagar e tempo para a estação de correios e compras envelopes e caixas de vários formatos e tamanhos. E carregas tudo para casa sem pejo, num contentamento que não entendo mas também me faz feliz. Então, lanças-te a escrever. Nos cartões. Nos livros. Jamais li o que envias a outra gente. Mas sigo-te, penduro-me nos teus gestos. Vejo-te hesitar e escrever; parar e continuar; sorrir ou esconder a ternura numa tosse de ocasião. E tenho certeza de que todas as palavras que usas são lindas e vão directas ao coração. Até ontem, juro que não entendi o teu fincapé em escolher e enviar livros. Anual e meio acéfala, repetia-me incrédula.
- Livros, amor?! Livros?! Já ninguém quer ler.
No teu rosto, o assomo de um sorriso.
- Hão-de ler estes. Alguém vai lê-los. E um dia, verás, dão fruto. Os livros lidos, princesa, dão sempre fruto.
Era tal a segurança da tua voz que não ousava contrariar-te. Pensava que enviavas dentro deles a tua magia, o teu jeitinho de ser feliz e que só por isso – só por tua causa – alguém, ao recebê-los, era compelido à leitura. Investia em ti todo o poder. Não pensava nos livros. Até ontem.
E ontem foi um dia normal. Ou eu o pensava assim à boca da manhã. Para lá da janela, espreitava-me um céu de tédio que escurecia o bairro. Na rua quase deserta as árvores sobressaltavam, despidas e suplicantes, cruzando dedos em arabesco de troncos finos. O frio, intrometido e agudo, chegara de sopetão, a fazer-nos desbravar gavetas à cata de protecções e abafos que respiravam aliviados da pressão nas dobras, ufa, já cá estou fora outra vez. E era ver pelas ruas a amálgama de cachecóis e gorros, botas e grossuras de lã que o corpo abençoava.
Chinelei sem rumo fixo. A casa de banho cheirava à pressa das manhãs de trabalho, uma mistura húmida de gel de banho e after shave que não era apenas gel de banho e after shave. No espelho, uma mulher esguedelhada mirou-me meio zonza. Sombria. Sorri-lhe a desanuviar e retribuiu. Demos um adeus apressado e entrei na cozinha. Tinhas deixado a máquina ligada e um odor de café e torradas espreguiçava-se langoroso sobre a cama suave da tua colónia. No hábito das tuas surpresas procurei um recado, um dito xistoso e terno, um raminho a florir. Percorri bancadas, mesa, electrodomésticos. Espreitei na despensa, olhei segunda vez o friso da chaminé. Nada. Desisti. Por certo, a pressa  engolira a surpresa. Foi ao sentar-me, pequeno almoço a fumegar, que o notei  pousado no colo discreto da minha cadeira. Um embrulhito, coisa mínima. E os meus dedos atarefados, mais contentes de ti que dele. Dentro, em cartão tosco e manual, um endereço. Nas costas, tinhas escrito, “Vai até lá e mostra-o”. E fui.
No táxi, indiquei o destino e recostei-me a apertar o casaco enquanto o mundo fugia na janela. Mentalmente, revia as tuas surpresas caseiras. Nenhuma saíra fora de portas. Mas o táxi continuava a rolar. Reparei que abandonávamos o centro  e rodávamos já pelos subúrbios. Havia gente dentro das lojas ou caminhando de rosto franzido, apressada por vento e frio,  sacos deformando ao peso dos víveres. Era um mundo diferente, mais sujo e escuro, todo mais pequeno e encolhido. Casinhotos sem jardim guardados por automóveis sebentos de uso, bicicletas enferrujadas no cubículo dos quintais.

De repente, o taxista parou e apontou a casa do outro lado da rua: é aqui. Semelhante a todas as outras. A mesma pequenez apagada, idêntico ar desvalido a precisar reparação. Paguei a corrida e, mal saí do carro, assustou-me o coro de cães desafiando-se de dentro dos quintais. Atravessei e, no temor de um mastim a espreitar-me do interior ou surgindo desengalgado, empurrei a cancela.  Duvidava do endereço, apostava que o taxista se enganara, supunha que te enganaras.
(cont.)