Foi
numa tarde sem história. Em volta das laranjeiras, meu pai dava prática à enxada, imerso no mar da
surdez, a lâmina conquistando ervas a golpe, a levá-las
de vencida em estocadas mortais. Parei no ritual de abrir o portão, passar,
fechá-lo. E ele alheio, atenção debruçada à terra, o cabo da enxada em vaivém,
atrás e à frente, atrás e à frente, movimentos que o saber fez naturais. Subi
devagar até à casa e fui cumprimentá-lo. Não me sentiu. Parei de encanto. Do
chão subia um cheiro a terra e ervas que me autenticou. As mãos calejadas
faziam da enxada uma extensão dos braços, a imprimir-lhe um ritmo mecânico, o cabo avançando e recuando
vivaz, descobrindo a terra húmida e despida, fertilidade escura sob o ervaçal.
Tanto
ano sozinho. Um comboio interminável de dias solitários. E agora a opaca parede
da surdez. Que pensa meu pai em tanta hora em que não lê, não escreve, não
passeia (as pernas titubeiam, prendem-se-lhe, aprendeu a temer distâncias que
não vence) . Dei-lhe umas palmadinhas nas costas. E ele surpreso, a endireitar
um contentamento disfarçado, “filha”. E resumiu-me. Fiquei de tranças,
magrinha, só cabelos e ossos gratos. Usou aquele tom que agora tempera “mal a vez”,
com um pingo de ternura. Depois encostou no cabo da enxada a perguntar pelos
netos e a olhar-me. Talvez a olhar-me. Ou a ver a garota desajeitada que errava
os canos da rega e a quem gritava todos os nomes que também o atingiam, ó filha
de um..., numa zanga com o mundo que eu pensava comigo. Agora, a seu lado, eu a querer ser terna, mas aos
gritos para que ouvisse, o pai já não pode fazer isso; e por que é que o pai
não paga a alguém para fazer as caldeiras das laranjeiras. Ele num encolher de
ombros fatalista (os alentejanos têm esta queda para a fatalidade, talvez por
tanto a temerem, levam o tempo debruçados, ganham corcova na alma), a quem? Os
velhos como eu já não podem, e os novos não sabem nem querem aprender – e a mirar-me, sem
transição -. Olha, apanha aí
umas laranjas, mas usa o escadote e o ancinho que estão altas e só há por
dentro das laranjeiras. E retomou as caldeiras, a enxada pressurosa, toda
respeitos em volta das árvores, a lâmina aos requebros, a ajeitar muros e
protecções, afastando ervas, como se elas magnas rainhas na parada, a quem tudo
se deve, Vª Exª; se faz favo; minha senhora rainha o que ordena; quer esta ervinha
para ali, concerteza; quer a terra deste lado, pois faça-se segundo a vossa vontade. Deixei
meu pai a rezar à terra, fui buscar o saco da fruta e lancei-me à função. De
poleiro no cimo do escadote, ensaiei-me a ganfar laranjas a dente de ancinho e
elas a despedir na terra mole e enterrar um tudo nada, ploc, ploc, ploc. A dada
altura, quase nos juntámos; andávamos em laranjeiras contíguas e o meu pai sem
olhar, empenhado em não desapontar sua excelência a D. laranjeira, mas
calculando-me o lugar pelo embrulhado de folhas a resmalhar, ou pelas laranjas insistindo no ritmo, ploc, ploc, olha que o Chico outro dia caiu do escadote
que isso tá tudo podre, ele já nem quis apanhar mais laranjas, foi-se logo
embora. E eu lá de cima aos gritos, tapada de folhedo seguro, sem ideia de quem
será o Chico, isto não se parte, pai, é ferro. E o meu pai que continua aquela
pessoa optimista, é ferro é... pergunta ao Chico. A tua irmã deixa isso aqui à
chuva, tá tudo ferrugento; parte-se em menos de nada, cais um trambolhão que só
visto e ficas mal de certeza. Isto dito de olhos na enxada, os braços para cá e
para lá, uma pelada de terra castanha a toda a volta da laranjeira, que as
majestades querem distância da plebe e o povoléu herbáceo que se aguente por outras
paragens. E eu contente de nós dois ali, irmanados pela terra,
mergulhados no seu cheiro a verdade simples. Eu abraçada de ramos, enleada em
seiva e flor cheirosa, a desejar ser laranjeira e ficar ali, de pé, raízes fincadas até à morte. Mas
nasci pessoa. Portanto, submeti-me a descer, pousar o ancinho no lugar, levar o
escadote de mau augúrio, arrumar a vida.
Quando
convidei para o lanche veio vindo alquebrado do esforço. Sentou devagar a
moíção dos ossos e logo se habilitou a perorar contra todos os governantes que
existem e já existiram, chamando nomes a este e àquela, tal qual sempre o
conheci. Se não fosse meu pai, acho mesmo que os excessos me ofendiam. Mas é
meu pai. O seu eriçado é-me agradável, uma sobra do homem que foi. Não ousei
contrariar as blasfémias e deixei-o partir contente de si, ainda chefe de
família. Seguiu em linha recta para o pomar, no desejo de fazer nascer mais
umas caldeiras, as majestades em espera empertigada, aguardando mordomias
manuais e tagatés de enxada. Muito espertas, elas.