terça-feira, 26 de abril de 2016

Eu e o Meu Pai

Foi numa tarde sem história. Em volta das laranjeiras, meu pai dava prática à enxada, imerso no mar da surdez, a lâmina conquistando ervas a golpe, a levá-las de vencida em estocadas mortais. Parei no ritual de abrir o portão, passar, fechá-lo. E ele alheio, atenção debruçada à terra, o cabo da enxada em vaivém, atrás e à frente, atrás e à frente, movimentos que o saber fez naturais. Subi devagar até à casa e fui cumprimentá-lo. Não me sentiu. Parei de encanto. Do chão subia um cheiro a terra e ervas que me autenticou. As mãos calejadas faziam da enxada uma extensão dos braços, a imprimir-lhe  um ritmo mecânico, o cabo avançando e recuando vivaz, descobrindo a terra húmida e despida, fertilidade escura sob o ervaçal.
Tanto ano sozinho. Um comboio interminável de dias solitários. E agora a opaca parede da surdez. Que pensa meu pai em tanta hora em que não lê, não escreve, não passeia (as pernas titubeiam, prendem-se-lhe, aprendeu a temer distâncias que não vence) . Dei-lhe umas palmadinhas nas costas. E ele surpreso, a endireitar um contentamento disfarçado, “filha”. E resumiu-me. Fiquei de tranças, magrinha, só cabelos e ossos gratos. Usou aquele tom que agora tempera “mal a vez”, com um pingo de ternura. Depois encostou no cabo da enxada a perguntar pelos netos e a olhar-me. Talvez a olhar-me. Ou a ver a garota desajeitada que errava os canos da rega e a quem gritava todos os nomes que também o atingiam, ó filha de um..., numa zanga com o mundo que eu pensava comigo.  Agora, a seu lado, eu  a querer ser terna, mas aos gritos para que ouvisse, o pai já não pode fazer isso; e por que é que o pai não paga a alguém para fazer as caldeiras das laranjeiras. Ele num encolher de ombros fatalista (os alentejanos têm esta queda para a fatalidade, talvez por tanto a temerem, levam o tempo debruçados, ganham corcova na alma), a quem? Os velhos como eu já não podem, e os novos não sabem nem querem aprender – e a mirar-me, sem transição  -.  Olha, apanha aí umas laranjas, mas usa o escadote e o ancinho que estão altas e só há por dentro das laranjeiras. E retomou as caldeiras, a enxada pressurosa, toda respeitos em volta das árvores, a lâmina aos requebros, a ajeitar muros e protecções, afastando ervas, como se elas magnas rainhas na parada, a quem tudo se deve, Vª Exª; se faz favo; minha senhora rainha o que ordena; quer esta ervinha para ali, concerteza; quer a terra deste lado, pois faça-se segundo a vossa vontade. Deixei meu pai a rezar à terra, fui buscar o saco da fruta e lancei-me à função. De poleiro no cimo do escadote, ensaiei-me a ganfar laranjas a dente de ancinho e elas a despedir na terra mole e enterrar um tudo nada, ploc, ploc, ploc. A dada altura, quase nos juntámos; andávamos em laranjeiras contíguas e o meu pai sem olhar, empenhado em não desapontar sua excelência a D. laranjeira, mas calculando-me o lugar pelo embrulhado de folhas a resmalhar, ou pelas laranjas  insistindo no ritmo, ploc, ploc,  olha que o Chico outro dia caiu do escadote que isso tá tudo podre, ele já nem quis apanhar mais laranjas, foi-se logo embora. E eu lá de cima aos gritos, tapada de folhedo seguro, sem ideia de quem será o Chico, isto não se parte, pai, é ferro. E o meu pai que continua aquela pessoa optimista, é ferro é... pergunta ao Chico. A tua irmã deixa isso aqui à chuva, tá tudo ferrugento; parte-se em menos de nada, cais um trambolhão que só visto e ficas mal de certeza. Isto dito de olhos na enxada, os braços para cá e para lá, uma pelada de terra castanha a toda a volta da laranjeira, que as majestades querem distância da plebe e o povoléu herbáceo que se aguente por outras paragens. E eu contente de nós dois ali, irmanados pela terra, mergulhados no seu cheiro a verdade simples. Eu abraçada de ramos, enleada em seiva e flor cheirosa, a desejar ser laranjeira e ficar ali, de pé, raízes fincadas até à morte. Mas nasci pessoa. Portanto, submeti-me a descer, pousar o ancinho no lugar, levar o escadote de mau augúrio, arrumar a vida.

Quando convidei para o lanche veio vindo alquebrado do esforço. Sentou devagar a moíção dos ossos e logo se habilitou a perorar contra todos os governantes que existem e já existiram, chamando nomes a este e àquela, tal qual sempre o conheci. Se não fosse meu pai, acho mesmo que os excessos me ofendiam. Mas é meu pai. O seu eriçado é-me agradável, uma sobra do homem que foi. Não ousei contrariar as blasfémias e deixei-o partir contente de si, ainda chefe de família. Seguiu em linha recta para o pomar, no desejo de fazer nascer mais umas caldeiras, as majestades em espera empertigada, aguardando mordomias manuais e tagatés de enxada. Muito espertas, elas.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

As Incógnitas Flores de Abril

Há quarenta e dois anos atrás eu tinha dezanove anos, cursava o último ano da Escola Normal do Magistério Primário em Évora e desconhecia tudo sobre regimes políticos. Cria na bondade  do nosso, pensava que a vida era toda igual mundo afora, e os chefes de Estado eram pequenos deuses bondosos (a escassez divina vinha-lhes da inacessível  eternidade); defendiam o país com unhas e dentes, amavam o povo a mais não poder e nunca por nunca o prejudicariam. Politicamente, eu era um zero à esquerda. Jamais ouvira uma palavra sobre presos políticos ou mesmo o uso do termo política. Quando meu pai desabafava nos seus costumados excessos contra Salazar e, por vezes, Américo Tomaz (a quem pouco ligava), e se alongava em gritos de “pendurava-os de cabeça para baixo e o cabelo corto à pedrada” e “punha-os a morrer à míngua”, logo minha mãe na sua voz de brisa cautelosa, “ó homem cala-te, não digas heresias, olha que ainda te levam”. E o meu pai que pouco caso lhe fazia, ria escarninho, alongava os decibéis e mantinha os castigados de cabeça para baixo dias a fio, posição que devia achar o máximo do sofrimento, todos nus, açoitados, apedrejados, cuspidos. Até à morte. Enfim. Uma data de coisas que a meus olhos o tornavam um energúmeno, porque eles, inocentes, não nos faziam senão bem. 
Dado que o carácter do meu progenitor o incluía no número de portugueses exaltados e pouco risonhos, daqueles a quem tudo irrita e faz prurido e que tratamos com luvas para ver se não levanta ondas que nos deixam submersos, nunca entendi o alcance dos receios de minha mãe versando a sua estereofonia ruminativa sobre os nossos governantes. Tomei-a por consequência da sua habitual má disposição que, no que à economia dizia respeito, atirava perdigotos esganiçados obstaculizando a intrepidez de palavras lançadas à velocidade de foguetão ascensional, em promessas de estripar, esventrar, acabar com a raça daqueles que, eventualmente, pudessem enganá-lo, e aproveitava para nos injuriar do que se lembrasse (o paroxismo da ira retirava-lhe vocabulário e tornava-o repetitivo). Aplicava a receita a qualquer compra, venda, troca, e a tudo que envolvesse uma verba por mais curta que fosse. Ou, na sua ausência, um valor. Habituados ao estardalhaço,  não distinguíamos entre razão e desrazão, tudo convertido na rasoura do destempero.

Em setenta e quatro, Salgueiro Maia e os capitães de Abril, hoje meus heróis, pouco me disseram. Não tinha televisão nem energia eléctrica em casa e no colégio onde estava tinhamos sido expulsas do telejornal por mau comportamento. Só entendi a necessidade do golpe de estado de que toda a gente falava quando, uns dias depois, chegaram os presos políticos. Foi nessa altura que comecei a entrever o muito que ninguém me contara, o silêncio imposto, o medo de falar, o asco silencioso à pide. Fui vê-los passar em caravana lenta, quase a passo. E não esqueço a alegria  serena e confiante nos semblantes, os sorrisos tão de infância crente. Creio que é ainda por eles que trato de que não se apaguem realidades tão sofridas e redentoras. Que a memória só vale se for veículo de transmissão. Eles são o chão da nossa democracia. Bem Hajam!

domingo, 24 de abril de 2016

Humanas Verdades

      Envelhecemos devagar e assim ganhamos o hábito de sermos outros. Um cabelo branco aqui e ali e, no curso dos dias e das horas, chegamos à massificação. E do grisalho passamos a neve invernosa e a rugas flácidas, sinais de vida bem assente. Neles, pulsa o passado. Tanto desgosto, tanto sonho inconfessado, alguma alegria inesperada e acontecimentos de coração cheio, tanto mau estar funesto. No corpo, muda-se-nos o ritmo vital e a figura, a saúde fragiliza, dá de si, castiga.
A alma – ou o que for, espírito, mente, um daimon qualquer -, ao invés, como que dilata. Alarga-se pelos dias, serena e deleitada como antes não sabia ser. Agradece os minutos e horas que corriam sem anelo. Vai-se calando a queixas, lamentos, cegarregas de insatisfação que perdem sentido. O alfinete dos projectos  espeta nas proximidades sem que ainda se percam desejos insondáveis e longínquos, cujos talvez nem já concretizemos. E é como se o futuro seja eternidade presente, enfeitada a novos pormenores. As mudanças radicais tiveram o seu tempo. Agora, assustam-nos corpo e mente. O quotidiano começa a bastar-nos, até por nos exigir maior atenção e energia (tudo cansa). O nosso mundo torna-se vagaroso enquanto o restante evolve em doideira.
            O meu pai é este ser assim. Que envelhece aos poucos e obstaculiza saídas,  recusa deixar o seu canto e não se move nem para visitar o filho preferido. Vislumbro-o numa densidade de sinais propedêuticos ou de velhice instalada, alguns deles em comunhão comigo. Se regresso a sua casa e à nossa terra – aquela sim, é a minha terra – entra-me uma alegria esperançosa. Olho-lhe o casario, as ervas e flores silvestres a esmo, e desejo nunca ter saído, sento-me na mágoa incompreensível de ter sido enxotada. Ignoro por que quis, tão empenhadamente, afastar-me. A verdade é que, por um ramalhete de razões, ali passei os melhores seis anos da minha vida adulta. Mas meu pai é assim. Ou era. 
             Não sei onde quero morrer, a morte chega sempre no lugar que lhe apraz; para ir embora, qualquer lugar serve. Mas, caso dure mais do que uma década, é-me agradável a ideia de voltar a viver ali. A memória vedando-me lembranças, a escurecer-me em silêncios cada vez mais fundos, e eu a abrir janelas para o mundo que ajudei a erguer, onde as minhas mãos se afadigaram e fatigaram um imenso e a minha alma se escudou de amargura e revolta, mas também de ternura e mansidão. Onde me habituei a não sonhar e me ocupei a desejar sobreviver, um dia atrás do outro, que só assim se aguenta o longo prazo.  

            Passo pelas quintinhas e daria qualquer coisa para viver numa delas: uma qualquer coisa imaginária, que todas são habitadas. Por vezes, passeio por um subúrbio com estrada de terra. No virar da curva, uma casita pequena e remodelada espreita o piso. Pintaram-lhe barras azuis e tem janelas, portas e telhado novos. Ali, espera. Em explosão de vazio. Pede que a encham e lhe criem rotinas de portas e janelas, cheiros de gente. Quase em frente, senta-se o encontro diário de duas velhotas com hora marcada. E imagino-me benévola, a espreitá-las por detrás das cortinas. Ou, quem sabe, um dia, eu me sento assim à porta do monte de meu pai, que, então, é minha. E finalmente regresso. Antes do fim definitivo. Talvez me exista ainda essa liberdade indefinida. 

quinta-feira, 21 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Minha mãe desviou um pouco a sua cadeira, puxou outra, pô-la na sua frente e sentei-me com o único pensamento que sabia sobre prisões, os homens maus eram presos, os bons não iam para a prisão. Ela pareceu adivinhar-me e disse em voz baixa mas convicta, a fixar-me os olhos, o pai não é um homem mau. Não roubou nada a ninguém. E não fez nada de mal, filha. Não duvidei. Mas a pergunta veio natural, por que razão o tinham prendido. Minha mãe silenciou por uns minutos, como se a questão fosse extensa e precisasse de espaço para cair toda junta, ou fosse o comboio das onze, de que fazia parte a carruagem-correio e que nunca mais terminava de passar, uma carruagem, e outra, e outra, e ainda mais tantas depois; e nós concentrados no seu rodado de bielas cada vez com mais pressa, oito, nove, dez, onze, doze....Pareceu-me que minha mãe estava a alinhar carruagens, a esperar que passassem todas para dizer alguma coisa sobre o comboio e o destino que levava. E quando começou a falar, fui entendendo que o meu pai, a seu modo, também era diferente dos pais dos meus amigos. Avisou-me que não voltava a ter uma conversa daquelas comigo por ser perigosa para todos e fez-me prometer que não falava dela a ninguém. Nessa manhã de sol, soube que o avô de Lídia não tinha ido à vila por acaso, mal lhe chegou notícia do sucedido a meu pai, correu a buscar-nos; soube que o meu pai lutava pela liberdade desde jovem e andava debaixo das suspeitas da Guarda e dos pides que eram a polícia política. À minha interrogação muda, a mãe contou que os pides eram pessoas normais que não se distinguiam da outra gente,  não usavam farda, tinham a sua família e o seu emprego que todos conheciam e ninguém sabia que eram pides, aquele ordenado era um extra, só eles é que sabiam que o recebiam. Podiam mesmo ser qualquer pessoa que conhecíamos e da nossa confiança; essa gente era paga pelo governo para espiolhar e, se encontrasse alguém a falar contra os governantes, apresentava a queixa e o mal falante era preso por causa da política. Quando perguntei se o pai estava preso na vila as lágrimas voltaram a correr e ela a assoar-se, não filha, eles são presos especiais, estão em prisões especiais. Como a agarrar uma luz, a minha cabeça pensou, se são prisões especiais, tratam-nos bem, só não os deixam sair. Entretanto, minha mãe foi avisando que não respondesse a perguntas. Fosse quem fosse que perguntasse, eu não sabia dele. O meu pai tinha desaparecido. Enquanto me dava o pequeno almoço, eu, intrigada de tanta novidade que não acomodava na mente, perguntei, às dentadas na torrada, o que era liberdade e política. Ela olhou-me e disse devagar, a colher dentro da caneca a mexer-me o açúcar num ritmo cadenciado, tiiii...tiii...tiiii, não sei bem, filha. O que a mãe sabe é que os homens e as mulheres como o pai só querem uma vida melhor para quem não tem nada e é escravo do trabalho toda a vida.  E querem poder dizer isto em voz alta. Eles querem melhorar a vida de toda a gente que é pobre. Olha, filha, não sei se o que eles querem é liberdade ou política, ou se juntam as duas coisas, mas sei que lutam por nós e isso é uma coisa boa e muito corajosa. Nesse momento de café com leite, o meu pai, que sempre me fora figura estranha e ausente, foi guindado a herói, qualidade compatível com estranheza e ausência. Mas entristeci por não poder gabar-me daquele pai descoberto à mesa da manhã. Prometera. E, em minha casa, as promessas eram juramento sagrado.

No dia seguinte, voltei à escola. Lídia e Luís, que me supunham doente, não me esperaram. Nas voltas do caminho, quanto mais pensava no meu pai, maior era o número de questões sem resposta. Mesmo para mim, que via a vida a preto e branco, havia muitas gradações: de pretos; de brancos; de cinzentos. Perguntava-me como é que o avô de Lídia sabia do meu pai e a minha mãe não; por que é que me tinham dito que os guardas eram bons, se tinham sido capazes de prender o meu pai que não fizera mal a ninguém;  por que é que tinham prendido o meu pai no dia da festa, o que estaria ele a fazer; quem seria o pide que andou atrás do meu pai, seria alguém da taberna, alguém da minha família, um vizinho... Mas o mundo não se apieda de mentes infantis. Mal cheguei à escola, logo alguns garotos se afastaram a desdenhar, comunista!... perguntei a estranhar a palavra, o quê?, e eles a repeti-la, como a atirar-me à figura um bocado de esterco, comunista. És filha de um comunista, tu. Lídia veio correndo e pegou-me na mão a afastar-me, não faças caso, são uns parvos. Eu atarantada com a palavra nova, o que é que é comunista, tu sabes?

quarta-feira, 20 de abril de 2016

O Dia das Mentiras na Visão Júnior e a Polémica dos TPCs

O que li, e pelo visto é sintoma geral, é que as crianças têm por força de levar os trabalhos feitos e certinhos. Ó minha gente, então?! Que é que andam a fazer aos vossos filhos? Isso não é ajuda, é colaboração (diria antes propósito) num embuste que pode agradar a todos os intervenientes, mas não serve o objectivo. De  duas uma: ou os pais se substituem aos professores e são bons nisso, ensinam o que o garoto ainda não aprendeu, dão-lhes uma aula e ele fica apto na matéria (e, por norma, farto deles até dizer chega); ou ficam todos equivocados, cada um fingindo para seu lado. O ponto é que daqui decorrem estados de espírito pouco salutares. O dos pais desata a fazer o que a revista expressa, estão fartos de horas dedicadas aos TPCs, querem sacudi-los de cima e não podem - ajudaram à mentira do aluno excepcional que faz tudo bem em casa. Então, bastas vezes, procuram e encontram um explicador ou uma ocupação de tempos livres que se encarregue da função. Os professores, que não são tontos, rapidamente compreendem que alguém “ajuda” os meninos que na escola erram sistemáticos e em casa acertam com o mesmo método. E os alunos? Os pobres dos alunos crescem neste imbróglio de serem bons ao menos nos TPCs (o resto os pais não conseguem controlar) e não os errarem. E não chegam a ganhar coragem para os fazer sem supervisão. Precisam do escrutínio. Como diz a revista, não gostam de errar. Como se aprender se faça sem erros!
E posto isto, que fazem os senhores eruditos? Pretendem “cortar o mal pela raiz”. Fora com os TPCs! Abaixo a preocupação que geram! Faça-se tudo na escola que lá é que se aprende e nós pais somos educadores não temos que dar a informação.
Mas ó santas gentes, então a colaboração com a escola é só ensinar regras de boa educação e levá-los lá? Será por isso que às vezes se esquecem de ir buscar os vossos filhos e ficam os professores que horas à espera de pais que se distraem. Oiço até falar num legislado aumento de horas de escola com ocupação de tempos livres, por via de pais e avós que trabalham, entram cedo e saem tarde. Porém, e a despeito do que todos os especialistas possam dizer, adianto-vos queridos pais: nada existe no mundo que seja melhor para a criança do que a brincadeira entre pares. A brincadeira livre, não vigiada (sim, sim, é melhor do que brincarem de vez em quando com os pais). Ah, dizem-me, mas agora há droga, há roubo de crianças, há perigos que antes não existiam, não se podem afastar de nós. É mesmo?! E noutro tempo não havia perigos destes. Pois não. Havia outros. As crianças caiam nos poços e lagos feitos de chuva e afogavam-se, morriam por açudes e ribeiras e até em casa, envenenadas com veneno dos ratos ou outro que engoliam curiosas, queimavam-se porque caíam em lumes solitários, eram atropeladas por automóveis em ciclone, sovadas por familiares até à exaustão (ainda acontece, vejam bem). Vejam só a ironia, mudaram as circunstâncias mas a que diz respeito às pessoas mantém-se.
Não queiram mal aos TPCs. Refilem se são excessivos, mas deixem-lhes espaço. Não o vosso espaço. O espaço que têm de ter na vida dos vossos filhos. Ficam à sua responsabilidade. O vosso papel? A princípio, incentivar a fazê-los com brio e honestidade. Se solicitados, dar uma ajuda. Pontual. E deixar seguir. Não é o ás da aula? Melhor, não sente o peso de “ter de ser bom”, o mundo não é composto de génios, mas de pessoas normais, com intelecto normal. Quando for necessário, podem crer, ele não sossobra. E vai ter média para entrar num curso. Será sempre o vosso filho e saber-lhe o carácter íntegro e firme é a melhor prenda. 

terça-feira, 19 de abril de 2016

O Dia das Mentiras na Visão Júnior e a Polémica dos TPCs

Vamos por partes, ou não nos entendemos. Assumo, o excesso de TPCs não resulta. Mas fazem falta. Contrario, logo no arranque, a teoria de que são os mais novos quem faz mais TPCs. Os mais novos fazem-nos mais lentamente, isso sim. Então, senhores entendidos, e as explicações, o que são e para que servem? E quantas horas gastam nelas os alunos, pelo menos depois do décimo ano (e tantos, tantos, bem antes). Ora, digo eu, os mais novos têm mais necessidade deles. Porque, meus amigos, o Estudo Autónomo em casa  é um TPC sem ordem de sê-lo, por auto recriação. E escrever ou ler aprende-se escrevendo e lendo, não há outra maneira (será por isso que se fazem cópias, ditados, palavras difíceis e se estuda a lição em casa). Certo, a criança pode, por si, de sua responsabilidade, fazê-lo. Mas, meus ilustres leitores inexistentes, não somos todos iguais. E aqueles a quem falta a vontade de ser responsável? Aqueles a quem é a obrigação que ensina a escrever e a ler? Acham porventura que mais tarde não vão agradecer o esforço? Vão. Vá, recordem lá a alegoria. A da caverna. O caminho para a luz não é um jogo. Não se faz a saltitar. Faz-se contrariando inércias acomodatícias. Mas vale a pena.
Bom. De caminho, desmistifiquemos a teoria constante na tese da investigadora do Porto (não lhe recordo o nome) de que não se aprende com os TPC e em forma lúdica sai tudo muito melhor. Mas quem é que disse a esta gente, quem foi o cérebro iluminado, quem lhes incrustou na cabecinha que aprender é fácil, que viver é uma alegre jogatana, que tudo se faz via jogos didácticos?! Mas que aberração. A cultura sai-nos do pêlo e a leitura e a escrita não são excepções. E, dê lá por onde der, em alguns momentos custa, é difícil, a mente parece recusar-se a compreender, o corpo quer retornar ao agradável que não sublima. Mais: toda a aquisição leva tempo a ser nossa, o mundo resiste-nos; por vezes, precisa de tentativa e erro até ser memorizada e o entendimento processar as novidades (ah, pois é,  os processos necessitam memorização e traquejo prático). Os equilíbrios cognitivos, malvada sorte, são morosos. Portanto, não é fácil aprender a copiar e papaguear, quanto mais a complexidade que vem depois.
Verdade, existem métodos que permitem ensinar e aprender de forma lúdica. Mas que raio! A vida não é um jogo. E se a atitude de jogador empenhado às vezes nos assenta, não assenta sempre. Nenhum método é bom em si mesmo. São os professores que, de adaptação em adaptação, constroem o que serve a cada turma e, por vezes, a cada aluno. Que ensinar e aprender podem não existir conjugados, muito se ensina sem que haja aprendizagem e o inverso. Mas é processo que alicia e está sempre  a começar. Há um inequívoco começo em cada vez. Dir-me-ão, estás a desviar-te. Pois estou, mas os métodos pedagógicos existem para serem conhecidos e aplicados se for o caso. Fazem uso de técnicas que nos servirão em alguns alunos – ou em todos, como é o caso do agrupamento de escolas referido – mas, na sua pureza, são, quase sempre, demasiado exigentes para poderem ser postos em prática, ipsis verbis, pelo universo dos professores. Quem distribui o jogo (investigadora, olhe para isto) tem o direito de o fazer como supõe que resulte melhor e sente ser mais fácil e eficaz para si e para os alunos, considerando o meio em que ocorre.  Conhecer métodos e escolas é enriquecimento, achega, utilidade que a formação de professores devia privilegiar. Ficar preso a um único pode constranger.
Postos os princípios gerais, voltemos ao específico. Retomemos a ideia de que os TPCS são em demasia nos mais novos. Criam hábitos de trabalho, sim. Habituam a cumprir mesmo o que não se prefere. E treinam a mão pouco habituada ao desenho de letras e números e de novos idiomas. Defendo que, mesmo que os professores os não escrutinem com sete olhos, se façam. Que se façam sempre e se crie o hábito de trabalho em casa – a vida quer muita prática e rotina bem feitas. A escola necessita desses hábitos, criá-los ajuda a  formar pessoas resistentes e que não atrofiam ao menor sintoma de dificuldade, que sabem por experiência que há coisas que não sabemos fazer e outras que nem entendemos, mas que mesmo assim vamos à luta. Os alunos que se batem aos TPCs aprendem que existem lados da vida onde conseguimos chegar e que, se alguns chamam pela criatividade, outros pedem tempo e paciência para serem entendidos. Não acredito que seja por dar uns erritos na cópia ou mesmo nas três palavras difíceis que o aluno vai passar a escrever pior. Há muitas mais que aprende e escreve bem. E em todas treina a mão e o carácter.
Julgo que os TPCs sofrem um erro de avaliação. Não são o que os pais pensam. E até os filhos, habituados no mesmo princípio. Os famigerados TPCs não têm como finalidade serem todos feitos e bem feitos. São para o aluno treinar aprendizagens, TÃO SOZINHO QUANTO POSSÍVEL. Fazer o que souber e deixar o que não sabe; eventualmente, perguntar aos amigos alguma coisa. São para o professor saber o que aprendeu a criança sobre um assunto, ou apenas para treino. Mas isto afinal é conversa que não posto hoje. Amanhã se verá.


segunda-feira, 18 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

É provável que tenha escapado do pisoteio por acaso e o pavor me tenha posto a salvo na reentrância esquinada do muro.  As crianças salvam-se por não sofrerem o perigo como os adultos. Ou nem o aperceberem. Ou porque um anjo lhes guarda a inocência. O que me preocupou deveras foi faltar-me um sapato, ter perdido a malinha com o lenço de assoar e estar sozinha, invisível no meio de tanta gente. Já lacrimejava quando senti uma mão a tocar a minha. Virei-me e, no meio da hecatombe, não sei porquê nem como, Lídia sorria-me a um passo; nos olhos, um fundo de ternura acamava a troça de me ver chorar. Fez-me sinal e avançámos no sentido inverso ao da multidão, cosidas ao muro, um pé à frente do outro, com recuos que quase nos faziam perder uma da outra e agora me divertiam. A festa do conselho  estreou-me na visão daquele ser animal e primitivo que vida fora me assustou e, de vez em quando, invade a paisagem humana em nu integral, semi erecto, todo pêlos e mandíbula, a ferocidade como arma. Enlouquecidas, as pessoas pareciam outras. Não eram já as do caminho paciente, os namoros a começar, os transeuntes enfeitados que esperavam os discursos e cobiçavam o repasto, os ouvintes inquietos por devorar iguarias. Eram animais hiantes em busca do sustento que lhes garantia a vida. Uma fúria nascida do colectivo e da circunstância dizimava as mesas. Pelas frestas, e enquanto tentávamos afastar-nos, reparei que ninguém mastigava ou levava à boca qualquer alimento. As pessoas roubavam as iguarias, varriam-nas em presteza incomum. Tudo servia para açambarcar, bolsos, carteiras, coletes, sacos de plástico, ou apenas as mãos. Por entre um montão de pernas e saias vislumbrei chapéus de palha que sugavam indiscriminados alimentos, sandes, pires de presunto, bolos, rebuçados. Sombrinhas que abertas tinham aparado o sol do caminho, fechadas faziam de saco e  opavam de frangos assados, bolos e tartes atirados a trouxe-mouxe, a desmacharem em flocos e que sairiam  em papa daquele aperto de varetas e gente. Cada um que se chegasse, subtraía, célere, os alimentos ao seu alcance. Dos tropas que antes seguravam a multidão não havia sinal. A contragosto ou de vontade, misturavam na massa humana. No nosso passeio de ir em frente e volta atrás desviámo-nos de brigas masculinas pela posse de uma garrafa de licor que se espatifava antes que os contendores dessem por isso, de mulheres que puxavam a mãos ambas por bolos que tombavam do prato  e eram calcados pela multidão ou se desmanchavam sobre alguém que ficava a recolher bocados do pescoço, e de cima dos ombros, lambendo-se, pouco importado com a sujidade.
Quando chegámos ao fim do muro as pessoas já desertavam das mesas. Teriam passado uns quinze minutos. Aproximámo-nos de um canto e constatámos que eram mesas corridas, dispostas em U. Um U enorme. Dava a volta ao largo. Olhámos as duas na esperança de um rebuçado, um bolo, uma sandes. Não havia nada sobre aquele U tão grande. Nada. Um senhor parou perto de nós, meteu mão ao bolso, tirou dois rebuçados doutor Bayard  e disse, tomem, estes são dos meus, trouxe-os de casa.  Isto foi uma vergonha, acrescentou tristonho. E partiu em acenos de desaprovação. Ainda não refeitas da devassa, passa um homem a correr com uma ossada de boi às costas, o sangue do animal a manchar-lhe a camisa, boca e dentes a escorrer. Enojada, cheguei-me a Lídia. E ela contrafeita, aquele boi não prestava, a carne estava toda crua, não viste os ossos. Mas eu que  só tinha visto o homem a pingar sangue, sorriso alvar e dentes vermelhos como um drácula, arrepiei-me, vamos embora senão ele volta.
Desconhecia que horas eram.  Ignorava o caminho de casa. Estava esfomeada. Não sabia de minha mãe. Tinha esquecido as tias. Mas, como sempre, confiava em Lídia. Na sua descontracção habitual e chupando o rebuçado, contou-me que o avô nos esperava. E eu achei natural e perguntei se minha mãe estava com ele. Mas à negativa que me deu, refilei, não saio daqui, a minha mãe vem-me buscar de certeza. E de novo comecei a refazer o caminho colada ao muro, Lídia atrás a resmungar. Lá bem na ponta, vislumbrei minha mãe de pé, quieta. Lancei-me a correr coxeando por entre as pessoas e atirei-me nos seus braços a soluçar quanto podia. Ela teve-me assim por um bocadinho, assoou-me, limpou-me os olhos e pôs-me no chão, vamos para casa, filha; não devíamos ter vindo. Lembrei-me de súbito, e as tias. E ela séria, deixa-as, não se perdem, vamos com o avô da Lídia. Demos as mãos e fomos as três. Abríamos caminho por entre o desalento da maioria que se aprestava, como nós, a regressar a penates de estômago vazio e a gravidez acintosa de sacos plásticos que intrometiam, chapéus de palha informes e semi escondidos por casacos, guarda chuvas em elevação de braços, sôfregos da mercadoria. Lá à frente, o brasido ainda avermelhava. Mas os cozinheiros, boné desalentado  na mão, passeavam o rubor de horas rentes a lume esperto, um esgar às mesas vazias,  cabelo ainda colado à testa e a enxugar suores no amachucado do barrete que pretendiam  lhes varresse o aborrecimento do trabalho interrompido, nem deixaram a gente acabar de assar os animais, pareciam cães esfaimados, eu nunca tinha visto coisa assim. E na tribuna, ninguém. Que no ardor da operação, a guarda tinha transportado as autoridades para o salão, ainda assim o povo não começasse com ideias. Da viagem na carroça, nada sei. Encostada a minha mãe, adormeci mal os balanços do carro começaram e deve ter-me carregado no colo, despido e enfiado na cama.

No dia seguinte, abri os olhos e fiz como sempre, lancei uma olhada à cama de meus pais no jogo habitual de verificar se acordara primeiro que eles. Mal os olhos lhe bateram, a muda de roupa gritou-me de cima da cama. Estava ainda no mesmo sítio,  num despropósito alinhado.  Lembrei-me de repente que meu pai não aparecera na festa. Dei um pulo da cama e saltei para a cozinha. Minha mãe estava sentada à mesa. Muito quieta, mãos sobre o rosto. Chorava. As lágrimas borbulharam-me, perguntei em voz insegura, o pai. E minha mãe em tristeza balbuciada, prenderam o pai, filha. Hoje faltas à escola. Temos de ter uma conversa, anda cá. 

O Dia das Mentiras na Visão Junior e a Polémicas dos TPCs


Agora que a educação está assim a modos que de rastos,  o mundo, que sempre precisa de um bode expiatório, virou-se contra os TPCs - os professores vistos de chofre  estão muitos gastos e é preciso mudar de táctica e atingi-los por via indirecta. Portanto, nada como ressaltar o bolor dos métodos utilizados. A Visão Júnior lançou a bomba no dia das mentiras, “O ministro tinha proíbido os TPCs”. Parecia uma mentirinha engraçada. Mas foi rastilho e, como era previsível, pegou. Incendiou as redes sociais e esta semana a Visão traz uma peça jornalística sobre o assunto (não acredito em premeditação, foi puro fluxo de acaso). Ali, tudo se confirma. Ele são especialistas como Eduardo Sá a recusá-los; um pediatra (Mário Cordeiro); um director de agrupamento de escolas (Adelino Calado) a aboli-los, decisão que consta, possivelmente, em acta de reunião pedagógica; estudos da OCDE e das nossas universidades (uma  investigadora da universidade do Porto diz mesmo que as crianças aprendem melhor e mais a jogar do que a fazer TPCs); pais que proclamam falta de tempo e muito cansaço dos filhos; e crianças que até são quem menos se queixa. E até parece que têm razão. Mas um monte de argumentos e de individualidades a esgrimi-los, se bem que queira dizer alguma coisa, não significa estar mais próximo da verdade. Nunca significou. Mesmo Hitler teve altas individualidades e intelectos muito fortes do seu lado, no seu tempo (espero bem que hoje, do seu lado, haja só uns quantos malucos esquizofrénicos do poder, mas não tenho certezas).
            Pois eu venho defender esses tais  inóspitos TPCs. Em primeiro lugar porque lhes fui sujeita desde cedo e a minha formação seria diferente se não fossem as longas horas que estive ocupada a fazê-los. Segundo, porque pertenço à tal classe desfavorecida, os meus pais sabiam ler e escrever, não havia livros em minha casa, jornais nem vê-los, era uma desgraceira pegada; a crer na revista e nos estudos, por via dos TPCs, a desigualdade social acentuou-se na minha pessoa (penso que revista e estudiosos do assunto sabem bastante mais que eu em alguns aspectos, mas noutros nem por isso). Terceiro, porque sou mãe que acompanhou medianamente os filhos e reparei que traziam TPCs para casa, portanto, falo com experiência – é pouca, mas que fazer, não posso ser mãe do mundo inteiro. Quarto, porque ensinei durante largos anos e passei por todos os níveis de ensino com excepção do universitário onde me limitei ao papel de aluna. Quinto - e julgo que último, mas nunca se sabe -, experimentei durante alguns anos o método da Escola Moderna, sem TPCs e com tempo de estudo autónomo  (não é apenas feito em casa como se sugere na peça) em horário escolar para, em autoaprendizagem, cimentar conhecimentos, colmatar dúvidas e dificuldades existentes; mas também para que o professor e alunos mais adiantados, possam, individualmente,  sentar-se com os alunos com mais dificuldades a entender onde moram os nós, ajudar a desfazê-los e a criança poder prosseguir.

            Posto isto, reafirmo: sou a favor dos TPCs. E amanhã volto cá para escrever porquê que agora não me apetece e tenho mais que fazer. Além disso ninguém me lê, portanto estou à vontade.

domingo, 17 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Quando chegámos, a vila formigava de braços, pernas, cabeças, barulho. À medida que nos aproximávamos do largo onde as nossas flores eram telha, sentia nos passos de minha mãe uma reticência involuntária que as tias acompanhavam de má catadura, por este andar não nos chegamos perto de mesa nenhuma, passam-nos todos à frente. Mas ela quedava-se silenciosa, pescoço em periscópio, arredondando vistas. E eu cá em baixo, aos puxões impacientes, afogada em braços e pernas, a boca junto a traseiros que avultavam como pães gigantes sob as ramagens, não vejo nada. As tias fartas de mim, chata como tudo esta gaiata, que é que queres ver, isto tá cheio de gente, não há que ver.
Depois de muitos tem-te não caias, aportámos a uma clareira de onde via um pedaço da enorme mesa e um ângulo da praça com céu de flores. Fixei o repasto e entusiasmei na fartura de ignotas iguarias: travessas com o que hoje chamo de rissóis, empadas e croquetes. Como minha mãe distraía de novo e não me fazia caso, perguntei às tias o que continham, mas elas não sabiam, riram-se dizendo, deve ser bom, daqui a bocado provas para veres a que sabe. Mas eu já embebia num bolo enorme coberto de neve açucarada e repleto de cerejas no topo. No hábito dos bolos caseiros entornados em forma de buraco e cozidos no fogão a petróleo, abismei para a maravilha e prometi a mim mesma que ia prová-lo sem demora. 
Ficámos ali, em espera, enquanto uma voz desagradável perorava ao microfone. Perguntei às tias a razão de não começarmos a comer e elas, schiu, não se pode, não vês as cordas e os tropas a guardar as mesas? Tá caladinha que tá a falar o presidente do conselho. Perguntei a minha mãe quem era o presidente do conselho e ela num véu triste, é aquele senhor que manda em Portugal e tem um retrato pendurado lá na tua escola, aquele do nariz comprido que está de lado na fotografia. Endireitei-me logo, era um homem importante. Depois de muito instadas, as tias ergueram-me uns momentos pelas axilas para saber como era um presidente em carne e osso, enquanto diziam a minha mãe, vai lá ver se o achas que a gente não sai daqui. Depois desceram-me e fiquei de mão dada às duas velhas, quase junto às cordas, a marcar de olho um buraco por onde me ia escapulir mal a tropa desse sinal de ataque às mesas. Mas depressa me cansei de esperar e ansiei o eterno pfesente da mão de minha mãe. Dela, nem sinal. Entretanto, as tias entretinham-se a falar deste e daquele que estava aqui ou ali e eu num suado aperto de costas e rabos inquietos, de novo submersa no encapelado de gente que acatitava a cada minuto, uma das tias a olhar para baixo enquanto reforçava a travessa no arrepanhado do carrapito, agarra-te à saia e não me deslargues ouviste? E depois prenunciou para a irmã, já está a falar outra vez o presidente da Câmara, a seguir vamos comer. E eu no mundo cá de baixo, imersa no fascínio de tanto sapato empoeirado de caminho, tanta gente como nós, quilómetros de desejo palmilhados à míngua. Em volta das mesas ululava uma mole de fome sem tamanho, o desbarato da pobreza a pique. A garantia do presidente da câmara de que o alimento chegaria para todos e pedindo civismo era, já nessa altura, mera futilidade. A multidão comprimia-se e agastava, atirava-se contra as cordas que a tropa sustinha a custo a poder de braços e piparote. No empurra para cá e empurra para lá, crescia um  vai-e-vem de cabeças. A onda de gente faminta e impaciente avolumava sem apelo, pronta a abater-se sobre as mesas no ímpeto fatal. O motor humano  ia-se fortalecendo a engolir normas e obstáculos e perseguia cegamente a cenoura ali tão perto. Sentidos em labareda alta cheiravam, viam e quase sentiam desfazer na língua carnes e doces, pão e vinho, as grandes bananas e rodelas de ananás que nunca tinham provado, as cerejas a que não chegava a bolsa e agora desbordavam na largura de convidativas cestas de verga, os rebuçados com recheio, os bolos pequenos em forminhas de papel mais bonitas que as da pastelaria, os bombons que só os olhos comiam nas montras de loja. Tentações. O Éden de mesa posta. Gula luxuriosa a um metro ou metro e meio de distância. 
Lá mais ao fundo, além do céu florido, os panelões de sopa e um cheiro bom de carne grelhada passeava-se em redor dos bois que assavam sobre brasido esperto,  atravessados por espetos descomunais que cozinheiros afogueados manejavam com esforço de roldanas e cordas, os longos aventais salpicados de sangue e gordura, quais gravuras de Rorschach a branquejar no calor da noite. Da compressão a que me vi sujeita, retive os pés que se fincavam para não perder lugar e a minha involuntária desistência, eu a ficar para trás da parede humana que avançava sem interstícios, o meu corpo a desmembrar-se  em recuo instintivo, feito braço de boneca que desencaixa; bati de costas na esquina de um muro salvador olhando fascinada o cataclismo de tornado que cerceara amarras e se lançava para a frente em apoteose. Senti-me ultrapassada por mil pernas e pés, os gritos das tias perdidos, a mesa que me fugiu. E minha mãe desaparecida.


sábado, 16 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Ainda entrava a tarde soalhenta e já os mais festeiros punham pés ao caminho. As matronas velejavam pela berma do alcatrão à bolina das conversas, naus bojudas ou magros batéis que remavam de alpercata, a adiar ajustes dolorosos com sapatos vexados, a graxa um hálito que exalava do saco de mão. A seu lado, alheia a conversas e rumores, olhos presos a tudo, a compostura infantil pavoneando-se na roupa menos usada, cabelo a preceito e pernas ainda saltitantes. Atrás ou na frente, borboleteava a agilidade singular das filhas casadoiras, sedução que passeia em juvenis ademanes e se espraia por saias rodadas e alegria de plissados nos vestidinhos com debrum em fita de veludo cosida a ponto atrás. E o orgulho contemplativo e galinácio das matronas eclipsava serões e canseira noite atrás de noite, um amontoado de horas devorado por agulha e dedal e subtraído às necessidades do corpo moído, e a conta da mercearia a engordar mau grado a economia milimétrica em cada franzido e prega, cada botão ou metro de fita. E os homens, os seus homens esguios e enxutos de carnes, seguiam depois de bicicleta, por vezes já bem bebidos, pedalando a espalhar vapores e clarear o juízo. Quanto aos rapazes, erguidos na sua altura, brilhantina a escorrer, alardeavam um sem fim de energia zanzando estrada acima e abaixo, as bicicletas um trampolim de circo, uma corda de malabarista, um rufar de tambor. Giravam em volta dos bandos que se faziam à estrada, escolhido um para o espectáculo de travagens inesperadas, campainhas sonantes, despiques de velocidade. Os rapazes eram cães que cheiravam a caça e delimitavam espaços. E por quilómetros se arrastava este jogo sedutor, todo aroma e cio, descobrindo risinhos e claridades do corpo, suores e rubores súbitos, glândulas no labor de propícias proximidades que não  aconteciam, um ignoto e caudaloso gosto de beijos que se deseja e coalha no ar. E as pernas sempre a andar. As pernas maquinais, no seu caminho de ir para qualquer lugar, a avançar no pó da estrada, quando o que apetece é parar naquela travagem centrípta que, mesmo à beirinha do corpo, estremeceu a saia. E dentro da roda de poeira, leva-me contigo, monto-me no suporte, agarro-te pela cintura e vamos os dois para onde só nós que a vida é esta viagem de bicicleta até ao infinito. Mas as matronas no seu papel, risonhas, a enxotar  vizinhanças, xô, que é lá isso, o alcatrão é ali, põe-te a andar estafermo, tás  a encher a gente de pó.

Da minha rua vi passar toda a espécie de transeuntes. Vi sair os rapazes atrás das garotas, vi-os voltejar como zangãos, ir atrás e ir à frente, quase se perderem e voltarem súbitos para mais uns círculos. E minha mãe no seu descanso, a deixar sobre a cama a roupa de meu pai, a alinhá-la longamente, sem esquecer os acessórios, chapéu, lenço de bolso, suspensórios. Em baixo, no chão, os sapatos sem um grão de pó. Entretanto, pus-me de guarda à estrada onde as hordas se multiplicavam, a aldeia ameaçava desertar por inteiro. Mas da bicicleta de meu pai nem rasto. Vieram as tias velhas, prontinhas e de chapéu de palha por via da soalheira. Receosa, comecei a choramingar que também queria ir. As tias descansaram-me: garantiram-me a festa, nem que fossem elas a levar-me. Depois, deitaram olhos ao relógio e murmuraram que o presidente do conselho vinha à inauguração e ia haver muita gente, tínhamos que ir embora. Foi nessa altura  que minha mãe se tornou resoluta e foi vestir-se sob um coro de assentimentos, ele logo vem, é que ficou para aí nalguma conversa, tu bem sabes como ele é, deixa-lhe a roupa que sabe vestir-se sozinho. Do caminho, ficou-me o horror de uma dor de pés, a memória de uma sede exaustiva a que as tias, no seu desplante de gente velha, deram fim - chegaram-se a um poço desconhecido emborcaram o caldeiro e deram-me a beber  -, e a preocupação de minha mãe com as bolhas que me surgiam nos calcanhares. Grande parte do caminho, carregou-me à ilharga, as tias a chasquinar, não tens vergonha tão crescida e ainda ao colo. E para minha mãe, põe a gaiata no chão, ela que se descalce; ó mulher, não te apoquentes, vais ver, daqui a pouco ele passa aqui a tocar a campainha e leva-a no quadro da bicicleta que hoje a guarda não multa ninguém. Era nessa altura que me lembrava do meu pai. Que não passou por nós. 

quinta-feira, 14 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Parámos numa praça quase vazia onde  alguns homens empoleirados em escadotes  se afadigavam a colocar correntezas de lâmpadas a toda a volta. Desconcertados, pensávamos nos candeeiros de petróleo de nossas casas enquanto ali, na rua, só para uma festa, ia haver luz eléctrica. Depois chegámo-nos às lonas levantadas, o soldado deitou-nos um escadote pequeno e o alcatrão do adro aparou-nos. E logo a professora se fez próxima, figura airosa no seu meneio de salto alto e chaves a tilintar. Um soldado para o outro tapando a boca com a mão, mas eu a ouvir na mesma, a flausina tá mesmo no ponto. E o outro a fechar o escadote, descansa que não a rói dente de soldado – e a dar-lhe uma palmada nas costas -. Contenta-te com o que deixaste na terra, homem. Depois, cada um de seu lado e com desembaraço habituado, baixaram os taipais do carro. Entretanto, um subiu ao atrelado e empurrou todas as flores para o chão. Pareceu-me que elas se ofenderam um pouco, dado que largaram a fingir desmaios e a dar gritinhos como se estivessem magoadas quando todos sabíamos que era teatro; não havia palidez que as apoquentasse, apenas caprichavam em fazer fitas de flor. Ao contrário, no meio do largo, eram um espectáculo bonito, garriam e cativavam. E nós ao redor, a “tomar conta”, forçando a nossa importância, estas fui eu que fiz, estas são as da minha avó, estas foi a vizinha Quitéria que atou. Ainda despicávamos quando uns homens de fato macaco nos afastaram, agarraram as nossas cordas de flores, e em três tempos, atravessaram-nas no ar, presas de um lado ao outro nas fiadas de luzes. Além de nos desviarmos e a bom recato observarmos o trabalho dos homens e o monte de flores a minguar até desaparecer, nada fizemos. Mas no ar erguia-se um tecto de flores feito por nós, horas e horas de aplicação em linhas cruzadas e de encanto singular. Ficámos orgulhosos do nosso trabalho e desejávamos o regresso para contar na aldeia o que acontecera ao jardim de papel que tanta gente plantara.
Regressámos na hora de almoço,  refastelados num jeep dos militares, contentes e avaros do momento, esquecidos da professora que deixáramos imersa nos preparativos da festa, desligada de ser mestra, só uma rapariga bonita e despachada no meio de outras. Mal pusemos pé em terra, desatámos em corrida até casa, eu e Luís sem comentar as novas, unidos por anseio comum, abrir às mães a caixinha das surpresas  e enfeitá-la quanto podíamos na pretensão de convencê-las ao dia seguinte, o primeiro dia de feriado no concelho. Mercê da nossa influência, durante a tarde, a aldeia não falou de outra coisa. E todos se dispuseram a ir à inauguração do concelho. A aldeia colaborara directamente, éramos importantes, tínhamos trabalhado em prol. Participar era dever, sentíamos a festa como nossa. Contudo, nenhuma criança sabia ainda o que era “passar a ser concelho”. E também ignorávamos que o motivo dos adultos era, outrossim, a vontade de tirar a barriga de misérias. Corria pela aldeia que havia comida a rodos; as herdades tinham enviado bois inteiros; as instituições e o lavradores tinham doado tractores de fruta, de pão, azeite, azeitonas e mil alimentos saborosos; as senhoras finas e devotas da igreja iam fazer bolos e um nunca acabar de doces; constava que havia tanta comida que tinham pedido as loiças e panelas da tropa e havia mais de uma dúzia de cozinheiras a trabalhar a todo o vapor; as mesas iam ficar postas a noite inteira. E tal expectativa fez céleres os mais relutantes e só não moveu os mortos. Até minha mãe, tão avessa a ajuntamentos, se dispôs a enfileirar na romagem.

Por este facto, a aldeia entrou em barrela desbragada por todo o buraco.  Retirados ao seu habitual, cães e gatos eram atingidos por água suja de bacias e alguidares, os animais aflitos do desuso, mas que é isto, que toda a gente se lava e não pára no lugar. E o que não se fez de tarde – durante o dia só avós e doentes quedavam em casa – deixou-se para a manhã seguinte. A festa era ao fim do dia e toda a gente combinou palmilhar com alguém os quilómetros que separavam a aldeia da vila. Carreira e comboio eram para doentes, inválidos ou endinheirados.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

De tanto vê-los abaixo e acima, aprendemos a gostar deles. O soldado raso tornou-se um elemento do nosso mundo, pertença. Mal a cadência das botas estremecia o ar, despovoávamos casas e quintais e acorríamos à berma da estrada de terra a observá-los. Se havia bom tempo, alguns garotos armavam-se de pau às costas e colavam na fila traseira, o instrutor a fingi-los invisíveis. Até que se sentiam ultrapassados pelo ritmo imposto à coluna, começavam a ficar para trás e regressavam vencidos. Para nós, a soldadesca era árvore com dois ramos: de um lado o obediente soldado raso; do outro, os seus mandantes. Ora quem mandava, estávamos fartos de o sentir, era pródigo a distribuir sofrimento.
Mas aqueles três ou quatro soldados mostraram-nos outro lado da vida militar. Eram simpáticos, prestáveis, tinham farda limpa e bota reluzente. Pareciam-nos um bocado convencidos, mas quando a professora se apresentou, obedeceram-lhe como se fosse uma rainha. Em conversa amena e sem remorso, delapidaram as nossas convicções sobre o seu mundo. Contaram-nos que os soldados que víamos passar cumpriam o seu tempo de recruta, escola primária de qualquer serviço militar.  Acrescentaram que muitos recrutas não iam ser soldados rasos e por isso é que lhes doía mais correr e sofrer as dificuldades da tropa: não tinham o corpo habituado, eram pessoas finas, estudadas. Segundo eles, a recruta era o pior tempo de qualquer soldado.
Enquanto conversavam, despejaram dentro do carro os nossos estendais de flores e mandaram-nos sentar nos bancos corridos dispostos nas laterais do carro, usados na deslocação de tropas. Depois, altearam e prenderam as lonas da parte traseira, pediram à professora que os seguisse e arrancaram. E não houve viagem tão maravilhosa como aquela, o monte de flores contente, elas aos saltinhos umas sobre as outras a meio do veículo, as cores em despique aceso e às cotoveladas, agora fico eu ao de cima; não, tu já lá estiveste na curva anterior, agora sou eu. E nós acolhidos a uma ponta do banco, siameses uns dos outros, um ventinho agradável a levar para trás os cabelos e a colar-nos a roupa ao corpo, os casacos a desabotoar em fuga arrebatada, como se não nos quisessem e preferissem outra pessoa. E nós numa risota pegada de tanta coisa nos ser primeira.
Durante a viagem, cruzámos o desconsolo de campos segados, um fio de restolho a marcar lugar, e montes de feno tão altos que nos lembravam amplas barracas; passámos um lameiro em arremedo de açude, água pouca e escura, uma manada de vacas que espezinhava e bebia em calma patinhice;  passámos vinhas e gente, chapéus de palha debruçados, catando videiras que eram matronas verdes e repolhudas, um tractor parado a meio, impando sob uma pirâmide de cachos. Descontraídos, fizemos adeus a ciclistas que não alçaram a mão, fitos na roda pedaleira, enfronhados em brioso pedalar; saudámos motorizadas cordiais que perdiam terreno connosco, a resfolegar bronquites entumescidas; acenámos à velocidade cautelosa dos automóveis; fizemos efusivos cumprimentos às carroças que evoluíam mansas, a tilintar guizos que o motor dos tropas abafava e demos de caras com  a doçura subordinada dos burros a interrogar-nos estrada fora, pateado maquinal de esquerda-direita, esquerda-direita, esquerda-direita. Mas lançámo-nos em desalmada gritaria e acenos a mãos ambas,  mal reconhecemos a carroça dos leiteiros. À entrada da vila, os avós de Lídia, apeados junto a uma correnteza de casas, faziam uso da sua autoridade profissional: o “meu vizinho” media o leite enquanto a mulher aparava a vasilha que entregava às senhoras ou às empregadas e recebia a paga. Havia naqueles gestos simples a solenidade de uma tribuna, as senhoras e as empregadas, amanhecidas e em jejum, esperavam a distância respeitosa, para não comprometerem a cerimónia. O meu vizinho parecia um mago, tapava e destapava as vasilhas de leite a ajeitar-lhes o pano alvo que evitava as impurezas, em delicadezas e desvelos de quem dá o braço a sua dama. E na carroça só a cauda dos burros dava sinal de si a enxotar o incómodo das moscas que, quem sabe, traziam a passeio.
Foi a primeira vez que vimos alguém de roupão, peça estranha, de que  não sabíamos nome ou propósito e havia de tornar-se um sintoma de Lídia. Mas isso aconteceu mais tarde, quando ambas pensávamos ter esgotado a infância.


segunda-feira, 11 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

 No dia seguinte, apesar da pouca atenção que dávamos a bebés, enchemos Lídia de perguntas sobre a sobrinha. Queríamos desviá-la, reter-lhe o entusiasmo na criança fazendo-a esquecer que não podia acompanhar-nos. Em mudo acordo, temendo zanga ou tristeza, eu e Luís não aflorámos o assunto e empenhámo-nos em dar guita à novidade familiar. Mas a dada altura, olhou-nos de alto e resmungou, não me dizem nada, se calhar pensam que eu não sei que vão os dois com a professora. Depois alteou o seu nariz de embirrância e atirou, parvos, pensam que vão fazer o quê, vão é trabalhar; não me importo, quero lá saber, fico a tomar conta da menina, que é muito melhor. E adiantou caminho. Como se nós escravos e ela senhora.
Depois, faltou à escola por uns dias e poupou-nos  a mais embaraço. Em mim, a certeza da sua inveja engasgava, era pedra a pesar. Mas, apesar do sentimento que remoía, eu conhecia a sequência, sabia que Lídia havia de negá-lo até ao infinito. A mãe dizia dela, teimosa que nem uma mula, capaz de fazer das tripas coração só para levar a sua avante. E eu, debaixo dos seus olhos de insolência e por dentro da insurrecta teimosia, esforçava-me para não a magoar. Porque a gostava. Mas também porque a admirava e reconhecia; ou porque as relações amistosas me eram mais agradáveis e temia as suas incursões bélicas que fertilizavam por mim adentro  e abriam em invariável ferida. Era como se, a cada discussão, ela entrasse de faca em punho e eu só desconhecesse o lugar onde desferia o golpe. Por vezes, Lídia acendia-me os alertas e sabia pôr-me em estado de sítio.

Mas na véspera da subida a concelho, frente ao enorme carro da tropa parado à beira da escola, tudo se nos varreu. Em casa, as mulheres que não trabalhavam ao campo respingavam de preparativos e agradeceram o dia sem horário escolar. Aproveitaram para arejar e passar camisas e fatos, engraxar sapatos, preparar gravatas e chapéus de homem, banhar os garotos e fazer a barrela. E nós, os oito escolhidos, prostrados na admiração simpática dos tropas que só víamos diariamente a correr em formatura, estrada abaixo e acima, suados e exaustos, a mando de um chefe mal disposto  que lhes gritava impropérios. Seguiam em passo de corrida que atroava no alcatrão, as velhas na beira de estrada a benzerem-se condoídas, coitadinhos, olha como eles estão. E depois olhavam-lhes as botas que largavam lama a cada passo, vêm todos sujos, aquele coiro deve-os ter obrigado a entrar nalguma vala cheia de águas podres. E envolvendo o corno branco que traziam atado ao pescoço, rogavam-lhe vingativas pragas. Se as crianças davam costas, elas com mão de sinaleiro, esperem, ainda faltam os do atraso. Os mais inábeis chegavam depois, sem garbo e a passo descomposto, moídos de desalento.  Nos olhos, boiava-lhes a tragédia solitária de quilómetros por andar que o deus-dará da arma sublinhava. Seguiam mudos, passeio fora, a confrontar-se com a teimosia de alça insegura, o peso da arma caindo da  lassidão do ombro para o braço esmorecido. Mas eram os preferidos, a desgraça sempre se irmana; havia nas mulheres um desejo de ajudar que as contentava e era degrau, situava-as acima da miséria deles. Diziam aos netos, vai lá buscar um copo de água, traz a carcaça que está dentro do saco do pão. Certa vez, um soldado coxeava de tal modo que se sentou no valado à beira da estrada, poisou a arma e, com dificuldade, descalçou as botas. Aqui e ali, o sangue abria rosetas na brancura dos pés. As tias velhas curaram-no misturando exclamações piedosas e mercúrio passado nas feridas com uma pena de galinha, enquanto a  força do imaginário infantil trabalhava na pele tocada por tal suavidade, ignorando dor e carne viva. De seguida, entraparam-no com pedaços limpos de rodilha. Para a carne viva não bater nas botas, diziam. Mas quando o pobre tentou calçar-se, não lhe cabia nas botas o inchaço dos pés pensados. E as velhas desfizeram o curativo. Então, o Luís ajudou-o a calçar e a levantar-se, enquanto as tias desviavam olhos lastimosos e sopravam para dentro, fsfsfsfssss.... . O meu amigo carregou-lhe a arma e foram-se afastando devagar.  Cá atrás, as velhas choravam-no longamente, amaldiçoando a tropa e rezando por cura rápida e castigo suave. Junto à curva, pararam os dois e o soldado esvaneceu, enquanto o Luís ficava maior, maior, até ser ele e estar junto de nós a ofegar. E ainda as tias num murmúrio, a limpar lágrimas à ponta do lenço de cabeça, coitadinho, mal sabe ele o castigo que o espera. E depois voltavam,  como é que vai chegar ao quartel, tem os pés que nem os do crucificado (e repetiam o sinal da cruz). E o Luís ao meu ouvido, não digas a ninguém, mas ele ia a chorar que eu vi.

domingo, 10 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

No dia seguinte, pusémos entre parentesis preocupações quotidianas. Ninguém abordou o estudo de lições, os trabalhos de casa, as tabuadas por saber. Esquecemos mesmo os jogos habituais, o sádico rodado de piões suseranos e em gume que, por entre apupos e incentivos  galavam os mais fracos marcando-os em aleijões de perversão, cada um transferido para o brinquedo, a levar e a dar, a sofrer na pele os dichotes e a infligi-los até à morte por inércia natural ou provocada. Não jogámos o elástico surripiado às cestas de costura maternas e ficámos em grupinhos a antever o futuro, os elásticos em admiração ao desusado, a fazer beicinho, não nos querem. Olvidámos sovas e dissabores caseiros que mostrávamos uns aos outros como feridas de batalha, olha o que me fez, apalpa aqui, qualquer dia ainda me cega e depois vai preso.
O raciocínio apossara-se de nós, tomara conta da esperança engalanada no dia anterior e dissolvia-a em realidade adversa, retirava-lhe as cores uma a uma. A razão, que umas vezes repele e outras atrai, enviesava-nos as ideias. Ensimesmados no caminho que esperava os eleitos por um ditado metódico, antevíamos o pesadelo de vários quilómetros a carregar tanta flor de papel. Os mais inventivos atreviam-se a propor técnicas que passavam de grupo em grupo adendadas de sugestão e não serviam a ninguém. O excesso vergava-nos, a certeza de tarefa incomportável mantinha-nos cabisbaixos. E, enquanto eu desistia mentalmente, sem saber como  dizê-lo à professora, a maioria das crianças arrefecia na aspiração. Quando o automóvel se aproximou da escola, mais temíamos do que desejávamos ouvir pronunciar o nosso nome, desejávamos um erro inadvertido a eliminar-nos. E eu acendia a ténue esperança de ser derrotada pela caligrafia.
            Na azáfama de nos tornarmos viáveis no transporte das flores, nem dera pela ausência de Lídia. Quando a professora fez a chamada, Luís respondeu sério, minha senhora ela hoje falta, vai ver a sobrinha ao hospital. Voltei-me inquisitiva e os olhos dele um lago: correu tudo bem. Subiu-me um fundo de remorso por tê-la esquecido, mas abafei-o na ansiedade de saber que a professora ia chamar-me para carregar um ror de flores estrada acima. Disse para mim que tinha coisas importantes a tratar, que ela estava bem, que também não ia lembrar-me naquele dia de diferença que incluía um hospital, uma sobrinha, quem sabe, médicos de verdade. Mas o meu fundo não se calava, é tua amiga, como é que a esqueceste. E enquanto embebia neste conciliábulo de mim comigo, a professora começou a divulgar os seus acompanhantes e disse-me o nome. Maria Laura acotovelou-me e ciciou com uma pontinha de inveja, foste tu que ganhaste mais o Luís. Alquebrei de imediato, sabendo-me incapaz de tanto carrego e sem coragem de me chegar à secretária para a verdade ou uma mentira que fosse. Pensei no Luís e em Lídia, tudo os fazia mais fortes e ousados que eu. Luís era cheio de expedientes e boas ideias. No dia em que, por castigo,  a professora mandara fazer cinquenta cópias de uma página cada, com abecedários data e nome, ele deitara-se ao trabalho, o despertador à frente do caderno e do livro. e foi o único a cumprir tão selvático castigo, a salvo da fervura da régua. Não animei a estes pensamentos. Eu não era Luís nem Lídia. Cogitei que poderia faltar à escola nesse dia. Mas havia um contra: tinha uma pena enorme de não aproveitar o passeio, balançava entre o carrego impossível e a minha vontade de participar naquela alegria de novidade. Fiquei a matutar sem conclusão segura até ao intervalo, enquanto a professora bla, bla, bla, desfazia dúvidas e clareava ideias acerca da manhã em que a maioria ficava em casa e alguns iam de visita especial à vila.
Em todas as idades os homens constroem os seus equilíbrios temporais, os períodos de descanso a contrabalançar e regular o trabalho. O mesmo acontece com as crianças: as tarefas escolares equilibram com os intervalos. Facto que só entendi quando entrei na escola. Antes, quedava-me esbugalhada face à barulheira de cada intervalo, garotos em ondas de braços e pernas e as tias velhas num meio sorriso, parecem touros desembolados. Talvez hoje não seja igual, já não exista a evasão alegre e barulhenta da  liberdade, mas quero crer que os intervalos são o espaço vital onde a infância busca a força que falta. A verdade é que saíamos da escola em dois tempos distintos. Até à porta, éramos  pausados e ordeiros; mal púnhamos o pé no pátio, desatávamos a ser outros, mordia-nos não sei que bicho e deitávamos a correr como se fossemos salvar vidas. Esse movimento espontâneo reintroduzia-nos na infância, reapossámo-nos nele, era o nosso modo de cavar distância entre intervalos e períodos de trabalho. Um movimento salvífico. Nessa manhã, Luís, em vez de se dirigir para o pátio dos rapazes, veio andando, calmo, na minha direcção e perguntou, já andaste num carro da tropa?. Olhei-o sem compreender, o quê? E ele, nunca andaste, pois não, eu também não, mas estou desejando. E afastou-se em corrida desabalada.

Só no intervalo do almoço perguntei  como é que se ia arranjar para andar num carro da tropa. Ele olhou-me meio trocista e, bem me parecia que não estavas a ouvir nada; a professora disse que um carro da tropa vem buscar as flores e a gente. 
Pasmei de contentamento.  

terça-feira, 5 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Entrámos na sala e o armário das flores abarrotava, as portas de vidro incapazes de segurar aquele jardim sem precedentes. Luís seguiu-nos a admiração e bichanou quando passámos, estive a contá-las, já ali estão mais de mil. Escancarei os olhos, então mil flores era aquilo. Como é que mil flores cabiam ali, na minha cabeça mil era uma quantidade de coisas a perder de vista, tinha imaginado a aldeia submersa em flores e afinal, acamadas umas sobre as outras, cabiam no armário grande. Lembrando a dúvida, parei e  perguntei-lhe, o que é subir a concelho? E ele, não sei muito bem, deve ser uma coisa, o meu pai disse que o concelho estava na outra vila e agora vem para aqui, é porque é uma coisa. Mas a professora interrompeu-nos a lógica, deixem-se de conversas. Maria Aurora, para o lugar se faz favor. Desandei sem entender a razão da professora me chamar Maria Aurora e não Bia, como toda a gente. Revi Lídia a imitar-lhe os movimentos de lábios quando fazia de professora, Maria Aurora, cuidado com a acentuação.  Mal me sentei, a mestra bateu a régua na mesa,  pediu que até final da semana entregássemos as flores que faltavam e avisou que, na semana seguinte, escolhia dois alunos de cada classe para irem com ela entregar e pendurar as flores no recinto da festa. Em poucos segundos, a escola pejou de cochichos, vozes ciciadas e pouco originais que desejavam, Deus queira que me escolha a mim, Deus queira que me escolha a mim.
            Os dias passaram devagar para a nossa expectativa. Primeiro o armário extravasou de flores; depois, foi a vez da chaminé parecer um vaso primaveril; por último, o canto esquerdo da sala de entrada onde pendurávamos lanches e casacos, mudou-se em canteiro garrido. Passou o fim de semana, e a professora sem escolher. Na segunda feira todos esperávamos o anúncio, mas ela silenciou. E na terça, a sentença: ia fazer um ditado a cada classe e escolhia os dois alunos com ditado melhor; Avaliava  erros e caligrafia. Não houve, nem antes nem depois daquele dia, atenção mais extrema ao fazer do ditado. À vez, vi alunos arregaçarem mangas em dobras atentas, como se os esperasse um trabalho pesado mas minucioso; observei os garotos da primeira e segunda classes, que ainda faziam ditados a lápis, em trabalhos de afiador concentrado e borracha pronta; reparei nos da terceira e da quarta em balanços de tinta,  experimentando canetas e verificando aparos; as raparigas de cabelo comprido verificavam ganchos e elásticos e, as que não o tinham apanhado em trança ou rabo de cavalo, davam-lhe um nó para não incomodar; as que usavam cabelo curto, apressavam-se a lançar atrás da orelha uma ou outra mecha mais rebelde. Quase todos tínhamos as mãos suadas e quem usava um trapinho ou lenço de assoar limpo puxava-o à lide, limpava-se e emprestava-o a quem quisesse. Os parceiros desejavam-se mutuamente sorte enquanto organizavam a carteira com o método de um general em campo de batalha. Eu e Lídia rememorávamos o acento circunflexo e o grave, em segredo de estado, por meio de papelinhos dobrados que passávamos uma à outra. Em redor, todos bichanavam dificuldades e consultavam o livro a confirmar grafias a que eram mais avessos. A regra era clara: em todas as classes o livro era aberto ao acaso e só havia conhecimento da lição escolhida quando a professora ditasse o título. Cada um fazia o exercício em folha própria que a professora colectava para levar consigo e corrigir em casa. De tão grande aplicação resultou uma sala soterrada em esforço e cansaço que se desprendiam do amplo conjunto de bochechas a avermelhar e que expandiu, no final do ditado, em audível suspiro de alívio.
Mais tarde, a caminho de casa, abrimos o livro para a verificação e parámos na berma da nacional em grupinhos pequenos,  o dono do livro a seguir as palavras com o dedo e meia dúzia de cabeças debruçadas para as letras, enquanto um ou outro ia balbuciando tristezas de erros e acentos. Algumas crianças auto excluíam-se de imediato, abandonavam o grupo de cabeça baixa, a mala esmorecida a bater-lhe nas pernas e saía-lhes o desalento, já não vou. Lídia era um conjunto à parte. Silenciosa, desinteressara da verificação de erros e estugava o passo,  desejando chegar e saber da irmã. Eu e Luís acenámos-lhe e continuámos cá atrás, em passinho tagarela,  a fazer planos para o desconhecido, íman que o imaginário infantil  não se cansa de agradecer.  

Não saberia dizer como, mas antes da professora ver os ditados e eu ver o livro, antes do Luís alvitrar, soube que ia acompanhar a professora.Talvez por palpite sem importância, premonição de cacarácá. Ainda assim,  uma certeza. 

segunda-feira, 4 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Retorqui-lhe coisas palermas de que me lembrei e não faziam qualquer efeito como, tens que ter, sou madrinha dos teus filhos. Ou, já escolheste os nomes, não te lembras. E ela convicta, a abanar a cabeça em negação reiterada, por entre soluços e caça-rapazes espontâneos que lhe estremeciam na testa e junto à face num apego gracioso, não namoro... não me caso... não tenho filhos.... Estendi-lhe o trapo já molhado, olhou-o displicente e limpou-se na sujidade da manga, deixa, não é preciso. E tirou-me a mala da mão. Ainda sem compreender, tartamudeei, o que é que foi. E ela voltou-se como uma fera e apostrofou como se eu fosse a exclusiva  culpada e estivesse safa de complicações, foi que a minha irmã andou dois dias a gritar com dores e eram gritos de aflição. Fui lá e vi-a, não dormiu duas noites e dois dias inteiros, Bia. Parecia que ia morrer. Tu sabes que mijar não custa, mas olha que é pela passarinha que os bebés saem, já viste o que deve doer?. Disse-mo assim, de chofre. E pôs-se a olhar para mim feita pítia oracular, toda imbuída em estranheza e compenetração. E eu aparvalhada, a mente numa desfilada confusa, a tentar integrar os dados novos, imaginando horrorizada os interstícios daquela verdade. A novidade foi tão aguda que me trespassou e senti mirrar as carnes. Um calafrio percorreu-me o corpo e tive saudade ao tempo de bebés vindos de Paris, não me apetecia saber mais, as verdades adultas que esperassem. Mas não fiz um gesto. E nem Lídia esperava resposta.  Em parte porque a confidência lhe aliviava dor e estupefacção próprias, em parte por verificar que o poder das suas palavras sobre mim lhe dava supremacia, continuou,  a parteira velha não se entendeu com ela, cá para mim não sabe nada de nada.  Primeiro mandou-a andar “para desenvolver”, vê lá bem que andou dois dias inteirinhos “a desenvolver”. Depois, com o aperto das dores ela já não era capaz de andar e só gritava. Foi quando a deitou na cama e já não me deixaram ver mais nada. E olha, daí a umas horas  o sangue que havia nos lençóis era uma poça comprida e, de certeza, já estava o lençol todo molhado em volta dela que eu bem vi como a cama ficou. Aí a minha mãe assustou-se, deu um encontrão na velha e mandou o meu pai à loja do Telha para chamar a ambulância. A minha irmã estava branca como a cal das paredes, disse a minha mãe – e rematou com raiva e desgosto -. É uma merda ser mulher, Bia; o meu cunhado andava lá aflito, mas não lhe doía nada. Depois do desabafo sossegou um bocadinho e raciocinou, como é que a gente não pensou nisto Bia, somos mesmo muito parvas, então os filhos saíam cá de dentro e não doía?! Enquanto ela descarregava aquela tristeza enraizada – as tristezas e dissabores de Lídia eram assim, cheios de raiva e raízes fundas que eu não entendia – eu primeiro aterrorizei, os pêlos de pernas e braços num dramatismo erecto e involuntário. Mas de seguida me impus imaginar alternativas que nos extirpassem àquele calvário conservando as festas de baptizado, os nomes escolhidos, o parentesco que encontráramos para ser família uma da outra. Lancei-lhe, e se comprássemos um. Deve haver pessoas que vendem bebés...e ela já na passada habitual, a gente depois pensa as duas que é melhor. Depois voltou-se para mim e garantiu, digo-te uma coisa, Bia, juro que  ninguém me apanha atrás da tua barraca outra vez. E depois meio intrigada, tu achas que Deus me guardou?! E eu tão crédula como ela, se calhar foi o teu anjo da guarda. E entrámos na escola compenetradas da  invisível protecção, completamente esquecidas do que fossem as benesses ou a subida a concelho.

"No Tempo da Escola"

Depois, a professora distribuiu três moldes a cada fila e mandou desenhá-los e recortar, ensinando a economizar papel. Cumpridores entusiastas e em ânsias pelo seguimento do jogo, passámos os moldes uns aos outros. Por fim, trocámos entre nós as sobras dos recortes e cada um fez uma espécie de alfinete de cabecinha modelo XXL. E em seguida montámos uma flor farfalhuda atravessada bem a meio pelo nosso alfinete de cabeça gigante e atámos tudo com um fio transparente. E todas as flores ficaram lindas, até a minha. Nessa altura, a professora deu a sessão por terminada e arrumámos o material. Entregou uma extensão de fio a cada um e pediu cinquenta flores daquelas por aluno, feitas em casa, prometendo papel e fio quando necessários. Aconselhou os pais a  desmancharem as nossas flores para fazerem novos moldes e entenderem a técnica. E deu-nos duas semanas de prazo.
À tarde, saímos floridos e palavrosos e seguimos estrada fora numa auréola de satisfação nunca vista. Eu e Lídia combinámos fazer os nossos moldes em minha casa a partir de uma caixa cartonada que andava na barraca. E Luís resolveu inflectir para a mercearia a fim de convencer o ajudante de merceiro a dar-lhe duas caixas velhas de soquetes para fazer os seus. E foi um nunca acabar de flores. Inexplicavelmente, o mundo feminino mobilizou-se por inteiro, mães, tias avós, madrinhas, vizinhança chegada. E era ver as mulheres sentadas às portas pela tardinha, o moxo baixinho tapado de saias, atarefadas em corte e recorte, as sobras pequenas a pintalgar aventais, papeis de seda e frisados que esvoaçavam em volta mal um inaudível suspiro de brisa, um espirro, uma tosse inconveniente. As crianças riam e agarravam no ar aquelas penas coloridas com que faziam os alfinetes de cabeça a que as mulheres chamavam o olho da flor. Toda a gente queria ajudar a tornar mais bonita a festa do concelho. 
Talvez seja verdade o que então pensei sobre aquele frenesim florido que acometeu a aldeia: havia a esperança de mais benesses, mesmo que não soubéssemos quais e na altura o termo fosse marginal aos conteúdos e interesses infantis. Mas eu ouvira as tias velhas a esperançar, diz que é melhor para toda a gente, vamos lá a ver...Quando perguntei a Lídia, ela atirou-me um, sei lá!, tão desimportado que me admirou e quis saber o que tinha. Mas estava assaz longe de antever o que me aguardava.  Ela, a minha irmã foi esta noite para o hospital, estava com as dores. E desatou num choro convulso. Lídia nunca chorava. Como Luís, aparava as reguadas sem uma lágrima; caía e, à vista do sangue, franzia-se numa careta de dor, mas de olhos secos; se os progenitores a desancavam, desatava a berrar o que eu apelidava de “nomes feios”, que só aumentavam as porradas, e nenhuma humidade lhe assomava às pestanas. Quedei estupefacta, sem saber o que fazer, sem saber mesmo por que razão chorava. Andava contente com a ideia de um sobrinho e eu já tinha perguntado a minha mãe o que teria de fazer para ter também um. Mas, depois da explicação, concluíra que tinha de aceitar o inexorável de Lídia. A verdade é que me  passava sempre à frente, ganhava-me pontos em todos os aspectos da vida. Entretanto, tirei-lhe a mala da mão, assoa-te., e estendi-lhe o trapinho que minha mãe colocara no bolso da bata. Ela assoou-se, postou-se maquinal a olhar a camioneta da carreira que passava, e atirou em determinação e má vontade, eu não quero ter filhos. E pranteou-se toda, encheu-se de soluços fundos. 

domingo, 3 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Apesar do Luís me fazer caretas cómicas e dar conselhos, apesar de passar na minha carteira e bater com os nós dos dedos, apesar da coragem que revelava a rir para mim enquanto o espetavam, nada me demovia o borbotão de lágrimas. Maria Laura, coragem feita pessoa, animava-me, vais ver, hoje dói-te menos. E eu meia morta e toda ranhosa. Pressurosa, desabotoava-me o botão do punho esquerdo, vá, faz como eu, sobe a manga da bata e da blusa. E mostrava-me orgulhosa a brancura do braço são, roupa  alçada até à axila, consegui ajudar com o outro, viste. Lídia, ao contrário, procedia como se não me soubesse a tendência. Absorvia nos deveres escolares. E mesmo que a professora, já disse para pararem com o que estão a fazer, mantinha-se em actividade. Chegada a sua vez, aparecia ao estrado de manga arregaçada e olhos interessados. Fixava os frascos alinhados dentro  das caixas e parecia registar os movimentos da enfermeira na mistura do pó com o soro e depois na experiência de experimentar a destreza  do líquido a correr na agulha, como se fosse sua função aprendê-los e lhe coubesse aplicar a injecção seguinte. Ao invés, eu olhava-a desde que saía do lugar, na esperança de que me enviasse um sinal ou se igualasse um pouco a mim minorando o meu desgosto. Mas passava-me ao lado indiferente e não lhe saía um trejeito enquanto a vacinavam, era como se o corpo lhe fosse exterior, um espécime à sua responsabilidade.
À saída, caçoavam-me, foste-te abaixo outra vez, chorincas, eu tinha vergonha se chorasse nas vacinas...mas  estávamos os três ocupados a comparar o vermelhão nos braços que começavam a inchar e, passado o aperto do momento, não me ralavam os dichotes. Por vezes, Lídia olhava-me séria e dizia a ponderar o futuro, se eu fosse antes enfermeira?! Podia dar-te injecções quando estivesses doente. Eu recusava a ideia com vigor.  Abominava pensá-la de mistura com agulhas, sangue, dor. Além disso, parecia-me que Maria Laura ia ser uma enfermeira de categoria, era boa de coração e ajudava-me no desenho. No mais fundo de mim receava os momentos tresloucados de Lídia. Antevia-a em operações de vacinação e temia que nos atravessasse o braço de um lado a outro com a agulha. Não confiava inteiramente na minha amiga. Imaginava, e se ela se zanga e nos vacina, e se depois nos interna no hospital dos malucos, e se nos prende a uma cadeira de rodas e ficamos lá para sempre. E outras perspectivas cada uma mais macabra que a anterior. Tantos anos de amizade e não lhe contei os temores infantis. Talvez porque, a par do seu ar genioso, me foi apontando lugar. Não sempre, que o seu amor era como ela, um imprevisto. Mas, se me tomava de objecto, era seguro que lhe sentia a força. Da primeira vez, decidiu que eu teria de a acompanhar a dormir em casa da professora. Da segunda, veio embrulhado na festa que deslumbrou as nossas mentes e mobilizou a escola inteira, os festejos da  subida da vila a concelho.

Tudo começou quando a professora suspendeu o nosso quotidiano de cópias ditados e contas, pediu atenção e postando-se no estrado, bem a meio, contou em gestos a rebrilhar por via do sol que entrava pela janela e incidia na pulseira e relógio, que a vila ia subir a concelho e ela ia participar com os alunos.  E nós sem a coragem de perguntar o que era subir a concelho. Na minha mente logo se desenharam as malfadadas escadas e pensei de imediato em ficar doente nesse dia aziago, ninguém seria capaz de entender que as minhas pernas me desobedeciam e terminantes, recusavam degraus. Entretanto, já ela chamara pelo Luís e se abalançara ao armário, retirando ambos um ror de papel colorido enrolado em rolinhos pequenos com que enchiam os braços e que depositavam sobre a secretária. Quando a operação terminou, mandou limpar as carteiras, arrumar tudo dentro das malas, só tesoura, lápis e borracha à vista. Depois,  chamou um por um à secretária e deu a cada três rolos escolhidos por ela. E nós satisfazendo no desconhecido, contentes por termos três rolos de papel. Talvez mais contentes pela expectativa.