Hoje
vou escrever sobre as mulheres, que é sempre para elas que escrevo. Não o sabem
talvez, mas prefiro-as às crianças loiras e etéreas das papas cérelac. E também
a todo e qualquer outro ser. Porque sim. Enterneço nos pneus de gordura a
debruçar da roupa, as rugas em puzzle miúdo pelo rosto. Conheço-as de mãos
lotadas, pejadas no esforço da vida, estouradas de luta. São as mesmas mãos que
passeiam um lazer de carrinhos de compras. Então, plantam-se indecisas entre as
alfaces ou avançam braços decididos para as embalagens de carne, depois de
longo olhar a deitar contas a bocas e carteira. Soberanas, matriculam cada
artigo e inventariam prioridades.
A
igualdade de sexos em responsabilidade e trabalho. Banalidade mais afrontosa! O
mundo depara-se-nos sem projecto, está. Afirma-se em determinismo saliente que mofa de sermos aspirantes de liberdade. Vem esta conversa porque impressionei em azáfama pós laboral onde sou
entre iguais, ou seja, me vi de súbito plantada em partilha de interesses,
olhares, questões, com vários grupos de mulheres. Num deles havia uma ruiva
que, sem palavras ou quaisquer sinais de vivacidade, desde o início se afundava
na cadeira a esconder pernas fatalistas. Era um cansaço feito de movimentos
lentos, envelhecido, a que não conseguia subtrair-me, os olhos, estou enredado
desde as pestanas, não sei soltar-me. Se
a espreitava, a red era toda lassidão,
olhos vagos, um desalento de dar dó. No intervalo, a maioria das mulheres saía,
conversava, fumava. A red sentada,
numa opacidade tortuosa.
A
princípio observava-a a medo, temia que sentisse a devassa, imaginava a pele
branca a eriçar estranhezas incómodas, pelos de seda em sentido, não aguento
estes olhos, quem me dera o oblongo de não ser notado. Mas rapidamente percebi
que não a afectava. A garota vivia na sua bolha, em consumição. E quanto mais a
olhava maior a certeza de conhecer aquele rosto. Mas de onde, perguntava-me.
Estudava-lhe a pele branca, a cenoura dos anéis tombando num arrependimento baço
junto ao rosto, os olhos cristalizados em admiração triste, a boca pequena desaparecendo,
lábios virados para dentro. A ruivinha tinha uma linha de rosto pura e, não
fora o desalento que a ocupava sem folgas, diríamos ser anjo de Botticelli.
Certa
noite, houve um aniversário com bolo e a red
hair, engaiolada no seu cansaço triste. Quando só restava ela na sala, levantou-se
e seguiu-nos. Estávamos em volta da mesa, alegres do momento, palradoras e
entusiastas. Esboçou um passo arrependido para o grupo e foi sentar-se numa
cadeira encostada à parede, mãos juntas no regaço, o corpo a gritar mudamente,
tirem-me daqui. Porém, ao som do “Parabéns a você”, como que acordado por um
botão, veio vindo depauperado, mãos nos bolsos do casaco largo. Juntou-se-nos
sem um som, a boca a encolher até ao risco fino. Enquanto as outras partiam
bolo, o comiam e gracejavam, ela deu as costas e voltou para a sala a reservar-se de
tocar em alguma coisa. Por essa altura, eu já concluíra que conhecia um
familiar próximo, uma irmã, a mãe...
Ontem, estava eu distraidamente a dar passagem numa rotunda, passa a red arrelampada, a dar-lhe duas voltas completas. Os olhos
dela a cruzar-me num azul cinza dormente, de felicidade nenhuma. E, de repente,
a memória devolveu-ma. A menina mais linda do super, uma ruivinha alegre, a
contar pormenores de vestidos de noiva e alianças enquanto as mãos esguias
afinavam a máquina do fiambre. Vi-a assim tal qual, no seu esplendor sem relva,
mãos vivazes, voz doce, a rebeldia de alguns caracóis a espreitar no estreito
da touca.
Que
lhe terão feito a vida e os homens?! Tinha boquinha de coração e cabelo eléctrico. Que é da garridice gestual e das mãos certeiras que só a felicidade confere? Em algum lugar esta mulher perdeu a correnteza da vida. Fiquei a vê-la afastar-se, incógnita de mim e talvez de quase tudo, e pensei nas mudanças físicas que casamento e união de facto provocam nos dois sexos. Se abstrairmos de rotundices adiposas e outros problemas
menores que o estado acarreta em alguma gente, a mudança inscreve-se
com muito mais força no rosto - sobretudo nos olhos - e linguagem corporal das
mulheres. Os homens, quase todos, passam incólumes no teste, por vezes até
resplandecem (também existem mulheres resplandecentes, mas são muito menos).
Talvez sejamos mesmo feitas de uma costela, somos mais frágeis. Ou talvez não.
Quem sabe somos igualinhas dentro da diferença. Mas o mundo inteiro incluindo
nós mesmas, carrega sobre nós, desde tempos imemoriais, o seu insustentável
peso. E não se aguenta, red hair. Mas
é só a princípio. Depois passa. Há sempre um arco-íris a espreitar-nos.
Bastam-nos os olhos de vê-lo. Espero nos teus olhos. Sinceramente.