domingo, 25 de junho de 2017

Olívia 

Pensei que este ano ia ver-te e correr aquela estrada de planície sem fim. A esmo, desde a berma, flores e pastos arrepiando um bom dia na deslocação do ar, montados do sem fim a arregalar para o carro, aqui e ali, uma vara de focinho no chão a catar bolota. De outras vezes, bovinos pachorrentos, sem pressa de nenhum lugar, alguns apenas um vulto semi deitado, que nem se sabe de que descansa gado tão pouco dado a pressas. E a terra plana, a desenrolar em cada linha de horizonte, vizinha de céu tão baixo.  Lá ao fundo, sem escadote, azinheiras tocam o azul ao alcance da mão. Depois, sempre a fazer-me próxima de ti, contornar a igreja de barras certas que guarda a largura de árvores em quadrado seguro e chão escaldado a soalheiras. Ali, pesa a desocupação dos homens, olhos piscos em fresta, a seguir o movimento à revessa de bonés e chapéus. E seguir em frente, em frente. Passar o sítio onde os namoros se deslocam e atiram pedras a adivinhar longevidades. Como se uma pedrinha no cimo de um esfíngico pedregulho faça diferença ao sentimento. Mas o chão solado. Serão bastantes, os amores passageiros. Ou o par segue consolado da sua perenidade e logo o vento atira um punhado de pedrisco ao chão.  E fica a gente sem saber onde a razão, se no vento que as tomba, se na pontaria que as equilibra. Que, na vida, como em tudo, a pontaria faz muita falta. Pergunto-me se algum dia, tu. Se uma hora, tu. Se o teu coração ansiou ou quis experimentar. Mas falta-me coragem para te desvendar os votos lançados acima daquela enormidade de rocha que guarda a suposta eternidade amorosa. Ou talvez seja apenas bom senso, o teu passado vem ter comigo.  Ou não. Para nós duas, é de pouco interesse.  
No ano transacto, decidira, finalmente, que não me valias o caminho. Por qualquer ninharia me preterias; o peso que tínhamos uma na outra não se equivalia, éramos(somos) dois pratos desiguais na mesma balança. Um desgosto, Olívia. Coisa de memória a repensar.
Porém, inesperada, voltaste por teu pé, isenta das minhas aguilhoadas. E fiquei tão contente como o pai do filho pródigo. Festejei. De imediato, pensei na visita deste ano. Que parece não acontecer. Porque te repetes. Ligo-te e impedes-me a visita porque obras, pinturas, catequeses em términus de festa, ninharias palermas a que o meu coração não dá bola. Foi nefasto, acredita. Afinal, continuamos dois pratos em demasia desigual. Ficaste de ligar. Depois. Quando. E nem sei se.  Neste repensar do que somos e que a ti não incomoda, talvez eu tenha de alinhar contigo, alijar peso, tornar-me leveza de superfície. Viver uma amizade de raiz à flor da terra, se é que tal coisa exista e eu a consiga. Digerir, definitivamente, o facto de não seres quem te pensei.

Um dia hás-de ligar-me. Ou não. E fica a memória de Évora, as ruas de pedras a subir e a descer, os arcos da Praça do Giraldo, O café Arcada onde só estivemos uma vez submersas na vozearia de gente em rigor de capotes e chapéus alentejanos, a rua do Convento Novo agora fechado, a Porta na muralha de que já nem lembro o nome, os moinhos de S. Bento onde nunca fomos. Então,  havia os testes, as notas, o estágio que tanto nos preocupava. É lá que estamos e somos incólumes.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Deolinda

Deolinda tem horário galinácio e trabalha a poder de sol. Madrugada alta que é ainda noite escura e já ela se levanta para entrar, discreta senhora, num autocarro que a traz até mim. Sinto-lhe os passos na pressa da casa. Acorda os miúdos, alimenta-os, trata dos lanches, vê se nada falta  nas mochilas e leva-os ao autocarro da escola. Então, a casa cai  num silêncio que lembra a noite, sem um som. Até que a porta se abre e fecha de novo. Descanso e adormeço com os sons abafados da cozinha a voltar a si. Mais tarde, ainda eu me arrasto ensonada e já a roupa flutua no estendal a cumprimentar-me à inveja, faz tempo que cá estamos. Atenta, Deolinda ciranda pela casa. Olha-me num sorriso de bons dias, e interna-se na cozinha a informar bem disposta, o  pequeno almoço sai já. E mal desdobro o jornal, planta-se por cima das letras o cheiro bom a torradas e café.  Deixa-me um bandeja composta e acode ao quintal. Perde-se ali um tempo e quando sai a compras o mundo lá de fora está amanhadinho. De enfiada, faz  tudo que é recado  e é mulher de pouca demora. Não aproveita para beber café, sentar-se numa esplanada virada ao mundo, desfrutar de uma conversa com gente amiga ou conhecida.  Quando volto a vê-la – ainda leio as notícias – sobraça  o alguidar da roupa já seca. Levo o jornal para o escritório e oiço-a a abrir janelas. Areja quartos, faz camas, arruma. Entretanto, abro o portátil e espreito novidades, tento escrever alguma coisa. A essa altura já as caçarolas dão sinal na cozinha. Chega-se a mim a limpar mãos no avental e põe-me as ementas à consideração. Como se eu saiba que espécimes me    habitam o frigorífico e o que fazer com eles. À minha recusa em decidir refeições, acrescenta em voz baixa e firme, é patroa, quem é patrão tem de mandar. Reafirmo, no meu frigorífico mandas tu, és a patroa; eu sei abri-lo e fechá-lo. Mas não a satisfaço. Olha-me duvidosa a incentivar, não lhe apetece outra coisa, eu cozinho prá senhora. Deolinda tem treino de obediência e agrado e penso até que seria mais grata a uma patroa caprichosa e pueril. Na hora de almoço, recusa comer comigo, fica mal, não pega bem patroa comer com empregado, a senhora não leve a peito, mas eu sei o meu lugar.  Durante a tarde, haja o que houver, Deolinda passa a ferro, dá uns pontos na roupa das crianças, ajeita a roupa do dia seguinte e deixa-nos o jantar preparado. Depois vai buscar os garotos, dá-lhes lanche e banho. Quando fazem os deveres escolares, despe a bata, enfia o vestido de florinhas, humedece as mãos e alisa  o cabelo, agarra a malinha e chega ao escritório, vou embora, senhora, témanhã. E desaparece no portão em corridinhas pequenas. Enquanto a espreito, olho as minhas três páginas escritas. Como é que ela consegue?! Como consegue sustentar uma família e, vinda dos fundos da noite, trabalhar o dia todo para, já noitinha, voltar para casa num sorriso.

Deolinda é o abençoado mistério da minha vida. Sem ela, o quotidiano  seria outra coisa.

domingo, 18 de junho de 2017

O Sentido da Vida

No Alentejo, o verão é treino de inferno. Sofre-se com calma, no anseio de noites frescas que um sopro de brisa aligeire, olhos a adivinhar no astro mudanças moleculares. À noitinha, os homens sentam à porta a moíção de trabalho e calor, dedos de pés esticando prazenteiros livres do aperreio de sapato e meia, o suor a refrescar nas reentrâncias; e há qualquer coisa de terno na timidez indefesa da carne a  branquejar  sob o  arregaço de calça que o regadio ensejou. Os homens esperam o dia novo. Que surge, benza-o Deus, muito igual ao anterior. Em calor, luz e sofrimento. Os alentejanos que se cobrem como mouros, a defender-se da torrina e dos mil insectos que o verão importa.
Um alentejano na praia não é qualquer pessoa. É ele. E  mais todo o calor que já viveu e o vincou em braços e pescoço. E mais o suor que destilou na terra que é sua e ama de paixão. E mais a imensa saudade da água e que lhe mora na alma. Que não pode este sentimento dizer-se apenas saudade; é funda necessidade, míngua exacta, falta que não evapora na beira de um rio. O mar sim. O mar tem a vastidão da sua necessidade e alberga toda a frescura das brisas. Ali, não precisa poupar na pródiga liberdade da água que lhe eleva o corpo e o pega ao colo. E descansa sem remorso na inutilidade da areia onde nenhuma enxada tem préstimo. A praia é breve recreio onde despe calores e angústias, alija males de viver e se transfigura empenhado em respirar, cheirar, tocar o ritmo das ondas. Extasia  no perfeito milagre de saber como matar o calor que sente.
Mas ontem, enquanto muitos vogavam de corpo e espírito, tu fugias do fogo traiçoeiro. Enquanto uns tinham sol e água fresca em céu sem nuvens, tu corrias com a família para o carro. Tu apressavas-te para a morte, depressa, depressa, é preciso sair ou morremos queimados. Enquanto nas praias a água abraçava os corpos e os apaziguava, o fogo devorava mata, devastava caminho, corria às cegas destruindo a esmo. Na praia, os alentejanos olhavam o dia claro e a rir, ainda bem que viemos. E tu num repentino beco sem saída, cercado, o fogo e o vento contra ti, e agora. Os gritos, a aflição, a dor mais incomensurável e veemente que existe. A Dor de te saberes dentro da pior morte e ninguém para salvar-te. A tua dor penetrante de impotência a varar-te, vamos morrer. E o fogo máquina terrífica e ignóbil, sem pensamento, apanhou-te e andou. Na mesma hora em que tanto português cabeceava de sono e calor, pasmava para a TV, tomava banho de mar, partiste dilacerado em dor que não se descreve, ardias por junto. E tu já não eras tu, sobrou  de ti um resto calcinado de ossos; nada se sabe das tuas carnes, dos desejos que tiveste, do que pensaste, do que foste. Recuso acreditar que não há despojos. Acho, vê tu, que ficaste na brisa que a chuva traz e que jamais te afastarás dela que, ontem, tanto te faltou. Agora que sabes mais que nós, diz-nos, o que fazia o Deus justo e amoroso nesse momento.
À noitinha, inconscientes da desgraça, ignorantes deste luto nacional, os alentejanos viajavam para casa, vidro aberto e braço fora das carrinhas e automóveis, agradados da chuva e do cheiro a terra molhada, a contornar as árvores caídas pelas estradas. Pacientes. Felizes. E tu já liberto de todo o mal a ouvi-los e a pensar, também gosto do cheiro a terra molhada. E eu garanto-te que não sei como és capaz de esquecer o terrível cheiro a carne viva queimada. A dor. O lamento profundo e insondável de haver tal morte.

Descansa em Paz.

domingo, 11 de junho de 2017

Regressar de Gosto

A primeira ida à praia é, em cada ano, memorável. Sei, repito-me anualmente, post atrás de post, na tentativa de erguê-la das origens mais fundas do que em mim permanece de seu. Não que a procure cá dentro como um resíduo. Nada. Fica-me a pulsar nos sentidos e palpita na mente, é aroma disseminado no meu cheiro natural de velhice em combustões lentíssimas, células e sangue avulso. Em excesso. A escrita é a rasoira que esbarronda sobras, que não se pode viver entornando restos de maré pelos dias, salgada ao minuto, com búzios hipnóticos em sugestão de líquidas viagens multiriscos. Ninguém aguenta. E portanto. Resta-me verter esta paixão em palavras. Que há pior (ou será melhor). Lembro um amigo a contar de um amor que o arrasava; nascia-lhe à presença amada uma inquietação do corpo todo, o suor a nascer-lhe em gotas sobre o nariz, coração desengalgado. E era coisa que o preocupava, olhava-nos a inquirir, acho que morro, não sobrevivo à sua presença constante, os nossos encontros exaurem-me, aquela mulher espapaça-me a vontade. E nós, vida de amores comuns, invejávamos e falávamos em novidade e no hábito que aplaca corpo e espírito. Mas ele que não,  era exagero subtraído ao tempo e já abarbatava anos de constância; sentia-se insolvente, temeroso de futuro tão amorosamente desmedido. Não sabemos o que terá acontecido a esse amor invejado. Para nós, seu pequeno círculo de confidências, mora intacto na bainha interna do tempo, não desfaz. Mas o meu amor pela água salgada é outro,  não se diz em cataclismo. É bem-estar em crescendo desbordado e que conto, segura de que qualquer sensação tem com o sinal que a representa, a relação da foto com o original: são ordens qualitativamente diversas.
Amo a praia dos dias primeiros, a areia enrugada aos altinhoslavrada de vento como deserto, sem peso de genteaqui e ali, sinais da última maré. Traço-lhe uma vereda de passos e estamos quase a sós, sem ruído humano, gargalhadas, telemóveis, gasóleos de motor que abandalham  riscando ondas e ouvidos. E assim a apercebo melhor no seu natural de água que desmaia na areia e grácil se repete em risos pequeninos.Ondas são abraços espremidos de violência impactada por emoção e sentimento. Apenas abraços que não fartam, toma um, toma dois, toma três. E mais um,  e outro e outro. Não têm futuro? Têm sim, o porvir mora no abraço seguinte em tudo novo e semelhante ao anterior. E eu, corpo a adormentar na areia banhada de sol, atendo a esta voz sonora de ondas que nascem sabe Deus onde. Embalo em venturosas horas. Recarrego. 
Ao fundo, recorte de escura nitidez,  a serra deleita preguiçosa, estou aqui, moro nos cheiros agrestes e nas veredas, nas subidas a esfalfar, no esboroado em carne viva que os homens abriram. E dou flor e reverdeço em cada primavera. Ainda sobe por mim gente interessada. Ainda espero na reflorestação. Ainda sou eu à beira mar de pés na água. Não deixem perder as minhas espécies num fogo qualquer ou por alguma ninharia empreendedora. Acudam a quem, ano atrás de ano, vos guarda e protege.

E de repente, uma gaivota tão perto. E outra. Olho o dia a deslembrar. É hora. Levanta-se uma brisa. A água em espelho de sol encrespa de leve, as ondas deslaçam mais devagar e a serra postou-se em guarda sombria. Se eu tivesse uma casa nas dunas ficava até ao cansaço do sol a desaparecer talvez em raios rosados; ficava até que a brisa me derrotasse; ficava até que a noitinha estendesse o manto a empurrar-me, vai, queremos ouvir-nos uns aos outros sem testemunhas. Mas não vivo nas dunas. Dou-lhe as costas devagar. Despeço-me em promessas a que é já indiferente. Concentra-se. Começa-lhe a hora de ser para si mesma.

sábado, 10 de junho de 2017

Uma Obscura Árvore em Claro Sol

Há um prenúncio de calor na frescura da manhã que amarela soalhenta. Lá fora, o contentamento solto dos pássaros anda a esvoaçar na brisa bebé e infiltra pela janela semiaberta.  Sem gente, a minha árvore desinibe e entretém-se a sugerir,  ramos estendidos em insidioso convite de verdes, aqui e ali um eriçado de tronos barrocos que amarelam e, a seu tempo, tombam e morrem a golpes de vassoura, devêm lixo. Mas hoje são garridice vegetal, chamariz de células, laço de fita em pele arbórea. Que chama a algaraviada dos pássaros. Esta árvore, piano de sala que não tenho, é deus de zelo, sinaliza e guarda a casa em amplexo mavioso. Alberga melros, rolas, pardais e um  sem fim de ignotas espécies. Mansamente, centímetro a centímetro, tem-se aproximado e quase se debruça na minha janela onde a cloaca dos pássaros deixa restos que somem em  higiénica sacudidela. Perfilada, o corpo denuncia-lhe o esmero no lado campestre e a saudade de estar entre iguais. A minha árvore é um pequeno deus que não quer ser deus. Mas continua a crescer e elevar-se acima das outras, alegria sinfónica  dos habitantes alados. E minha. Se penso nela, logo a alma se enternece e me traz, vá-se lá saber porquê, o mar estival que sei de cor. O mar feito praia lisa e  que toda se oferece em movimentos suaves e lisonjeiros. Que beija os artelhos a convidar o resto do corpo, que vai subindo em frescura, mais acima, mais acima, mais um pouco. Até à plenitude liberta e inteira da osmose, a dissolução navegante de quem sobrevoa os males de viver e se dissolve no elemento aquoso. Que é  isto nadar: a profunda comunhão com a água, um enlevo suprarracional. A gente caminha pela estrada da razão, mas enleva no que dela  transcende. E que essa transcendência se firme e afirme por via também dos sentidos é a contradição mais bendita e benquista do ser humano. E nisto estou na Feira do Livro bordejada de lilás, os jacarandás num sorriso a escurecer, vieste. E eu perdida na sinuosa contorção dos ramos, anos e anos a ganharem a forma que me abisma em cada olhar, perplexa do mistério imerso na miríade florida e encaixada em nuvem, presa ao violeta intenso de um mais afoito, corpo de poesia declarada, vejam-me. E depois arranco-me e deambulo naquele jardim da alma que gosto de percorrer com vagar, a ler títulos, antevendo o que possa tornar meu. E nenhum momento é tão grande como esse em que desejo sem ainda ter (ah, o poeta, como ele sabe dizer isto). Por vezes, surgem-me pessoas da capa dos livros. Inexplicáveis. Porque sim. Agudamente. São sinais.  Livros que pedem, compra-me. Ou gente que quer ser vista. A relembrar-se. Porque não vejo o que lá está, escritores a olhar-nos do fundo da sua  seriedade, queixo apoiado na mão. Vejo sorrisos rasgados que troçam brandamente da minha pessoa. Comovem-me estas visões, querem o quê?!  

terça-feira, 6 de junho de 2017

No Tempo da Escola

Amélia chegara à aldeia sem passado e soubera rodear-se da aura de superioridade natural: tinha empregada dentro de casa, um gerador que resfolegava na rua e iluminava, arrefecia e aquecia os interiores do monte; e um automóvel que conduzia a resvalar no pasmo das gentes. Ninguém ousava levantar cabeça a interrogá-la. E ela, qual recém nascido de banho tomado e estômago sem queixa,  apreciava a fita dos dias em satisfação virginal. A tudo atendia a sua curiosidade. Pela noite, apreciava o ruído dos ralos na terra, o canto alado dos grilos femeeiros, a extremidade brilhante dos pirilampos a que o povo oportuno chamava  luzecus. No passo certo das horas noctívagas, rodeada de papeis, sentava-se a trabalhar. Acompanhava-a o ruído dos ramos que estalavam nas árvores em volta, a madeira dos móveis a espreguiçar no centro do silêncio, um gato elegante e periférico de olhos em desassossego.   Pela tardinha, era vê-la descer em passeio no seu passo miúdo, primeiro à descoberta, mais tarde em exercício de convivência. Nos caminhos, os homens tiravam-lhe o chapéu e cumprimentavam sérios,  rugas franzindo o rosto escurecido de pó sem data e sóis arraigados. E quedavam-se densos, olhos incomodados de assim sozinha por todo o lugar, amiudada em sapato rasteiro e raso de poeira, desinquieta de olhos e mãos. Amélia não se incomodava, tinha-os num limbo de acenos e sorrisos sem palavras que não lhe descomandava o passo. Havia de passar tempo até chegarem à conversa, que a confiança nasce e cresce como qualquer legume:  a poder de tempo, rega e paciência.   
Depois que minha mãe aceitara a oferta de emprego no Monte do Cabeço, a aldeia inteira a empurrá-la, vai, não sejas parva, foges ao trabalho do campo, ficas estimada e crias a gaiata que com ele não podes contar, eu vivia de empréstimo e suspense. Passava os dias enjoada de nada para fazer e, sem a companhia dos meus amigos dilectos, as horas desmaiavam  em semi-morte. Estava proíbida de passear com o grupo de garotos que cirandava por todo o lugar, por via de um pessegueiro carregadinho que, de uma hora para a outra, aparecera aliviado de pêssegos. Apesar da minha aplicada veemência, nunca tirámos nada, perdurou o não implacável. Em compensação, minha mãe entendia o cativeiro e deixava que a esperasse a meio caminho. À hora marcada, depois de muita ânsia aos ponteiros, saía de casa em corrida de fogo à vista sem bombeiro para acudir e, num relâmpago, estava sentada no marco combinado. E aguardava. Meias horas a enfiarem umas nas outras.  Na volta, por vezes dentro do breu, perguntava tudo sobre a casa, D. Amélia, as refeições, o trabalho, quem a frequentava...mas minha mãe era pouco loquaz e apresentava-se num cansaço só. Ou seria D. Amélia que não desejava alimentar a calhandrice de comadres e lhe fechava boca e ouvidos. Uma tarde, a surpresa, este ano vais estudar para o colégio. Eu a meio da vereda, espeque mudo, as tarantas das pernas, acudam que perdemos o andar. Na vila, observara uma aluna do colégio e o uniforme embiocava qualquer dos  meus vestidos. Minha mãe a validar a decisão, D. Amélia veio dirigir o colégio, foi por isso que alugou a Casa do Cabeço.  E a antecipar dúvidas sobre finanças, vai arranjar-te uma bolsa de estudo e não pagamos; do resto trato eu, filha. E enquanto eu puxava dos reflexos e as pernas desenxovalhavam do estupor, virou-me o sorriso de tempos felizes, todo subido aos olhos, vês, vais estudar e hás-de ter uma roupa como gostas, igual à da menina que vimos na vila.

Porém, ao invés de largo contentamento, atemorizei a pensar nos colégios que só conhecia de um ou outro livro, no terror das meninas e professoras novas que ia encontrar, na catástrofe de uma bolsa de estudo que nem arrisquei perguntar o que seria. Fixei-me em D. Amélia, nos seus olhos inquisitivos e grandes como amoras terríficas, na altura de saltos em que se passeava, tic, tic, tic. E assustou-me o comando daquele  palmo de mulher. Apesar do sorriso retornado a antes, nem minha mãe parecia contente por inteiro. Talvez canseira. Ou por meu pai já fora do segredo, mas sem visitas. O certo é que a novidade desprendia uma sensação estranha, espécie de azedume e travo desconhecido.

domingo, 4 de junho de 2017

Olívia

Há quanto tempo não nos encontramos? Já nem sei. Primeiro, aborreceu-me de morte a estranheza da tua torre solipsista que teimo em escalar: a constância do teu silêncio  feito de tempo, que interrompes em raros telefonemas; depois, chateou-me que não me atendas se ligo, tenhas sempre  telemóvel desligado (não sei porque o compraste), possuas  um computador  virgem ( e este, para que o queres?). Pasmo da tua solidão de sobro alentejano,  cortiça, musgo e líquenes a toda a volta; da tua orfandade sem palavras e que te marca os gestos; dos teus passos em eco pela casa, sempre mais que eles, o andar leve dos mortos que trazes contigo numa afeição que é demasia e grita do teu rosto para o meu, estamos aqui, não fomos a enterrar, acode-nos. Da tua expressão macerada que enfeitas de religião e companhia que não é. Da tua displicência alentejana que me preteriu por uma prima de Lisboa quando nenhuma de nós impedia a outra e mais me pareceu evitação propositada. E tudo isso, amiga, me afastou.  
Mas, à vista do meu silêncio definido e firmado em propósito de caminho encerrado, ligaste. Apresentaste desculpas. Desfizeste nós. Terás amigas comunitárias, gente boa e que só arreda pé de S. Pedro para ir ao médico, em excursão a Espanha, ou peregrinar  a Fátima. Mas nenhuma é eu. Nenhuma. Sou o teu lado perdido, um elo à vida que foste, alguém que - supões tu – vive no mundo que, em tempos, quiseste teu. E talvez por isso me aproximas e repeles. Quero fazer-te bem, mas quem sabe se também te deixo um travo no presente, se cravo um espinho pequeno que fica a incomodar quando te deixo. Num ai, a tua saudade afirmativa caiu sobre mim e desfiz o muro erguido entre nós. O definitivo passou a transitório. Um dia destes, o meu carro reaprende caminho e rola por esse Alentejo fora, sempre em frente, Évora, Reguengos de Monsaraz, S. Pedro. Aqui e ali, a claridade da cal a pontilhar a planície ainda enlaivada de verdes. Redondos suaves pegam uns nos outros, aqui uma anca, além o torneado de um braço, acolá um seio que se entrega. Alentejo é esta terra que o sol aclara  e martiriza, desmedida entrega a exalar num silêncio de mundo; é este pedido de mãos e dedos aflitos, a erguer-se de cada sobreiro desgrenhado; esta sublime resignação na humildade que consagra a pacatez de cada azinheira. E eu sou eles; e corro sentada na hipnótica fita negra que me seduz, escada em caracol a desembocar na tua rua murada de cal. Eu, que te tenho uma saudade feita de horas ensacadas, vou derramando bem querença por esta terra alentejana. Prescindo de procurar-lhe belezas ímpares, maravilhas, recantos, jardins de respiração florida. Gosto-a assim, em cheiros suados, carcomidos de calor; sinto a aspereza dos cardos nas pastagens, os pontiagudos do restolho nos pés, a comichão dos fenos por todo o corpo, a repelência disfarçada da vara no montado. Estremeço-a tanto na canícula que treme nos olhos, corpo a alagar, como nos invernos que paralisam o viço nos caules e chamam as artroses pelo nome.  O meu amor não obscurece às agruras estivais ou invernosas; não esmorece no confronto com a altura das serras e amenidade dos rios; não menoriza à vista de baías e enseadas, de praias vestidas de areia clara ou mares em fúria no encrespado da rocha. E nada é mais natural. O resto do mundo vejo-o sendo-lhe exterior; no Alentejo, a identidade é intrínseca e em alta voz. Grito-me.

E quando chego em tua casa vou assim, alentejanamente repleta. E o nosso amplexo é o abraço da terra que a si mesma se devolve. Um compasso de descanso. 

sábado, 3 de junho de 2017

Almada Negreiros (1893-1970) – uma maneira de ser Moderno

Até 5 de Junho, o museu Gulbenkian expõe a obra de Almada Negreiros, dos primeiros aos últimos trabalhos de pintura e desenho, percorrendo todas as fases da sua criatividade. E é exposição que não envergonha ninguém e pode mesmo emparceirar com outras que andam pelo mundo ou se visitam em museus estrangeiros.  A Gulbenkian está, mais uma vez, de parabéns.
Convém saber que Almada Negreiros era cheio de nervosismo criativo e não foi apenas um pintor modernista. Este homem de sete ofícios foi poeta, dramaturgo, escritor de boa prosa, conferencista e até bailarino (pelo menos durante um ano integrou o grupo de bailado  de Helena de Castelo Melhor). Um Artista enorme e  polifacetado. Há quem o considere genial.
É na qualidade de pintor-vitralista que  o Alentejo dele tem obra. Falamos do vitral da Capela de S. Gabriel no lugar de Marconi em Vendas Novas. Foi em 1951 que concebeu e desenhou, no seu traço inconfundível, o vitral que representa a Anunciação, encontro da Virgem com o arcanjo S. Gabriel - que deu nome à capela - a anunciar-lhe que ia ser mãe. E o vitral é lindo em todas as horas, mas o amanhecer e a tardinha arredondam-lhe a beleza  por efeito dos raios solares que, segundo consta, Almada veio estudar in loco. Uma formusura, o nosso vitral. E é como se um pedacinho de Almada nos pertença, que somos os únicos alentejanos a ter o vôo breve das suas mãos, um soslaio da sua mente.
Mas não é apenas por razões deste calibre que se  deve visitar a exposição da Gulbenkian ( e, se possível, a capela alentejana tão ao abandono). Mas também porque é preciso cultivar os olhos, atentar nas coisas belas que o homem cria e tanto desconhecemos. Um povo sem arte é um povo menor, falta-lhe dimensão. Apreciemos os artistas, a sua obra mostra o melhor do espírito português.
Podem começar pelo exterior, que a Gulbenkian é uma fundação envolta em jardins que são cetim a rodear a bela. E tudo isto no meio de Lisboa.  Vá, digam lá que não apetece tirar um par de horas e dar um passeio nos jardins da Gulbenkian, encanto natural projectado por Gonçalo Ribeiro Telles. Há por lá tanta árvore abençoada, tanto recanto acolhedor, e um tal cheiro a natureza viva que deambulamos prazenteiros... e o mais descobre cada um, que o efeito surpresa tem muita força. E eu vinha falar da exposição do Almada. Ah, pois. Há que voltar ao Almada.
Almada Negreiros é muito conhecido no mundo das letras pelo Manifesto anti Dantas (morra o Dantas, morra! Pim!), mas hoje não há tempo para falar da mordacidade ímpar do Almada e da quezília com Júlio Dantas. Hoje, brilha o pintor. Deixem-se ir, entrem no Museu da Gulbenkian, comprem o bilhete que nem é caro e disponham de mais uma hora ou duas só para apreciar o Almada, a alma dele (e a nossa) no papel, ali à mão, no que desenhou e pintou. Vão. Vale a pena percorrer espaços iluminados por tanto quadro e desenho. Aquele homem tinha asas nos dedos e a sua obra põe-nos a nós de bem com os artistas. É certo, era um protegido do regime. Mas não é com olhos políticos que se olha a obra de um pintor. Usam-se os olhos de gostar de arte e ser português, os  olhos de ver a eternidade que mora em cada homem. Que essa, podem crer, está em toda a mostra da exposição. Ali brilham quadros soberbos a par de cartazes de revista, desenhos que fez para alfaiatarias de renome, murais destinados a hotéis. E, em tudo que pôs a mão, a beleza irradia.
Lá está, ocupando toda uma parede, o extraordinário “retrato” que Almada pintou de Fernando Pessoa. Aquela enorme e hipnótica geometria de tons quentes a alternar com os sombrios e negros. E, no centro, o Pessoa tímido, o Pessoa anguloso e recatado e como que surpreendido a meio da escrita, olhos míopes por detrás das lentes, pássaros medrosos prontos à fuga. A um canto da mesa, a revista Orpheu. E juro que a alma fraqueja e ajoelha perante aquele quadro que é Grande e não apenas em centímetros. E, calculem vocês, Almada Negreiros veio a morrer no hospital e no quarto onde Fernando Pessoa se finou. E depois ainda dizem que não há coincidências!

Vá, vão ver  o Almada. Façam esse favor aos olhos e ao espírito (se quiserem, alimentam também o corpo que têm lá por onde). O Almada, assim posto na Gulbenkian, faz bem a tudo.