A
mente é a decoradora oficial da vida e arruma o material que possui da forma
que mais lhe apraz. Diligente e criativa, nem sempre se mostra prazenteira ou copia
o que os sentidos oferecem. Não é máquina e a reprodução desinteressa-lhe. Antes,
se dada ao drama, constrói quadros medonhos e terríficos onde o sujeito que a
possui se enterra a contragosto, por maldosa inflexão do destino, qual Branca
de Neve perdida no breu da floresta. Ou, ao invés, perde-se em castelos
nebulosos e fantásticos, nuvens de sonho evaporado, origem de alguns
trambolhões.
Contudo,
penso por vezes na bênção que é a mente não se conformar à realidade, conceito
que tanta moição tem dado aos pensadores. E acredito que haja mesmo várias
realidades e que a imaginária faça parte de tal conjunto. Mais, acredito que ela
é a fotossíntese humana. Uma coisa assim de pureza e respiração essencial que
embeleza o mundo e lhe dá forma. Porque até a realidade sensível tem seu quê de
imaginário e pessoal. De mental. É verdade que o mundo excede quaisquer
palavras que o queiram dizer. Mas o certo é que nenhum olhar é objectivo.
Ora,
pelo visto, sempre sacrifiquei no altar da subjectividade. Porque, se penso no
meu bólide iniciático, não me surge aquele para que, mês a mês, pus de lado uma
soma e ajudei a comprar. Esse, ganhou perfil de vestal. O primeiro automóvel
nunca foi meu e continua, na minha mente, o mais bonito que já vi. Porém,
apareceu-me entrelaçado noutros acidentes.
Por exemplo, foi siamês do primeiro herói, o seu condutor, pois claro. Confirmo
que já tive uma quantidade razoável e bem variada de heróis. O que se aguentou
mais tempo foi Lech Walesa que arrisca ser destronado pelo papa Francisco se
for o caso de sua santidade não estar muito virado para a morte e apostar na
longevidade. É verdade que, em Portugal, tenho um fraco por Sobrinho Simões,
mas ainda não subiu os degraus da heroicidade. Portanto…
E posto isto, manda a verdade dizer que o meu
primeiro herói também foi o meu primeiro namorado. A afirmação é dele, que sou
uma tímida desgraçada e nunca me teria lembrado de namorar com o motorista
fardado de duas senhoras que, para mim e toda a gente da minha terra, eram, em
idêntica proporção, muito muito ricas e dadas à fé católica. Acrescente-se que
eu tinha quatro ou cinco anos e ele era um homem a meus olhos cheio de qualidades: bonito e bem
penteado; tinha um boné lindíssimo e com pala; abria e fechava a porta do
automóvel a todos que entrassem; guiava sempre muito direito. Além disso,
conversava bastante com ele e cantava tudo
que me aprouvesse. No entretanto, as ditas senhoras e a minha mãe salvavam o
mundo a poder de reuniões, terços e missas. Acrescente-se que o senhor ainda me deixava mirar na carroçaria espelhada
daquela maravilha negra. Era um namorado dos valentes. Quando contei às minhas
amigas, elas invejaram-me e pediram se também podiam ir ver-se reflectidas. E
depois lá ficámos as três feitas pata-chocas, a fazer mitetes frente ao carro e
sem ordem de lhe pôr um dedo que fosse, enquanto ele limpava sabe Deus o quê
que aquilo não tinha um grão de poeira. Uma vez, o namorado sentou-me ao colo e
deixou-me guiar. Experiência que não me entusiasmou nem deu especial
alento. Este namoro durou pouquíssimo porque me aborreci de ter um namorado que
não me conhecia fora do tempo em que as patroas seguravam o mundo nas mãos. É
que passava por mim, chamava-o pelo nome e toda alegre, e era como se eu não
existisse. Ingrato.
Os
volantes sempre me foram fontes de problemas. Até nos carrinhos da feira. Mas
isso fica para quando. E Deus queira que quando seja já amanhã. Que
exíguo o querer do homem! Vai de um a outro dia a tremelicar, opado de receios.
Aguardemos.